A obra de Gilberto
[Freyre] representa a ilustração brasileira de longe mais interessante daquela
ponte ideológica entre decadentismo e modernismo [...].
Merquior
(As ideias e as formas)
O fato é que, se me
perguntarem, como me têm perguntado, o porquê da permanência de Casa grande & senzala, ou mesmo de Sobrados e mucambos, direi, sem exclusão
de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos.
Fernando
Henrique Cardoso (Pensadores que
inventaram o Brasil)
Este
que é o último ensaio de O estruturalismo
dos pobres e outras questões resenha Além
do apenas moderno, livro então
recentemente publicado do escritor pernambucano bem mais conhecido pelo título Casa grande & senzala (1933). O assunto
central do trabalho gilbertiano, de acordo com Merquior, é “a evolução do mundo
contemporâneo [que] se processa[ria] sob o signo de uma verdadeira revolução bio-social”. (1975, p.78) Ao
captar esse processo, Gilberto Freyre (1900-1987)
balizaria algumas das novidades de uma sociedade que lhe parecia afastar-se do
moderno para se estabelecer como pós-moderna.
Eis
aí, realmente, um tema de enorme interesse para José Guilherme Merquior, que o ainda
abordará, com maior desenvolvimento, em outros textos, a exemplo dos dois
primeiros do volume O fantasma romântico
e outros ensaios (1980), cujos títulos são “Em busca do pós-moderno” e “O
significado do pós-modernismo”. Até o início da década de 80, a ideia do
advento da pós-modernidade e mesmo a do pós-modernismo entusiasmará Merquior,
que tomava a primeira por uma continuidade, com as atualizações imprescindíveis,
da modernidade e o segundo por uma ruptura com os paradigmas estético-ideológicos
do alto modernismo europeu. Dali adiante, porém, quando o ensaísta se
conscientiza de que se trata – uma e outro –, acima de tudo, de uma negação da
modernidade, o ensaísta refutará essas novas direções de paradigma. De fato, em
“Aranha e abelha: para uma crítica da ideologia pós-moderna”, texto de 1985
recolhido em Crítica (1990), o autor
conclui: “O pós-moderno, seja arte ou teoria, significa ou um modernismo congelado
ou uma vanguarda enlouquecida – mas, em ambos os casos, seu significado
profundo restabelece a acusação modernista contra a época moderna.” (1990,
p.403)
Fosse
como fosse, o ensaio que encerra O
estruturalismo dos pobres e outras questões é de um autor que pressente
bons augúrios no pós-moderno e, assim, endossa a percepção de Gilberto Freyre
relativa à aclimatação do fenômeno histórico em terras tupiniquins:
Mestre
Gilberto não poupa nada do que, a pretexto de modernização, não só provoque
“atrasos no processo de pós-modernização do nosso país”, como lese e mutile
nossas virtualidades originais –
virtualidades de “gente psico-socialmente e sócio-culturalmente cruzada”, e, no
que cruzada, mais predisposta do que outros povos à miscigenação cultural que
implica a pós-modernidade – de contribuirmos decisivamente para a implantação
humanizadora do pós-moderno. O “saudosista” [que é Gilberto Freye] tem razão:
para o Brasil, a pós-modernização é uma questão de memória. (1975, p.85)
Tamanho
entusiasmo, do qual se sobressaem as cores verde e amarela, já não consegue – é
verdade – contagiar o brasileiro de nossos dias, estes talvez nem mais
propriamente consideráveis pós-modernos. De qualquer forma, naquele tempo de
pleno milagre econômico do Brasil, José Guilherme Merquior julgava salutar a
“contestação simultaneamente futurista e saudosista, arcaica e prospectiva” (1975,
p.80) que caracterizaria a pós-modernidade, conforme o laudo sociológico gilbertiano.
Essa postura dúplice, inclusive, na avaliação de Merquior, se diferenciaria
frontalmente de um presunçoso, velho conhecidíssimo renovador da história
humana:
Ao
contrário do marxismo de ontem, a mentalidade pós-moderna parece pouco soteriológica: pouco ou nada suscetível
de alardear virtudes dogmaticamente redentoras. O espírito pós-moderno não
estaria preso, como ainda há pouco o socialismo revolucionário, a essa crença
na idade áurea futura, nesse escatológico fim da História como drama [...] –
escatologia messiânica, para a qual o “terror da História” deve ser antes
ideologicamente abolido do que criticamente enfrentado. (1975, p.80)
Aspecto
especialmente positivo de Além do apenas moderno,
na visão de Merquior (quem se identificaria, mais tarde, como anarquista em
matéria de cultura), é justamente o concílio da face do conservadorismo com a
face do anarquismo em Gilberto Freyre, na medida em que o escritor pernambucano
“acrescenta ou substitui ao anelo [libertário] nietzscheano de uma
‘transmutação de todos os valores’, o senso sociológico, que reconhece no
passado o esboço de valores sufocados pela reificação e massificação do homem
na sociedade moderna.” (1975, p.82) Esse seria ou deveria ser, conforme a
resenha merquioriana do livro, o ethos da
pós-modernidade, na qual se daria um forte vínculo geracional antes entre netos
e avós do que entre pais e filhos. Nas palavras do autor de O estruturalismo dos pobres...:
Tradição
de avô para neto, com possível curto-circuito na etapa dos pais... eis o que
pede Gilberto. Até porque a superação de um
certo patriarcalismo não
significaria necessariamente a abolição da família como fator de cultura e
educação, havendo mesmo futurólogos que veem na família, e não só, talvez,
na nuclear, uma espécie de “raiz portátil” de alta valia, como fator de estabilização, para os habitantes
de um universo em perpétua, rápida e tumultuária metamorfose, como é o
nosso. (1975, p.81)
A
síntese neto-avô corresponderia, pois, ao consórcio anarquismo-conservadorismo.
Este enlace há de causar estranhamento à maioria dos leitores. Sobretudo hoje,
quando ao já gasto rótulo-xingamento neoliberal,
pregado às costas de um amplo espectro ideológico, vem sendo respondido com o
recauchutado comunista, cuspido na cara de outro não menos
amplo espectro ideológico. Tudo, está claro, em nome de um maniqueísmo
sloganesco (adjetivo que aprendi com Merquior), que se oferece como pseudo-recurso
tanto à esquerda quanto à direita. Nisso, menos por mérito do autor do que por
demérito de ignorância iludida longeva, a obra merquioriana também revela sua
atualidade.
Mas
o ensaísta carioca não endossou toda a linha de pensamento traçada
particularmente em Além do apenas moderno. A postulação gilbertiana de um fracasso
social e obsolescência do liberalismo, contraposto à nova solução do libertarismo,
definitivamente não poderia encontrar acolhida em nosso maior pensador liberal,
que o então defendia nestes termos:
O
liberalismo pode ter caducado como filosofia; mas as instituições liberais
[...] permanecem algo essencial à dignidade humana numa
sociedade diversificada e complexa. [...] Além disso, que melhor instrumento
para o libertarismo, em seu combate contra a “tirania organizacional da
sociedade”, do que o pleno exercício das instituições liberais? O certo é que,
quando os libertarismos elegem outros meios de luta, terminam fatalmente
imitando as práticas totalitárias – e isso é o pior que pode acontecer com os
libertarismos. (1975, p.83)
Merquior
voltará a comentar a obra de Gilberto Freyre mais de uma vez. No
artigo-homenagem publicado no Jornal do
Brasil a 19 de abril de 1980 (texto coligido em As ideias e as formas), explica, quase repetindo-se, que “o conservadorismo revolucionário de
Gilberto não é tradicionalismo à
latina, imobilista e reativo; e sim tradição à inglesa, móvel e ativa”. (1981, p. 274) E também acerca da questão liberal
pondera, tomando outra perspectiva, a de defesa desse “sociólogo
substantivamente escritor”: (1981, p.272)
Sem
dúvida, a indiferença de Gilberto ante a sorte da nossa democracia liberal nos
últimos decênios – indiferença com a
qual não concordo – é responsável por parte da pouca simpatia que lhe votam
vários tenores das novas gerações. Mas essa razão me parece bastante
superficial, sobretudo quando se leva em conta que mais da metade de seus
críticos nesse ponto estão longe de ser eles próprios liberais provados e
convictos. No fundo, o que não se perdoa
a Gilberto Freyre não é sua frieza face à ordem liberal; é o seu voluntário
afastamento em relação ao marxismo e posições afins – como se isso fosse,
em si, algum pecado capital. (1981, p.274-275)
Conquanto
generalizante, não se negará a ampla parcela de verdade nessa explicação, que houve
de ecoar em trabalhos recentes como o do professor Juremir Machado da Silva,
segundo o qual: “Vítima de oponentes marxistas, Freyre teve a sua sofisticada
interpretação simplificada, adulterada e manipulada.” (2010, p.71)
Em
1987, José Guilherme Merquior publicará também “Gilberto e depois”,
originalmente redigido em espanhol, e que virá a figurar, traduzido com revisão
do autor, na antologia Crítica. Nesse
ensaio, o assunto da pós-modernidade reaparece, e, ademais, se reconhece o
sociólogo anarco-conservador o introdutor, no Brasil, do “tema do pós-moderno,
em sentido estritamente antipuritano”, (1990, p.347) isto é, numa linguagem
própria de um “humanista brincalhão, que terminou seus dias como um sábio algo
impudico”. (1990, p.348)
Gilberto
Freyre conhecia tanto a pessoa quanto a obra de Merquior, e parecia admirar
igualmente a ambas. Notório estudioso de Joaquim Nabuco, o autor de Ordem e progresso lisonjeou o “magistral
crítico literário e de ideias que é o Professor José Guilherme Merquior”,
(2010, p.78) ao mencioná-lo em artigo sobre o célebre abolicionista.
Embora
houvesse divergências entre os dois não apenas acerca de Nabuco – Gilberto
chegou a noticiar, todo orgulhoso de si, que Merquior havia acatado a uma
correção sobre o tema –, o trecho seguinte, sem as referências, gera dúvidas quanto
a por qual deles – se pelo autor de Casa
grande & senzala, se pelo autor de O
véu e a máscara – teria sido escrito:
Porque
a tendência, em certos meios brasileiros, vem sendo para diplomarem-se mestres,
bacharéis, doutores, por caridade: fechando-se os olhos à sua ignorância.
Tendo-se pena dos coitadinhos que querem diplomas sem estudos. Por conseguinte:
considerando-se uns tiranos, uns arbitrários, uns desumanos, os professores que
exigem dos alunos um mínimo de conhecimento. Um mínimo de honestidade
intelectual.
Referências bibliográficas:
FREYRE,
Gilberto. Em torno de Joaquim Nabuco.
São Paulo: A Girafa, 2010.
MERQUIOR, José
Guilherme. As ideias e as formas. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte
e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
______. O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
SILVA, Juremir
Machado da. “Gilberto Freyre, o clássico injustiçado”. ALCEU. v.10, n.20, pp-70-81, jan-jun de 2010. PUC-RIO.
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