Não
são poucos os professores e alunos universitários brasileiros convencidos de
que passou da hora de a linguagem acadêmica afrouxar um pouco a gravata e
desabotoar o colarinho. E que essa menor pompa e circunstância estilística
promovam um ambiente mais aconchegante, atraente e iluminado para o leitor.
Disso, há mais de 30 anos, já tinha se dado conta José Guilherme Merquior, o
diplomata, o doutor em Letras pela Sorbonne e o PhD em Sociologia pela London
School of Economics and Political Science, que nutriu com fartura da forma
ensaística a sua obra, quase sempre escrita “além do chavão, aquém do jargão”.
Sua linguagem, ao contrário dos receios puristas da Geração de 45, não tinha
medo de fazer pipi na cama do pensamento.
Bons
exemplos recentes de uma linguagem sem maiores ranços terminológicos e sintaxe
posuda são os livros Capitalismo: modo de
usar (2015), do economista formado pela UFRJ Fabio Giambiagi (o volume
carece, verdade seja dita, de uma 2ª edição bem revisada), e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (2016),
do professor titular aposentado de Sociologia da USP José de Souza Martins.
Publicado
há mais tempo, Brazil no prego
(2004), de Gilberto Felisberto Vasconcellos, professor titular da Universidade
Federal de Juiz de Fora, se reveste de rasgos irônicos, de neologismos
trocadilhescos jocosos, o que decerto torna a leitura do livro, em certo
aspecto, um divertimento. Porém, o autor não se preocupa em atender ao famoso
preceito horaciano do docere cum
delectare, isto é, do ensinar
deleitando, pois abre mão, sem
parcimônia, da seriedade de um elemento ao qual não se deve permitir brincadeiras
nesse gênero textual: a consistência dos argumentos.
A
obra objetiva desenvolver uma crítica ampla ao Brasil político-econômico,
sócio-cultural e acadêmico entre meados do século passado e os primeiros anos
do atual. Para o autor, escancaradamente alinhado à tradição latino-americana
do anti-imperialismo marxista, José Guilherme Merquior, “um dos mais
importantes ideólogos brasileiros do liberalismo”, (2004, p.15) resplandece
envolto na culpa de ter difundido uma visão política compactuada com os
interesses do capital “videofinanceiro”.
Embora
para o prefaciador do volume, Yago Euzébio Bueno de Paiva Junho, a tese central
da obra professe que “o pensamento merquiorano foi um dos principais
responsáveis pela convergência dos projetos políticos liberais e
social-democratas a partir de 1989”, (2004, p.9-10) o próprio Felisberto
Vasconcellos é mais cauteloso, ao prevenir e defender que
“Seria
arriscado afirmar que o pensamento liberal de José Guilherme Merquior encontrar-se-ia
inteiramente materializado no poder desde 1989. No entanto, é imperioso ir em
busca das conexões entre sua trajetória intelectual e o quadro político
contemporâneo da sociedade brasileira.”
(2004, p.35)
No
entanto, várias afirmações peremptórias ficam sem o devido embasamento. Teria o
sociólogo Fernando Henrique Cardoso lido os textos liberais de Merquior, a
ponto de considerá-lo uma influência decisiva no exercício da presidência? A
própria obra do líder tucano não fornece evidências sólidas disso. Convém ler,
a tal propósito, o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, da qual
o ex-presidente ocupa a cadeira no 36, a mesma de José Guilherme
Merquior. As referências ao autor de Liberalismo:
antigo e moderno quase não ultrapassam o nível protocolar da solenidade.
Além disso, de que dados Gilberto Felisberto Vasconcellos dispôs, a respeito da
recepção dos livros, artigos e ensaios de Merquior no meio político brasileiro,
para ter chegado às suas convicções?
Devemos
ter em vista que o enlace entre liberalismo, em sentido mais econômico, e
social-democracia, ou qualquer outra orientação mais afeita a intervenções
estatais, vem sendo propagandeada por autores de projeção mundial, como
Norberto Bobbio e Anthony Giddens. O filósofo político italiano preconizava o
chamado social-liberalismo, vertente liberal em que inclusive Merquior se
inseriu. Quanto ao britânico Giddens, é dele a famosíssima e ainda corrente expressão
Terceira via, título de um livro seu publicado
em 1998.
Em
Brazil no prego, Felisberto
Vasconcellos enaltece, quase página a página, a sociologia de Darcy Ribeiro e
ataca, ali e acolá, a de Fernando Henrique Cardoso. Mas por que o primeiro
seria sociólogo tão excelente quanto ignorado pela academia e o segundo tão ruim
quanto referido por trabalhos científicos? O leitor não deverá encontrar outra
resposta senão porque o autor do livro endossa as ideias ribeirinhas e abomina as feagaceanas.
Ponto-final. Gilberto Felisberto Vasconcellos também ensina que Getúlio Vargas
se matou motivado por questões relativas à Petrobrás, empresa pública sobre a
qual incidiam interesses do capital estrangeiro. Porém, o que comprova a
inusitada interpretação histórica? Trata-se apenas de uma pessoal convicção
dogmática?
A
obra de José Guilherme Merquior também nos tem a ensinar que o pensamento, de
índole seja científica, seja política, não pode dispensar as conexões com a
realidade, aqui compreendidas na forma de documentos, de dados históricos, de
estatísticas etc, que o fundamentem. Tal postura exemplar motivou Miguel Reale
a atribuir ao autor de Razão do poema
o epíteto de “paladino da realidade concreta”. Tinha toda a razão o eminente
jurista brasileiro.
Seja
como for, Brazil no prego (com “z”
mesmo, conforme o velho clichê esquerdista) se apoia numa leitura extensa de Merquior,
e aventa uma interessante hipótese de a razão merquioriana dever bastante ao
racionalismo marxista. Eis aí um belo filão a ser explorado. Gostaria de
destacar ainda o “Capítulo 13”, de título “A viagem sem viagem”, com seu
saboroso toque de crônica, muitíssimo bem dosado. E como não pasmar diante do
acerto profético, que finaliza a obra, a respeito dos últimos anos de política
executiva federal?
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