sábado, 18 de março de 2017

Riquezas de um pequeno baú: O estruturalismo dos pobres e outras questões (2ª parte)



Sabemos que Gide não está na moda: mas não será porque sua mensagem [...] continua, em seu cerne, essencialmente intempestiva?
Merquior


Primeiramente publicado em janeiro de 1974, na revista portuguesa Colóquio Letras, “Malraux contra Gide” é ensaio que se situa em região nobre da obra merquioriana. Pois além de o texto ter sido publicado ainda uma terceira vez em Crítica (1990), antologia de uma atividade de crítico literário entre 1964 e 89, que o próprio Merquior organizou, André Gide consiste em nome de citação recorrente na ensaística do pensador brasileiro.

Em Formalismo e tradição moderna (1974), o francês é lembrado pela “ótica grotesca, antitrágica”, a mesma que teria caracterizado também Franz Kafka, Robert Musil e Thomas Mann. (2015, p.140) Em Crítica, reconhece-se nele um escritor moderno, mas não modernista, querendo-se assim ressaltar sua contribuição sintonizada com a daqueles mesmos outros autores contemporâneos, que “desfetichizaram a forma artística”, (1990, p.396) sem, contudo, produzir uma obra na qual “se encontre a histeria contracultural” típica do alto modernismo europeu. (1990, p.158) A certa altura do livro De Anchieta a Euclides (1977), o historiador da literatura brasileira recorda uma lição gidiana: “A boa literatura [...] não se faz obrigatoriamente com bons sentimentos.” (2014, p.69) Também o doutorando da Sorbonne, em sua tese sobre Carlos Drummond de Andrade, lançou mão da comparação entre o classicismo moderno do poeta itabirano e o do imoralista nietzschiano. (cf. 2012, p.258-259) Ao engajamento político-filosófico de Jean-Paul Sartre, José Guilherme Merquior dirá, em O marxismo ocidental (1986), preferir “o ato gratuito, credo de Gide”, (1987, p.195) mais uma vez enaltecido, em O elixir do apocalipse (1983), como um dos raros escritores modernos a manter em alta conta o velho Goethe, uma das mais notáveis encarnações do espírito iluminista no Ocidente, (cf. 1983, p.10) bem como uma das “poderosas lâminas analíticas [que dissecaram] a conduta humana”. (cf. 1983, p.185)

Dessas diversas referências, a síntese do julgamento merquioriano aparenta ser a de que o autor de Os moedeiros falsos pertence à família literária de Kafka, Proust, Musil, Mann (ao lado dos quais, quase sempre seu nome aparece, quando referido pelo ensaísta brasileiro), clã cujos membros foram modernos, mas não modernistas, não pelo menos em um “sentido programático ou doutrinário”. (1981, p.24) Acresce que essa compreensão crítica se esforça em apontar em André Gide um escritor tão importante quanto os demais citados, bem mais iluminados pelo sol da popularidade e da canonização artística.

Infelizmente temos de confessar não dispormos de leitura digna de registro da obra de Gide. E muito menos do texto de André Malraux com o qual José Guilherme Merquior se confronta. Por isso, vamos nos ater a destacar e comentar as linhas gerais expostas no ensaio do autor brasileiro, que se enfeixam na relação entre história e literatura, sem dúvida um dos Leitmotive da crítica merquioriana.

O ponto-chave da contestação de Merquior ao que Malraux discorre a respeito de Gide consiste no lugar deste na cena literária contemporânea. Aparentemente cada vez menos lida porque supostamente cada vez menos atual, a obra gidiana se encontraria nessas circunstâncias desfavoráveis dos anos 60 e 70 devido sobretudo, segundo Malraux na paráfrase merquioriana, a uma forte proximidade formal com a literatura do século XIX e a uma acusada falta de senso histórico, substituído este pelo interesse em questões morais.

A defesa do imoralista nietzschiano não poderia deliciar mais ao autor de O marxismo ocidental. Surgia aí mais uma oportunidade para o ensaísta, cujo pensamento também cobrava da literatura, assim como da crítica literária, “senso histórico”, balizar exemplarmente os termos dessa sua cobrança. Quanto a isso, Merquior consente que, “em matéria de anti-historicismo, Gide foi ‘de morte’”, afinal: “Três anos antes de Hiroshima, em plena convulsão bélica, [ele] é capaz de escrever, impassível: ‘De toutes les connaissances humaines, celle qui m’intéresse le moins, c’est l’Histoire’”.[i] (1975, p.46) Entretanto, pondera o crítico brasileiro mais adiante: “Talvez o primado da preocupação moral sobre o ‘senso da história’ seja uma forma aguda de... consciência histórica.” (1975, p.47)

E é nessa linha mesmo – a busca de evidenciar a astúcia histórica da obra de André Gide – que José Guilherme Merquior desenvolverá uma de suas mais belas peças de defesa crítica. Isso a ponto de ficarmos tentados a preferir “Merquior contra Malraux” ou “Merquior a favor de Gide” como títulos do ensaio, opções que naturalmente o bom gosto de seu autor não teria aprovado jamais.

A argumentação merquioriana surpreende como a de um sermão de padre Antônio Vieira. Se o escritor de Os moedeiros falsos preteriu a história e colocou a moral no centro de sua obra, o crítico brasileiro propõe que esse seria o “seu modo de fazer-se analítica do presente”. (1975, p.52) Em outros termos, a discussão ética gidiana, ao fim e ao cabo, se volta, se insere na história, na medida em que “os absolutos gideanos nunca transcendem o rigorosamente humano e terrestre; nunca se apresentam como um Absoluto”. (1975, p.47) Justamente o contrário do que se sucederia em André Malraux, quem, na condição de belo herdeiro da mentalidade euromodernista, mergulharia na história, para no fim das contas convertê-la em sabedoria de ordem quase mística, afastando-a, portanto, alguns graus da realidade.

Para José Guilherme Merquior, a literatura de Gide se valoriza igualmente pelo que nela se constata de “francamente voltairiano e parodístico”, (1975, p.53) por seu “cunho iluminista”. (1975, p.54) Em se tratando de um precoce admirador de Voltaire e mais tarde auto-identificado como “neo-iluminista”, não poderia haver maior elogio. Desse modo, ao passo que nosso pensador aproxima André Gide da concepção racionalista do Setecentos, por outro lado aproxima André Malraux da concepção irracionalista do Oitocentos romântico, que no século XX se transmutará, na futura visão de Merquior, no formalismo das vanguardas artísticas, do estruturalismo e até do pós-estruturalismo.

Outro ponto da defesa merquioriana (que, como se sabe, nunca deixa de ser também ataque) refere-se ao valor da cultura ética, sem nenhum pudor politicamente correto, “a um só tempo aristocrática e perfectiva”, aprendida da jardinagem pelo notório discípulo de Nietzsche: pois, “no jardim, o melhor nunca é um produto espontâneo, mas o produto de  uma arte obediente (sem ser servil) à natureza.” (1975, p.48)

Com base nessa exposição ensaística, José Guilherme Merquior ensina outra perspectiva de atualidade, a qual não nega a tradição como horizonte ético e estético. Em uma palavra: humanismo. André Gide, portanto, seria um importante valor humanista, afirmação do gosto pela edificação intelectual do ser humano, que assim consegue impor-se como individualidade (governada pelo ego, nos termos freudianos aos quais o ensaísta brasileiro recorre no texto), mas não se rendendo às desrazões e à anarquia do id. É tempo ainda de se ler Gide.


Referências bibliográficas:

______. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 4ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2014.

______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. São Paulo: É Realizações, 2016.

______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

______. O marxismo ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.



[i] Tradução: “De todos os conhecimentos humanos, o que menos me interessa é o da História.”

sexta-feira, 3 de março de 2017

Sobre o livro "Brazil no prego" (2004), de Gilberto Felisberto Vasconcellos

Não são poucos os professores e alunos universitários brasileiros convencidos de que passou da hora de a linguagem acadêmica afrouxar um pouco a gravata e desabotoar o colarinho. E que essa menor pompa e circunstância estilística promovam um ambiente mais aconchegante, atraente e iluminado para o leitor. Disso, há mais de 30 anos, já tinha se dado conta José Guilherme Merquior, o diplomata, o doutor em Letras pela Sorbonne e o PhD em Sociologia pela London School of Economics and Political Science, que nutriu com fartura da forma ensaística a sua obra, quase sempre escrita “além do chavão, aquém do jargão”. Sua linguagem, ao contrário dos receios puristas da Geração de 45, não tinha medo de fazer pipi na cama do pensamento.

Bons exemplos recentes de uma linguagem sem maiores ranços terminológicos e sintaxe posuda são os livros Capitalismo: modo de usar (2015), do economista formado pela UFRJ Fabio Giambiagi (o volume carece, verdade seja dita, de uma 2ª edição bem revisada), e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (2016), do professor titular aposentado de Sociologia da USP José de Souza Martins.

Publicado há mais tempo, Brazil no prego (2004), de Gilberto Felisberto Vasconcellos, professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, se reveste de rasgos irônicos, de neologismos trocadilhescos jocosos, o que decerto torna a leitura do livro, em certo aspecto, um divertimento. Porém, o autor não se preocupa em atender ao famoso preceito horaciano do docere cum delectare, isto é, do ensinar deleitando, pois abre mão, sem parcimônia, da seriedade de um elemento ao qual não se deve permitir brincadeiras nesse gênero textual: a consistência dos argumentos.

A obra objetiva desenvolver uma crítica ampla ao Brasil político-econômico, sócio-cultural e acadêmico entre meados do século passado e os primeiros anos do atual. Para o autor, escancaradamente alinhado à tradição latino-americana do anti-imperialismo marxista, José Guilherme Merquior, “um dos mais importantes ideólogos brasileiros do liberalismo”, (2004, p.15) resplandece envolto na culpa de ter difundido uma visão política compactuada com os interesses do capital “videofinanceiro”.

Embora para o prefaciador do volume, Yago Euzébio Bueno de Paiva Junho, a tese central da obra professe que “o pensamento merquiorano foi um dos principais responsáveis pela convergência dos projetos políticos liberais e social-democratas a partir de 1989”, (2004, p.9-10) o próprio Felisberto Vasconcellos é mais cauteloso, ao prevenir e defender que

“Seria arriscado afirmar que o pensamento liberal de José Guilherme Merquior encontrar-se-ia inteiramente materializado no poder desde 1989. No entanto, é imperioso ir em busca das conexões entre sua trajetória intelectual e o quadro político contemporâneo  da sociedade brasileira.” (2004, p.35)

No entanto, várias afirmações peremptórias ficam sem o devido embasamento. Teria o sociólogo Fernando Henrique Cardoso lido os textos liberais de Merquior, a ponto de considerá-lo uma influência decisiva no exercício da presidência? A própria obra do líder tucano não fornece evidências sólidas disso. Convém ler, a tal propósito, o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, da qual o ex-presidente ocupa a cadeira no 36, a mesma de José Guilherme Merquior. As referências ao autor de Liberalismo: antigo e moderno quase não ultrapassam o nível protocolar da solenidade. Além disso, de que dados Gilberto Felisberto Vasconcellos dispôs, a respeito da recepção dos livros, artigos e ensaios de Merquior no meio político brasileiro, para ter chegado às suas convicções? 

Devemos ter em vista que o enlace entre liberalismo, em sentido mais econômico, e social-democracia, ou qualquer outra orientação mais afeita a intervenções estatais, vem sendo propagandeada por autores de projeção mundial, como Norberto Bobbio e Anthony Giddens. O filósofo político italiano preconizava o chamado social-liberalismo, vertente liberal em que inclusive Merquior se inseriu. Quanto ao britânico Giddens, é dele a famosíssima e ainda corrente expressão Terceira via, título de um livro seu publicado em 1998.

Em Brazil no prego, Felisberto Vasconcellos enaltece, quase página a página, a sociologia de Darcy Ribeiro e ataca, ali e acolá, a de Fernando Henrique Cardoso. Mas por que o primeiro seria sociólogo tão excelente quanto ignorado pela academia e o segundo tão ruim quanto referido por trabalhos científicos? O leitor não deverá encontrar outra resposta senão porque o autor do livro endossa as ideias ribeirinhas e abomina as feagaceanas. Ponto-final. Gilberto Felisberto Vasconcellos também ensina que Getúlio Vargas se matou motivado por questões relativas à Petrobrás, empresa pública sobre a qual incidiam interesses do capital estrangeiro. Porém, o que comprova a inusitada interpretação histórica? Trata-se apenas de uma pessoal convicção dogmática?

A obra de José Guilherme Merquior também nos tem a ensinar que o pensamento, de índole seja científica, seja política, não pode dispensar as conexões com a realidade, aqui compreendidas na forma de documentos, de dados históricos, de estatísticas etc, que o fundamentem. Tal postura exemplar motivou Miguel Reale a atribuir ao autor de Razão do poema o epíteto de “paladino da realidade concreta”. Tinha toda a razão o eminente jurista brasileiro.

Seja como for, Brazil no prego (com “z” mesmo, conforme o velho clichê esquerdista) se apoia numa leitura extensa de Merquior, e aventa uma interessante hipótese de a razão merquioriana dever bastante ao racionalismo marxista. Eis aí um belo filão a ser explorado. Gostaria de destacar ainda o “Capítulo 13”, de título “A viagem sem viagem”, com seu saboroso toque de crônica, muitíssimo bem dosado. E como não pasmar diante do acerto profético, que finaliza a obra, a respeito dos últimos anos de política executiva federal?