Sabemos que Gide
não está na moda: mas não será porque sua mensagem [...] continua, em seu
cerne, essencialmente intempestiva?
Merquior
Primeiramente
publicado em janeiro de 1974, na revista portuguesa Colóquio Letras, “Malraux contra Gide” é ensaio que se situa em
região nobre da obra merquioriana. Pois além de o texto ter sido publicado ainda
uma terceira vez em Crítica (1990), antologia
de uma atividade de crítico literário entre 1964 e 89, que o próprio Merquior organizou,
André Gide consiste em nome de citação recorrente na ensaística do pensador brasileiro.
Em
Formalismo e tradição moderna (1974),
o francês é lembrado pela “ótica grotesca,
antitrágica”, a mesma que teria caracterizado também Franz Kafka, Robert Musil
e Thomas Mann. (2015, p.140) Em Crítica, reconhece-se nele um escritor
moderno, mas não modernista, querendo-se assim ressaltar sua contribuição
sintonizada com a daqueles mesmos outros autores contemporâneos, que
“desfetichizaram a forma artística”, (1990, p.396) sem, contudo, produzir uma
obra na qual “se encontre a histeria contracultural” típica do alto modernismo
europeu. (1990, p.158) A certa altura do livro De Anchieta a Euclides (1977), o historiador da literatura
brasileira recorda uma lição gidiana: “A boa literatura [...] não se faz
obrigatoriamente com bons sentimentos.” (2014, p.69) Também o doutorando da Sorbonne, em sua tese sobre Carlos Drummond
de Andrade, lançou mão da comparação entre o classicismo moderno do poeta
itabirano e o do imoralista nietzschiano. (cf. 2012, p.258-259) Ao engajamento político-filosófico
de Jean-Paul Sartre, José Guilherme Merquior dirá, em O marxismo ocidental (1986), preferir “o ato gratuito, credo de
Gide”, (1987, p.195) mais uma vez enaltecido, em O elixir do apocalipse (1983), como um dos raros escritores
modernos a manter em alta conta o velho Goethe, uma das mais notáveis
encarnações do espírito iluminista no Ocidente, (cf. 1983, p.10) bem como uma
das “poderosas lâminas analíticas [que dissecaram] a conduta humana”. (cf.
1983, p.185)
Dessas
diversas referências, a síntese do julgamento merquioriano aparenta ser a de
que o autor de Os moedeiros falsos
pertence à família literária de Kafka, Proust, Musil, Mann (ao lado dos quais,
quase sempre seu nome aparece, quando referido pelo ensaísta brasileiro), clã
cujos membros foram modernos, mas não modernistas, não pelo menos em um
“sentido programático ou doutrinário”. (1981, p.24) Acresce que essa
compreensão crítica se esforça em apontar em André Gide um escritor tão importante quanto os demais citados, bem mais
iluminados pelo sol da popularidade e da canonização artística.
Infelizmente
temos de confessar não dispormos de leitura digna de registro da obra de Gide.
E muito menos do texto de André Malraux com o qual José Guilherme Merquior se
confronta. Por isso, vamos nos ater a
destacar e comentar as linhas gerais expostas no ensaio do autor brasileiro,
que se enfeixam na relação entre história e literatura, sem dúvida um dos Leitmotive da crítica merquioriana.
O
ponto-chave da contestação de Merquior ao que Malraux discorre a respeito de
Gide consiste no lugar deste na cena literária contemporânea. Aparentemente
cada vez menos lida porque supostamente cada vez menos atual, a obra gidiana se
encontraria nessas circunstâncias desfavoráveis dos anos 60 e 70 devido
sobretudo, segundo Malraux na paráfrase merquioriana, a uma forte proximidade
formal com a literatura do século XIX e a uma acusada falta de senso histórico,
substituído este pelo interesse em questões morais.
A
defesa do imoralista nietzschiano não poderia deliciar mais ao autor de O marxismo ocidental. Surgia aí mais uma
oportunidade para o ensaísta, cujo pensamento também cobrava da literatura,
assim como da crítica literária, “senso histórico”, balizar exemplarmente os
termos dessa sua cobrança. Quanto a isso, Merquior consente que, “em matéria de
anti-historicismo, Gide foi ‘de morte’”, afinal: “Três anos antes de Hiroshima,
em plena convulsão bélica, [ele] é capaz de escrever, impassível: ‘De toutes
les connaissances humaines, celle qui m’intéresse le moins, c’est l’Histoire’”.[i]
(1975, p.46) Entretanto, pondera o crítico brasileiro mais adiante: “Talvez o
primado da preocupação moral sobre o ‘senso da história’ seja uma forma aguda
de... consciência histórica.” (1975, p.47)
E
é nessa linha mesmo – a busca de evidenciar a astúcia histórica da obra de André Gide – que José Guilherme
Merquior desenvolverá uma de suas mais belas peças de defesa crítica. Isso a
ponto de ficarmos tentados a preferir “Merquior contra Malraux” ou “Merquior a
favor de Gide” como títulos do ensaio, opções que naturalmente o bom gosto de
seu autor não teria aprovado jamais.
A
argumentação merquioriana surpreende como a de um sermão de padre Antônio
Vieira. Se o escritor de Os moedeiros
falsos preteriu a história e colocou a moral no centro de sua obra, o
crítico brasileiro propõe que esse seria o “seu modo de fazer-se analítica do
presente”. (1975, p.52) Em outros termos, a discussão ética gidiana, ao fim e
ao cabo, se volta, se insere na história, na medida em que “os absolutos gideanos
nunca transcendem o rigorosamente humano e terrestre; nunca se apresentam como
um Absoluto”. (1975, p.47) Justamente o contrário do que se sucederia em André
Malraux, quem, na condição de belo herdeiro da mentalidade euromodernista,
mergulharia na história, para no fim das contas convertê-la em sabedoria de
ordem quase mística, afastando-a, portanto, alguns graus da realidade.
Para
José Guilherme Merquior, a literatura de Gide se valoriza igualmente pelo que
nela se constata de “francamente voltairiano
e parodístico”, (1975, p.53) por seu “cunho iluminista”. (1975, p.54) Em se
tratando de um precoce admirador de Voltaire e mais tarde auto-identificado
como “neo-iluminista”, não poderia haver maior elogio. Desse modo, ao passo que
nosso pensador aproxima André Gide da concepção racionalista do Setecentos, por
outro lado aproxima André Malraux da concepção irracionalista do Oitocentos
romântico, que no século XX se transmutará, na futura visão de Merquior, no
formalismo das vanguardas artísticas, do estruturalismo e até do
pós-estruturalismo.
Outro
ponto da defesa merquioriana (que, como se sabe, nunca deixa de ser também
ataque) refere-se ao valor da cultura ética, sem nenhum pudor politicamente
correto, “a um só tempo aristocrática
e perfectiva”, aprendida da
jardinagem pelo notório discípulo de Nietzsche: pois, “no jardim, o melhor
nunca é um produto espontâneo, mas o produto de
uma arte obediente (sem ser servil) à natureza.” (1975, p.48)
Com
base nessa exposição ensaística, José Guilherme Merquior ensina outra
perspectiva de atualidade, a qual não nega a tradição como horizonte ético e
estético. Em uma palavra: humanismo. André Gide, portanto, seria um importante
valor humanista, afirmação do gosto pela edificação intelectual do ser humano,
que assim consegue impor-se como individualidade (governada pelo ego, nos termos freudianos aos quais o
ensaísta brasileiro recorre no texto), mas não se rendendo às desrazões e à
anarquia do id. É tempo ainda de se ler Gide.
Referências bibliográficas:
______. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.
______. De Anchieta a Euclides: breve história
da literatura brasileira. 4ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2014.
______. Formalismo e tradição moderna: o
problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. São Paulo: É Realizações, 2016.
______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
______. O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
______. O marxismo ocidental. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.