domingo, 11 de junho de 2017

Riquezas de um pequeno baú: O estruturalismo dos pobres e outras questões (4ª parte)



A obra de Gilberto [Freyre] representa a ilustração brasileira de longe mais interessante daquela ponte ideológica entre decadentismo e modernismo [...].

Merquior (As ideias e as formas)

O fato é que, se me perguntarem, como me têm perguntado, o porquê da permanência de Casa grande & senzala, ou mesmo de Sobrados e mucambos, direi, sem exclusão de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos.


Fernando Henrique Cardoso (Pensadores que inventaram o Brasil)

Seis ensaios compõem o livro menorzinho de José Guilherme Merquior, O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975). Não obstante suas restritas dimensões (87 páginas em pequeno formato, na única edição até agora, pela Tempo Brasileiro), o volume apresenta o cardápio, pode-se dizer, completo dos principais interesses do autor. O combate ao formalismo disseminado na crítica literária, na filosofia e nas universidades responde ‘presente’ no primeiro texto, “O estruturalismo dos pobres”, e no quinto, “O idealismo do significante (a Grammatologie de Jacques Derrida)”. O ser, a função e as tarefas da literatura e das artes na sociedade contemporânea aparecem discutidos na sequência “Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda: reabrindo o debate”, “Ut ecclesia parnassus: sobre a função social do escritor na civilização industrial” e “Malraux contra Gide”, respectivamente segundo, terceiro e quarto ensaios, nos quais Merquior afirma a conexão fundamental, mediante a mímese, sem prejuízo da autonomia da linguagem artística, entre esta e a realidade social. Por fim, a questão da modernidade e da pós-modernidade, além da atração pela área da sociologia, dividem espaço em “Gilberto Freyre além da modernidade”.

Este que é o último ensaio de O estruturalismo dos pobres e outras questões resenha Além do apenas moderno, livro então recentemente publicado do escritor pernambucano bem mais conhecido pelo título Casa grande & senzala (1933). O assunto central do trabalho gilbertiano, de acordo com Merquior, é “a evolução do mundo contemporâneo [que] se processa[ria] sob o signo de uma verdadeira revolução bio-social”. (1975, p.78) Ao captar esse processo, Gilberto Freyre (1900-1987) balizaria algumas das novidades de uma sociedade que lhe parecia afastar-se do moderno para se estabelecer como pós-moderna.

Eis aí, realmente, um tema de enorme interesse para José Guilherme Merquior, que o ainda abordará, com maior desenvolvimento, em outros textos, a exemplo dos dois primeiros do volume O fantasma romântico e outros ensaios (1980), cujos títulos são “Em busca do pós-moderno” e “O significado do pós-modernismo”. Até o início da década de 80, a ideia do advento da pós-modernidade e mesmo a do pós-modernismo entusiasmará Merquior, que tomava a primeira por uma continuidade, com as atualizações imprescindíveis, da modernidade e o segundo por uma ruptura com os paradigmas estético-ideológicos do alto modernismo europeu. Dali adiante, porém, quando o ensaísta se conscientiza de que se trata – uma e outro –, acima de tudo, de uma negação da modernidade, o ensaísta refutará essas novas direções de paradigma. De fato, em “Aranha e abelha: para uma crítica da ideologia pós-moderna”, texto de 1985 recolhido em Crítica (1990), o autor conclui: “O pós-moderno, seja arte ou teoria, significa ou um modernismo congelado ou uma vanguarda enlouquecida – mas, em ambos os casos, seu significado profundo restabelece a acusação modernista contra a época moderna.” (1990, p.403)

Fosse como fosse, o ensaio que encerra O estruturalismo dos pobres e outras questões é de um autor que pressente bons augúrios no pós-moderno e, assim, endossa a percepção de Gilberto Freyre relativa à aclimatação do fenômeno histórico em terras tupiniquins:
Mestre Gilberto não poupa nada do que, a pretexto de modernização, não só provoque “atrasos no processo de pós-modernização do nosso país”, como lese e mutile nossas virtualidades originais – virtualidades de “gente psico-socialmente e sócio-culturalmente cruzada”, e, no que cruzada, mais predisposta do que outros povos à miscigenação cultural que implica a pós-modernidade – de contribuirmos decisivamente para a implantação humanizadora do pós-moderno. O “saudosista” [que é Gilberto Freye] tem razão: para o Brasil, a pós-modernização é uma questão de memória. (1975, p.85)

Tamanho entusiasmo, do qual se sobressaem as cores verde e amarela, já não consegue – é verdade – contagiar o brasileiro de nossos dias, estes talvez nem mais propriamente consideráveis pós-modernos. De qualquer forma, naquele tempo de pleno milagre econômico do Brasil, José Guilherme Merquior julgava salutar a “contestação simultaneamente futurista e saudosista, arcaica e prospectiva” (1975, p.80) que caracterizaria a pós-modernidade, conforme o laudo sociológico gilbertiano. Essa postura dúplice, inclusive, na avaliação de Merquior, se diferenciaria frontalmente de um presunçoso, velho conhecidíssimo renovador da história humana:

Ao contrário do marxismo de ontem, a mentalidade pós-moderna parece pouco soteriológica: pouco ou nada suscetível de alardear virtudes dogmaticamente redentoras. O espírito pós-moderno não estaria preso, como ainda há pouco o socialismo revolucionário, a essa crença na idade áurea futura, nesse escatológico fim da História como drama [...] – escatologia messiânica, para a qual o “terror da História” deve ser antes ideologicamente abolido do que criticamente enfrentado. (1975, p.80)

Aspecto especialmente positivo de Além do apenas moderno, na visão de Merquior (quem se identificaria, mais tarde, como anarquista em matéria de cultura), é justamente o concílio da face do conservadorismo com a face do anarquismo em Gilberto Freyre, na medida em que o escritor pernambucano “acrescenta ou substitui ao anelo [libertário] nietzscheano de uma ‘transmutação de todos os valores’, o senso sociológico, que reconhece no passado o esboço de valores sufocados pela reificação e massificação do homem na sociedade moderna.” (1975, p.82) Esse seria ou deveria ser, conforme a resenha merquioriana do livro, o ethos da pós-modernidade, na qual se daria um forte vínculo geracional antes entre netos e avós do que entre pais e filhos. Nas palavras do autor de O estruturalismo dos pobres...:

Tradição de avô para neto, com possível curto-circuito na etapa dos pais... eis o que pede Gilberto. Até porque a superação de um certo patriarcalismo não significaria necessariamente a abolição da família como fator de cultura e educação, havendo mesmo futurólogos que veem na família, e não só, talvez, na nuclear, uma espécie de “raiz portátil” de alta valia, como fator de estabilização, para os habitantes de um universo em perpétua, rápida e tumultuária metamorfose, como é o nosso. (1975, p.81) 

A síntese neto-avô corresponderia, pois, ao consórcio anarquismo-conservadorismo. Este enlace há de causar estranhamento à maioria dos leitores. Sobretudo hoje, quando ao já gasto rótulo-xingamento neoliberal, pregado às costas de um amplo espectro ideológico, vem sendo respondido com o recauchutado comunista, cuspido na cara de outro não menos amplo espectro ideológico. Tudo, está claro, em nome de um maniqueísmo sloganesco (adjetivo que aprendi com Merquior), que se oferece como pseudo-recurso tanto à esquerda quanto à direita. Nisso, menos por mérito do autor do que por demérito de ignorância iludida longeva, a obra merquioriana também revela sua atualidade.

Mas o ensaísta carioca não endossou toda a linha de pensamento traçada particularmente em Além do apenas moderno. A postulação gilbertiana de um fracasso social e obsolescência do liberalismo, contraposto à nova solução do libertarismo, definitivamente não poderia encontrar acolhida em nosso maior pensador liberal, que o então defendia nestes termos:

O liberalismo pode ter caducado como filosofia; mas as instituições liberais [...] permanecem algo essencial à dignidade humana numa sociedade diversificada e complexa. [...] Além disso, que melhor instrumento para o libertarismo, em seu combate contra a “tirania organizacional da sociedade”, do que o pleno exercício das instituições liberais? O certo é que, quando os libertarismos elegem outros meios de luta, terminam fatalmente imitando as práticas totalitárias – e isso é o pior que pode acontecer com os libertarismos. (1975, p.83)

Merquior voltará a comentar a obra de Gilberto Freyre mais de uma vez. No artigo-homenagem publicado no Jornal do Brasil a 19 de abril de 1980 (texto coligido em As ideias e as formas), explica, quase repetindo-se, que “o conservadorismo revolucionário de Gilberto não é tradicionalismo à latina, imobilista e reativo; e sim tradição à inglesa, móvel e ativa”. (1981, p. 274) E também acerca da questão liberal pondera, tomando outra perspectiva, a de defesa desse “sociólogo substantivamente escritor”: (1981, p.272)

Sem dúvida, a indiferença de Gilberto ante a sorte da nossa democracia liberal nos últimos decênios – indiferença com a qual não concordo – é responsável por parte da pouca simpatia que lhe votam vários tenores das novas gerações. Mas essa razão me parece bastante superficial, sobretudo quando se leva em conta que mais da metade de seus críticos nesse ponto estão longe de ser eles próprios liberais provados e convictos. No fundo, o que não se perdoa a Gilberto Freyre não é sua frieza face à ordem liberal; é o seu voluntário afastamento em relação ao marxismo e posições afins – como se isso fosse, em si, algum pecado capital. (1981, p.274-275)

Conquanto generalizante, não se negará a ampla parcela de verdade nessa explicação, que houve de ecoar em trabalhos recentes como o do professor Juremir Machado da Silva, segundo o qual: “Vítima de oponentes marxistas, Freyre teve a sua sofisticada interpretação simplificada, adulterada e manipulada.” (2010, p.71)

Em 1987, José Guilherme Merquior publicará também “Gilberto e depois”, originalmente redigido em espanhol, e que virá a figurar, traduzido com revisão do autor, na antologia Crítica. Nesse ensaio, o assunto da pós-modernidade reaparece, e, ademais, se reconhece o sociólogo anarco-conservador o introdutor, no Brasil, do “tema do pós-moderno, em sentido estritamente antipuritano”, (1990, p.347) isto é, numa linguagem própria de um “humanista brincalhão, que terminou seus dias como um sábio algo impudico”. (1990, p.348)

Gilberto Freyre conhecia tanto a pessoa quanto a obra de Merquior, e parecia admirar igualmente a ambas. Notório estudioso de Joaquim Nabuco, o autor de Ordem e progresso lisonjeou o “magistral crítico literário e de ideias que é o Professor José Guilherme Merquior”, (2010, p.78) ao mencioná-lo em artigo sobre o célebre abolicionista.

Embora houvesse divergências entre os dois não apenas acerca de Nabuco – Gilberto chegou a noticiar, todo orgulhoso de si, que Merquior havia acatado a uma correção sobre o tema –, o trecho seguinte, sem as referências, gera dúvidas quanto a por qual deles – se pelo autor de Casa grande & senzala, se pelo autor de O véu e a máscara – teria sido escrito:

Porque a tendência, em certos meios brasileiros, vem sendo para diplomarem-se mestres, bacharéis, doutores, por caridade: fechando-se os olhos à sua ignorância. Tendo-se pena dos coitadinhos que querem diplomas sem estudos. Por conseguinte: considerando-se uns tiranos, uns arbitrários, uns desumanos, os professores que exigem dos alunos um mínimo de conhecimento. Um mínimo de honestidade intelectual.

Referências bibliográficas:

FREYRE, Gilberto. Em torno de Joaquim Nabuco. São Paulo: A Girafa, 2010.

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.


SILVA, Juremir Machado da. “Gilberto Freyre, o clássico injustiçado”. ALCEU. v.10, n.20, pp-70-81, jan-jun de 2010. PUC-RIO.

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