Havia
realmente uma necessidade de erguer-se contra a sabedoria convencional daquela
nebulosa mentalidade de Kulturkritik
que, depreciando tanto a história como a liberdade, por tanto tempo assombrou,
como teoria meio crua, o destino do pensamento na França contemporânea.
José
Guilherme Merquior (in “O renascimento da teoria política francesa”)
O
ataque contra a antiga herança cultural não conduz a uma nova forma de
associação, mas somente a uma espécie de alienação. É por essa razão,
parece-me, que devemos ser conservadores culturais. A alternativa é um tipo de
niilismo que se esconde sob a superfície dos textos de Rorty, Said, Derrida e
Foucault.
Roger
Scruton (Como ser um conservador)
Foi
no ano em que os militares permitiram o retorno de políticos civis à presidência
da República brasileira que José Guilherme Merquior publicou Foucault. Era seu décimo sexto livro, originalmente
redigido em inglês. Como quase sempre, não tardou a aparecer (já em 1985) edição
traduzida. O volume dava mais uma amostra do empenho merquioriano em travar
diálogo em âmbito internacional, e certificava a permanência da sua disposição combativa em avaliar as mais influentes linhas de pensamento da época.
Foucault ou o niilismo de cátedra,
sem perder o caráter ensaístico – marca da linguagem de Merquior –, constitui
um bloco monográfico, um tijolo feito todo da mesma matéria, que Merquior
arremessava em direção às cabeças contraculturais do que ele se aprazia em
denominar de humanismo irracionalista.
A esse livro se seguiriam, com estreitos laços de parentesco, The Western marxism (1986), From Prague to Paris (1986) e Liberalism: old and new (1991). Note-se
que os quatro títulos coincidem na língua estrangeira em que foram escritos e
na unidade de concepção, quero dizer, foram planejados, ab ovo, para serem livros. E repare-se: os três primeiros comungam
da intenção de refutar (respectivamente, a validade científico-acadêmica
da obra foucaldiana; a validade
político-filosófica do marxismo
ocidental; e a validade epistemológica do estruturalismo e do
pós-estruturalismo) e o último expressa, por sua vez, uma intenção de afirmar
(no caso, a diversidade, a legitimidade e a superioridade da tradição e do ideário
liberais. Com isso, as quatro obras formam uma tetralogia irmanada no
objetivo de lançar o programa merquioriano de reedificação ideológica do século XXI.
Adotemos
a conhecida demarcação cronológica de Eric Hobsbawm, para quem o século passado
tem início em 1914, deflagrada a Primeira Guerra Mundial, e fim em 1991, quando
se esfacela a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Gosto de
destacar coincidências de datas, embora, no mais das vezes, não compreenda tais
coincidências como algo muito além de encaixes de calendário, com algum poder
simbólico.
Assim:
a acima referida tetratologia merquioriana coincide, em termos de período de
publicação, com dois eventos capitais, um na história brasileira, outro na
história mundial, do “Pequeno Século XX”: respectivamente, o fim do regime civil-militar
e o fim da Guerra Fria. O novo cenário cujas cortinas ambos os eventos abriram parecia
requerer novo roteiro ou, pelo menos, novas coordenadas de atuação. Eis no que José
Guilherme Merquior procura contribuir com aqueles quatro títulos fundamentais
de sua obra. Antes de tudo, convencer que os inimigos maiores da modernidade burguesa
e capitalista estavam vencidos, na experiência da realidade concreta, conquanto
poderosos ainda na esfera mental: o marxismo e o pensamento (ou o antipensamento) contracultural arraigado
nas universidades do Ocidente, traduzido então em psicanálise, arte de
vanguarda e pós-estruturalismo. Em seguida, esclarecer a história e apresentar
as credenciais do liberalismo, em que se enfeixariam as ideias de racionalismo,
de ciência, de liberdade, de democracia... ideias essas precisamente
desacreditadas pelo conjunto dos estudos de Michel Foucault (1926-1984), um dos pensadores mais influentes da
segunda metade do século passado.
De
fato, a obra foucaldiana tornou-se importante fundamento para a visão
contestadora do establishment
ocidental, na medida em que denunciava, em perspectiva arqueológica, toda uma multissecular
opressão dos grupos sociais dominantes. Nesse entendimento, os loucos, os
criminosos, os estudantes, os operários, os fiéis, os pacientes e o corpo humano
eram vítimas preferenciais da estrutura racional e moral burguesa, dentre cujos
atos se destacariam o de vigiar e o
de punir, numa rede nem sempre
sensível e ostensiva (a política e a polícia, p.ex.), mas também sutil e quase
imperceptível na microfísica do poder
(atuante na psiquiatria, no sistema penal e escolar, nas fábricas, nas igrejas,
nos costumes etc).
Antes
do livro de 1985, José Guilherme Merquior já tinha enriquecido a recepção
brasileira da obra do filósofo (?)
francês. Segundo Eduardo Portella, em torno de 1970, quando ainda não se
dispunha, no Brasil, de “um conjunto sistemático de textos que descrev[esse] a
sua obra [de Foucault] e procur[asse] situá-la nas grandes correntes do
pensamento moderno”, (2008, p.9) a convite do recém-falecido editor da Tempo Brasileiro, Sérgio Paulo Rouanet e Merquior entrevistaram o autor de As palavras e as coisas, para que as
perguntas e as respostas fossem publicadas em volume. E estas vieram a integrar
O homem e o discurso (1971).
Diferentemente
do livro de 1985, não se verifica no registro daquela entrevista nenhuma
crítica incisiva, seja à abordagem, seja às conclusões da então já bem
constituída obra de quem era uma das estrelas de primeira grandeza da França
estruturalista. De fato, ambos os entrevistadores mostraram-se mais
interessados em obter esclarecimentos relativos à trajetória percorrida e a
percorrer do pensamento do entrevistado.
Aliás,
por isso mesmo é bem provável que o leitor familiarizado com o texto
merquioriano – erudito, assertivo, contestador – estranhe ou se decepcione com
sua participação, um tanto quanto harmonizadora.
Para dizer a verdade, as perguntas de Rouanet parecem ter mais consistência e
despertam mais interesse tanto do entrevistado quanto do leitor do que as de
Merquior. Todavia, em depoimento ouvido na ABL a 4 de outubro de 2001, Sérgio
Paulo Rouanet garantiu que seu companheiro, nessa entrevista histórica,
[...]
disse as coisas mais brilhantes e mais impressionantes, enquanto eu balbuciei
meia dúzia de coisas ininteligíveis. Mas, depois, como coube a mim a tarefa de editing, eu arrumei tudo de uma maneira
tão tendenciosa que dei a impressão de que as minhas perguntas tinham sido tão
inteligentes quanto as de José Guilherme. Foi uma falsificação, porque as
únicas coisas inteligentes da entrevista foram as ditas por Foucault e por José
Guilherme Merquior. (2001, p.253)
Fosse
como fosse, diante da “edição” dessa entrevista, em Foucault ou o niilismo de cátedra, Merquior é quase outro Merquior:
para dizer o mínimo, toneladas de páginas mais lido e refletido, e por isso muito
seguro dos efeitos nocivos das correntes filosóficas contraculturais em voga na
época, especialmente no meio acadêmico e intelectual brasileiro, contaminado
este, no fácil diagnóstico de Luiz Costa Lima, pelo “nosso culto da
improvisação” e pelo estado de “dependência cultural”. (cf. 1991, p.272-273) Elemento atípico da tabela periódica nacional,
José Guilherme Merquior talvez, na condição de ensaísta por natureza, tenha cometido
alguns improvisos de ideias. Entretanto, ao longo de toda sua trajetória de
crítico e pensador, sempre fez questão de impor sua pessoal independência cultural frente a qualquer
novidade importada – é o que comprova, dentre outros títulos de sua lavra, Foucault e o niilismo de cátedra.
Quando
Merquior dava a lume esse livro, Michel Foucault tinha falecido havia pouco
tempo (em junho de 1984). Todos os títulos importantes do autor francês já estavam publicados. E o ensaísta
brasileiro encampou o propósito admirável, hercúleo mesmo, de discutir a
totalidade dessa bibliografia ativa, além de munir-se de leitura de diversos
comentaristas da obra foucaldiana e outras mais numerosas referências atinentes
ao debate.
Antes
de avançar nesta resenha do livro em pauta, não resisto a escrever algumas
linhas sobre o aguçado faro “editorial” de Merquior. Houve quem o acusasse de
se valer, oportunista, dos vários assuntos em moda ao longo de sua vida –
Escola de Frankfurt, estruturalismo, psicanálise... – para tornar-se um
intelectual famoso. Talvez o objeto dessa acusação não seja falso. Mas isso não
implica necessariamente que o ensaísta, assim procedendo, incorresse em atitude
recriminável. E vejamos: se a publicação de Foucault
coincide com o falecimento recente do próprio Foucault, podemos lembrar aqui também
da tese Verso universo em Drummond
defendida em 1972, quando o poeta itabirano completava 70 anos de idade. De
volta à resenha:
No
propósito de apontar as defi-ciências da
obra foucaldiana, José Guilherme Merquior a enquadra, logo nos primeiras
páginas, numa linhagem que denomina de “lítero-filosófica”, marcada esta por
nela “alia[r-se] a brilhantes dotes literários uma teorização desbragadamente
liberta de disciplina analítica”. (1985, p.12)
Tal
percepção, Merquior foi extraí-la de Ernest Gellner, seu orientador no
doutorado em Sociologia pela London School of Economics. Para o famoso teórico
da nação e do nacionalismo, citado numerosas vezes no volume do então
ex-orientando, evidencia-se nos textos daquela linhagem, prestigiosa na França,
um “machismo intelectual”, na medida
em que “a força de um argumento não é sustentada por sua qualidade lógica – é
transmitida pela inabalável autoconfiança de quem o enuncia”. (1985, p.243)
Sendo
assim, talvez possamos aproximar a imagem do pensamento de Foucault delineada
no livro de Merquior ao ídolo do teatro,
conforme tipologia de Francis Bacon, descrita por Bolívar Lamounier nestas
palavras:
Os
ídolos do teatro solapam o nosso senso crítico e nos induzem a aceitar certas
ideias e teorias não por seu valor
intrínseco, mas pelo pretenso saber
de quem as enuncia. Essa advertência baconiana diz respeito aos riscos a
que podemos ser levados por uma deferência excessiva em relação a determinados
autores ou escolas de pensamento, ou por uma admiração devida menos a seu
mérito intrínseco que à importância que lhes é socialmente atribuída, ou que
eles mesmos se atribuem.” (2016, p.19-20)
Trata-se,
está claro, de dimensões distintas – o “machismo intelectual” reside na
escrita; o “ídolo do teatro”, na figura autoral), mas sem dúvida elas se
tangenciam nesse caso. Seja como for, nota-se que a investida merquioriana
contra o filósofo-rebelde francês é dura, desde o primeiro round. A análise campenga,
conquanto estilosa e cheia de testosterona, se construiria de perspectivas, informações
e interpretações históricas imprecisas ou equivocadas. Mas no peito desse brutamontes argumentativo há um coração que bate. Pois a denúncia, respaldada
em Lawrence Stone, Klaus Doerner, entre outros, ao se concentrar na História da loucura, por exemplo, pontua:
“Em essência, o livro de Foucault é uma argumentação passional contra aquilo
que aprendemos a ver como sendo o humanitarismo do Iluminismo”, (1985, p.40)
pois:
A
acusação de “sadismo moralizante”, aplicada por Foucault à infância da
psiquiatria, é um exemplo de melodrama
ideológico. É muito bom tomar posição du
côté de la folie [favorável à loucura] – só que, na ânsia de se colocarem
os insanos no papel de vítimas da sociedade, pode-se facilmente esquecer que
muitas vezes eles são profundamente infelizes e que o flagelo de que padeciam
exigia terapia.” (1985, p.40)
De
fato, essa espécie de crítica social – de perigosa ênfase libertária – contra
os paradigmas da civilização ocidental, a se autointitular porta-voz dos humilhados e ofendidos pela modernidade,
pela sociedade burguesa, como muito bem destaca Merquior, vem a resultar, em
última instância, num despautério irresponsável e sujeito, na prática, a
ultrajantes contradições e consequências. Facilmente se pode entrever, no
espírito compassivo foucaldiano, um substrato de origem cristã. Para falar mais
claro: a tomada de partido em favor dos oprimidos, postura que se arrogam autores como
Foucault, não parece negar a gênese religiosa que eles mesmos pretendem refutar
e combater. Além disso, até aonde nos levaria a consumação do projeto
libertário? Pois aí a liberdade dos mais frágeis e desamparados coexistiria com
a liberdade dos mais fortes e opressores. No fim das contas, portanto, em vez
de se eliminar as condicionantes da violência, esta seria exponencialmente agravada:
afinal, por que revoltar-se perante um estupro coletivo de uma garota de 16
anos de idade, se os agentes do crime são “livres” para cometê-lo?
Há
outras contradições importantes que José Guilherme Merquior realça. Uma das
quais envolve a questão da inexistência da verdade, pauta central das críticas
de pretenso caráter nietzschiano do autor de As palavras e as coisas. Quanto a isso, o ensaísta fluminense
escreve: “[...] qualquer que fosse o tipo de historiografia que pretendesse
fazer – a dos historiadores ou qualquer outra –, Foucault era o primeiro a
afirmar que as provas estavam a seu lado.” (1985, p.222-223) Ademais: “[...] no
fundo o projeto de Foucault parece atolado num gigantesco dilema
epistemológico: se exprime a verdade, então todo
saber é suspeito em sua pretensão de objetividade; nesse caso, porém, como pode
a própria teoria dar testemunho de sua verdade?” (1985, p.227)
Em
contrapartida, Merquior reconhece grandes contribuições e méritos na obra de
Michel Foucault, quem, como raros humanistas
da época, era “capaz de discutir a gramática de Port-Royal, os naturalistas
anteriores a Darwin ou a pré-história do moderno sistema penitenciário”. (1985,
p.19) E também:
Examina
grande quantidade de vetustas obras poeirentas em cada um desses campos
[“linguística, história natural e economia”], e novamente nega aos expoentes
mais notórios seus privilégios habituais. Descartes recebe tantas menções
quanto obscuros gramáticos; a história natural de Lineu e a economia de Adam
Smith são tratadas em pé de igualdade com vários autores muito menos conhecidos
hoje em dia. Essa atitude pouco
convencional merece louvor, pois possibilita ao historiador do pensamento
lançar um olhar novo sobre muitas ligações perdidas ou sepultas. (1985,
p.68-69)
Esse
reconhecimento de Merquior, aliás, comprova sua visão muito menos submissa ao status quo cultural do que alguns
conseguem imaginar. Finalizo este post, já demasiado longo, mencionando pelo
menos a polêmica havida entre o autor de As
ideias e as formas e seu amigo Sergio Paulo Rouanet em torno da divergência
sobre as possibilidades atualizadoras do iluminismo, dentre as quais a obra
foucaldiana, no que Rouanet acreditava, mas não Merquior. Parte unilateral
(infelizmente) do registro desse valioso episódio da história de nossa
inteligência consta no volume, de título tão merquioriano, As razões do iluminismo (1987). Vale a pena a leitura.
Referências bibliográficas
LAMOUNIER,
Bolívar. Liberais e antiliberais: a
luta ideológica do nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
LIMA, Luiz
Costa. “Dependência cultural e estudos literários” in Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. pp.266-278.
MERQUIOR, José
Guilherme. Foucault ou o niilismo de
cátedra. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
PORTELLA, Eduardo. “Apresentação”
in FOUCAULT, Michel et alii. O homem e o discurso: a arqueologia de
Michel Foucault. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.