Já
se reparou mais de uma vez na capacidade de José Guilherme Merquior de
caracterizar uma obra ou um pensamento alheio, parecendo nisso caracterizar o
seu próprio. João Cezar de Castro Rocha, coordenador da reedição da obra
completa do ensaísta carioca pela editora É Realizações, notou a duplicidade
desse gesto no caso de Carlos Drummond de Andrade, cuja poesia o autor de Verso universo em Drummond descreve assim:
“além de universal”, “é também muito atual”, sem perda de “suas origens”. Ao
que o professor da UERJ considera: “Ora, o perfil de Merquior parece bem
delineado nessas palavras!” (2012, p.16) Certa descrição de Araripe Júnior, em De Anchieta a Euclides, provocou em mais
de um autor a sensação de que aquelas palavras diziam respeito ao próprio
Merquior, e não apenas ao grande crítico do século XIX:
Araripe
Júnior [e Merquior, notem bem] se apoiava numa sólida posição no campo da
teoria literária, num gosto sintonizado com o movimento vivo da arte ocidental
da época, e numa sensibilidade especial para a dialética dos modelos artísticos
do Ocidente e as inclinações íntimas da cultura brasileira. E com todo esse
raro equilíbrio entre o senso da forma [e] a percepção sociológica, entre o
respeito pelas qualidades específicas do texto literário e a necessidade de
interpretá-lo em termos culturais e humanos, Araripe ainda arranjou modo de ser
um crítico-escritor, um ensaísta
dotado de estilo [...]. (2014, p.308)
Um
terceiro nome que, com muita justiça, reivindica presença nessa lista de
identificações merquiorianas é o modernista Murilo Mendes, do qual, segundo Luciana
Stegagno Picchio, José Guilherme Merquior seria “um dos críticos mais queridos
e congeniais do poeta”. (1994, p.26) Ao afirmá-lo, porém, a autora italiana não
esclarece o porquê na sua introdução ao volume Poesia completa e prosa do poeta mineiro pela Nova Aguilar. Quanto
a querido, sabe-se que com a pessoa
de Murilo o ensaísta carioca manteve próximo convívio e mesmo laços de amizade.
Uma relação que se beneficiou certamente do fato de ambos terem morado na
Europa.
Mas
por que congenial? De início, pode-se assegurar que José Guilherme Merquior contribuiu
para a fortuna crítica muriliana de uma maneira que a destaca e diferencia
ainda hoje. Pois no caso do escritor mineiro, Merquior não se limitou a
desvendar ou interpretar o significado de seus versos, evidenciando aspectos
que consistirão na caracterização consagrada em análises futuras de outros
críticos. O autor de Razão do poema
também se dispôs – mais do que com Drummond e mais do que com Cabral – a
conectar a poesia de Murilo Mendes com uma realidade cultural e política em
forte sintonia com sua própria visão de mundo.
Um
primeiro (e notável) vestígio da congenialidade entre Murilo Mendes e José
Guilherme Merquior: assim como o poeta posicionou-se, segundo Laís Corrêa de
Araújo, “permanentemente insatisfeito com toda forma de acomodação ou
institucionalização da poesia”, (2000, p.115)
o crítico das ideias jamais se satisfez com qualquer forma de acomodação ou
institucionalização do pensamento. Tanto um quanto o outro foram
franco-atiradores, resistentes a embarcar em navios levados pelos ventos da
moda cultural. A chave para se compreender mais adequadamente essa postura
muriliana, congenial à merquioriana, segundo o próprio Merquior, seriam duas
noções: a de surrealismo e a de poética visionária.
A
noção de poética do visionário, apresentada
em ensaio de Razão do poema, serve
para evidenciar o anseio não de fugir, mas sim de enfrentar o mundo concreto. A poética do visionário
é o surrealismo muriliano, o qual, segundo Merquior, se manifestaria claramente
na “audácia das aproximações insólitas” e no “choque do super-real”. (1981,
p.151) Tal audácia e tal choque, porém, não bastariam para singularizar esse
que foi um comportamento comum a todos os surrealistas. No caso de Murilo
Mendes, contudo, o “extremismo do elemento surreal” (1994, p.12.) não se opôs a
“um constante impulso de estar no mundo”, (1994, p.13.) e se posicionou “em
plano-protesto com a realidade mesma negada pela força do visionário”. (1994,
p.13.) Nisso, principalmente, residiria a idiossincrasia do surrealismo
muriliano, com que o poeta, aliás, atendeu perfeitamente às conhecidas
exigências de Merquior relativas à dialética entre a autonomia da literatura e
a ligação desta com a realidade.
De
fato, apura-se, no conjunto dos textos merquiorianos sobre o poeta de Juiz de
Fora, que a poética visionária em questão compõe-se de um complexo, e inaudito,
amálgama de surrealismo e realismo, de erotismo e cristianismo. Erotismo e
cristianismo? Apesar da curiosidade que desperta, especialmente esse último
enlace, tenho de adiar sua abordagem para outra oportunidade. Quanto ao primeiro,
também aparentemente paradoxal, o ensaísta carioca saudou em Murilo Mendes um
poeta que, embora “preso à matéria viva de seu tempo, atento à questão social”,
(1981, p.152.) se revelou consciente de que “a verdadeira realidade não se
esgota na superfície dos gestos humanos, e [...] dele é parte eminente o
subterrâneo dos impulsos reprimidos”. (1981, p.152.) Como se sabe, essa camada
profunda de nossa mente consistiu em motivo fundamental da poética surrealista
em todos os quadrantes. O ensaísta carioca também alertava que: “O essencial é
não pensar em surrealismo contra
realismo, tomando este, não na acepção de estilo histórico, mas de virtude
gnoseológica”, (1980, p.152) assim como que o surrealismo “Não é escapismo – é
uma forma imaginária de realismo”. (2013,
p.78.)
A
poética visionária de Murilo Mendes configura o segundo conjunto de poemas da razão que, no tocante à poesia
brasileira, mais obteve o aplauso do exigente crítico carioca. O poeta mineiro
teria mantido, frente ao surrealismo e ao catolicismo, autonomia similiar à que
Merquior ostentou frente ao estruturalismo, ao marxismo, à contracultura, à
arte de vanguarda etc. Ares semelhantes aos da “atmosfera de sortilégio e
prodígio”, “característica do estilo visionário
de Murilo”, (1997, p.219.) respirou o autor convidado por Manuel Bandeira a
selecionar a antologia modernista para o volume A poesia do Brasil, no qual o jovem ensaísta se jactava de ter
aprendido bastante da “atitude artística e crítica de 22”, (1963, p.8.) sem
dúvida igualmente uma das fontes para a formação da identidade poética muriliana.
Sendo
assim, a poética muriliana assume relação de enfrentamento crítico com a
realidade; ou seja, nem é propriamente avessa a referências miméticas, nem
renuncia a uma atitude de intervenção (interpretativa) sobre essa mesma
realidade. Convém ressaltar que a individualidade da poesia de Murilo Mendes
não coincidiria, para Merquior, com o significado romântico de originalidade,
altíssimo valor para as vanguardas euromodernistas, sobretudo na primeira
metade do século XX, mas noção em progressivo desprestígio desde os últimos
decênios da centúria passada. É, aliás, essa lógica que devemos aplicar ao
próprio autor de O véu e a máscara,
teimosamente acusado de não ter formulado um pensamento original, mas, acima de
tudo, apenas comentado obra alheia, angariando notoriedade e repercussão graças
a modismos intelectuais. O que não passa de uma visão estereotipada e míope da
autêntica contribuição intelectual de José Guilherme Merquior.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Laís
Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio
crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.
MERQUIOR, José
Guilherme. “À beira do antiuniverso debruçado, ou introdução livre à poesia de
Murilo Mendes” in O fantasma romântico e
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______. “A pulga
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1997.
______. De Anchieta a Euclides: breve história
da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014.
______. “Murilo
Mendes ou a poética do visionário” in Razão
do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É
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PICCHIO, Luciana
Stegagno. “Vida-poesia de Murilo Mendes” in MENDES, Murilo. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. pp.23-31.
ROCHA, João
Cezar de Castro. “José Guilherme Merquior: aqui e agora” in Verso universo em Drummond. 3ª ed. São
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