terça-feira, 28 de junho de 2016

Murilo Mendes: um caso de identificação merquioriana

Já se reparou mais de uma vez na capacidade de José Guilherme Merquior de caracterizar uma obra ou um pensamento alheio, parecendo nisso caracterizar o seu próprio. João Cezar de Castro Rocha, coordenador da reedição da obra completa do ensaísta carioca pela editora É Realizações, notou a duplicidade desse gesto no caso de Carlos Drummond de Andrade, cuja poesia o autor de Verso universo em Drummond descreve assim: “além de universal”, “é também muito atual”, sem perda de “suas origens”. Ao que o professor da UERJ considera: “Ora, o perfil de Merquior parece bem delineado nessas palavras!” (2012, p.16) Certa descrição de Araripe Júnior, em De Anchieta a Euclides, provocou em mais de um autor a sensação de que aquelas palavras diziam respeito ao próprio Merquior, e não apenas ao grande crítico do século XIX:

Araripe Júnior [e Merquior, notem bem] se apoiava numa sólida posição no campo da teoria literária, num gosto sintonizado com o movimento vivo da arte ocidental da época, e numa sensibilidade especial para a dialética dos modelos artísticos do Ocidente e as inclinações íntimas da cultura brasileira. E com todo esse raro equilíbrio entre o senso da forma [e] a percepção sociológica, entre o respeito pelas qualidades específicas do texto literário e a necessidade de interpretá-lo em termos culturais e humanos, Araripe ainda arranjou modo de ser um crítico-escritor, um ensaísta dotado de estilo [...]. (2014, p.308)

Um terceiro nome que, com muita justiça, reivindica presença nessa lista de identificações merquiorianas é o modernista Murilo Mendes, do qual, segundo Luciana Stegagno Picchio, José Guilherme Merquior seria “um dos críticos mais queridos e congeniais do poeta”. (1994, p.26) Ao afirmá-lo, porém, a autora italiana não esclarece o porquê na sua introdução ao volume Poesia completa e prosa do poeta mineiro pela Nova Aguilar. Quanto a querido, sabe-se que com a pessoa de Murilo o ensaísta carioca manteve próximo convívio e mesmo laços de amizade. Uma relação que se beneficiou certamente do fato de ambos terem morado na Europa.

Mas por que congenial? De início, pode-se assegurar que José Guilherme Merquior contribuiu para a fortuna crítica muriliana de uma maneira que a destaca e diferencia ainda hoje. Pois no caso do escritor mineiro, Merquior não se limitou a desvendar ou interpretar o significado de seus versos, evidenciando aspectos que consistirão na caracterização consagrada em análises futuras de outros críticos. O autor de Razão do poema também se dispôs – mais do que com Drummond e mais do que com Cabral – a conectar a poesia de Murilo Mendes com uma realidade cultural e política em forte sintonia com sua própria visão de mundo.

Um primeiro (e notável) vestígio da congenialidade entre Murilo Mendes e José Guilherme Merquior: assim como o poeta posicionou-se, segundo Laís Corrêa de Araújo, “permanentemente insatisfeito com toda forma de acomodação ou institucionalização da poesia”, (2000, p.115) o crítico das ideias jamais se satisfez com qualquer forma de acomodação ou institucionalização do pensamento. Tanto um quanto o outro foram franco-atiradores, resistentes a embarcar em navios levados pelos ventos da moda cultural. A chave para se compreender mais adequadamente essa postura muriliana, congenial à merquioriana, segundo o próprio Merquior, seriam duas noções: a de surrealismo e a de poética visionária.

A noção de poética do visionário, apresentada em ensaio de Razão do poema, serve para evidenciar o anseio não de fugir, mas sim de enfrentar o mundo concreto. A poética do visionário é o surrealismo muriliano, o qual, segundo Merquior, se manifestaria claramente na “audácia das aproximações insólitas” e no “choque do super-real”. (1981, p.151) Tal audácia e tal choque, porém, não bastariam para singularizar esse que foi um comportamento comum a todos os surrealistas. No caso de Murilo Mendes, contudo, o “extremismo do elemento surreal” (1994, p.12.) não se opôs a “um constante impulso de estar no mundo”, (1994, p.13.) e se posicionou “em plano-protesto com a realidade mesma negada pela força do visionário”. (1994, p.13.) Nisso, principalmente, residiria a idiossincrasia do surrealismo muriliano, com que o poeta, aliás, atendeu perfeitamente às conhecidas exigências de Merquior relativas à dialética entre a autonomia da literatura e a ligação desta com a realidade.

De fato, apura-se, no conjunto dos textos merquiorianos sobre o poeta de Juiz de Fora, que a poética visionária em questão compõe-se de um complexo, e inaudito, amálgama de surrealismo e realismo, de erotismo e cristianismo. Erotismo e cristianismo? Apesar da curiosidade que desperta, especialmente esse último enlace, tenho de adiar sua abordagem para outra oportunidade. Quanto ao primeiro, também aparentemente paradoxal, o ensaísta carioca saudou em Murilo Mendes um poeta que, embora “preso à matéria viva de seu tempo, atento à questão social”, (1981, p.152.) se revelou consciente de que “a verdadeira realidade não se esgota na superfície dos gestos humanos, e [...] dele é parte eminente o subterrâneo dos impulsos reprimidos”. (1981, p.152.) Como se sabe, essa camada profunda de nossa mente consistiu em motivo fundamental da poética surrealista em todos os quadrantes. O ensaísta carioca também alertava que: “O essencial é não pensar em surrealismo contra realismo, tomando este, não na acepção de estilo histórico, mas de virtude gnoseológica”, (1980, p.152) assim como que o surrealismo “Não é escapismo – é uma forma imaginária de realismo”. (2013, p.78.)

A poética visionária de Murilo Mendes configura o segundo conjunto de poemas da razão que, no tocante à poesia brasileira, mais obteve o aplauso do exigente crítico carioca. O poeta mineiro teria mantido, frente ao surrealismo e ao catolicismo, autonomia similiar à que Merquior ostentou frente ao estruturalismo, ao marxismo, à contracultura, à arte de vanguarda etc. Ares semelhantes aos da “atmosfera de sortilégio e prodígio”, “característica do estilo visionário de Murilo”, (1997, p.219.) respirou o autor convidado por Manuel Bandeira a selecionar a antologia modernista para o volume A poesia do Brasil, no qual o jovem ensaísta se jactava de ter aprendido bastante da “atitude artística e crítica de 22”, (1963, p.8.) sem dúvida igualmente uma das fontes para a formação da identidade poética muriliana.

Sendo assim, a poética muriliana assume relação de enfrentamento crítico com a realidade; ou seja, nem é propriamente avessa a referências miméticas, nem renuncia a uma atitude de intervenção (interpretativa) sobre essa mesma realidade. Convém ressaltar que a individualidade da poesia de Murilo Mendes não coincidiria, para Merquior, com o significado romântico de originalidade, altíssimo valor para as vanguardas euromodernistas, sobretudo na primeira metade do século XX, mas noção em progressivo desprestígio desde os últimos decênios da centúria passada. É, aliás, essa lógica que devemos aplicar ao próprio autor de O véu e a máscara, teimosamente acusado de não ter formulado um pensamento original, mas, acima de tudo, apenas comentado obra alheia, angariando notoriedade e repercussão graças a modismos intelectuais. O que não passa de uma visão estereotipada e míope da autêntica contribuição intelectual de José Guilherme Merquior.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antiuniverso debruçado, ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes” in O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. pp.151-160.

______. “A pulga parabólica (pulex irritans)” in A astúcia da mimese: ensaios sobre lírica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014.

______. “Murilo Mendes ou a poética do visionário” in Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013. pp.71-90.

______. “Nota antipática” in BANDEIRA, Manuel. A poesia do Brasil. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963. pp.7-8.
______. “Notas para uma muriloscopia” in MENDES, Murilo. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.11-21.

PICCHIO, Luciana Stegagno. “Vida-poesia de Murilo Mendes” in MENDES, Murilo. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.23-31.


ROCHA, João Cezar de Castro. “José Guilherme Merquior: aqui e agora” in Verso universo em Drummond. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2012. pp.13-24.