O britânico Matthew Arnold (1822-1888) figura na lista dos
críticos literários que José Guilherme Merquior mais admirava, dentre os quais
se encontram, em destaque, os estrangeiros Erich Auerbach, Hugo Friedrich,
Walter Benjamin, Georg Lukács e os compatriotas Antonio Candido, Augusto Meyer
e Araripe Júnior. Em 1972, o autor de Saudades
do carnaval não perdeu a oportunidade da efeméride, e publicou, no número
10 da prestigiada revista acadêmica portuguesa Colóquio/Letras, o texto “Para o sesquicentenário de Matthew
Arnold”.
A lembrança comemorativa desse que seria “o mais europeu dos
ensaístas ingleses” (1972, p.21) justificava-se por se tratar de “um dos grandes patronos da crítica não formalista”, (1972, p.18) e tal
condição consiste no mote de todo o ensaio, que José Guilherme Merquior redigiu
na Alemanha.
Poucas vezes Merquior deixou de ostentar sua postura
antiformalista nos numerosos textos sobre literatura e arte que nos legou. O
antiformalismo, afinal, constitui uma das constantes do seu pensamento, uma
causa que sua militância intelectual abraçou desde as primeiras publicações, na
década de 1960, e assim permaneceu ao longo dos anos 80.
Esse longevo embate crítico merquioriano decorre de um
contexto em que o estruturalismo francês, que se inicia com a antropologia de
Claude Lévi-Strauss para em seguida abarcar diversas áreas das ciências
humanas, como a história, a filosofia, a psicanálise e a própria crítica
literária, conquista amplo espaço nas universidades brasileiras, especialmente
no decênio de 1970, convertendo-se em metodologia rigorosa de análise e bandeira
em favor de uma abordagem imanentista do objeto de estudo.
Em linhas gerais, com abordagem imanentista quer-se dizer a
consideração estrita do texto (no caso da literatura), dos seus mecanismos
semânticos, sem dispensar-se maior ou mesmo nenhuma atenção a aspectos como o
contexto histórico, biográfico, sociológico, cultural no qual teria surgido a
obra em questão. Essa perspectiva opunha-se à velha tradição, ainda
sobrevivente, do século XIX, quando os críticos literários costumavam recorrer
e/ou focalizar a vida do escritor, pretendiam desvendar o que se teria passado
na cabeça (ou no coração) dos poetas, as influências do momento e do local em
que escreveram, enquanto o significado textual propriamente se perdia no
horizonte interpretativo. Ao comentar o célebre soneto “Alma minha gentil que te
partiste” de Camões, por exemplo, Joaquim Nabuco se limita, em síntese, a
referir-se à beleza rara desses versos, que só poderiam brotar de um amor
intenso, e a especular em torno da identidade da musa inspiradora.
À semelhança de outras correntes do século XX, como o
Formalismo russo, o New Criticism
anglo-americano e a estilística europeia, a crítica estruturalista se
desvencilha daquelas preocupações e se volta, sobretudo, para como se organiza
– ou se estrutura – a obra literária, desta reconhecendo a autonomia frente a
aspectos tidos por extratextuais. Nisso, resiste inclusive à tentação de
exprimir juízos de valor, atitude secularmente característica da crítica.
Aluno de Lévi-Strauss na École Pratique des Hautes Études em
Paris entre os últimos anos da década de 60, José Guilherme Merquior discerniria,
nas suas palavras, o “estruturalismo autêntico” do, também nas suas palavras, “estruturalismo
dos pobres”. A primeira expressão aparece na “Nota prévia” ao livro A estética de Lévi-Strauss (1975); a
segunda, no título de ensaio que se repete no do pequeno volume O estruturalismo dos pobres e outras
questões (1975). No que um se difere do outro? Em De Praga a Paris, Merquior destaca: “Eu, pelo menos, considero que
uma das melhores coisas do estruturalismo francês clássico [o exposto em teoria
e posto em prática por Lévi-Strauss] é exatamente a sadia adoção de uma
perspectiva universalista.” (1991, p. 227) Quanto à versão, digamos, fajuta – o
problema se encontra tanto na “fúria [...] contra a mímese e o conteúdo” (1991,
p.227) e no pedantismo terminológico, responsável por obscurecer as análises
numa linguagem só para iniciados, quanto na consequente “grossa arbitrariedade
das interpretações” intermediada pelo fetichismo do método. (cf. 1975, pp.9-10)
Merquior subscreve a importância e a necessidade de se reconhecer
a autonomia da forma literária, já colocada em relevo por Aristóteles na Poética e por Kant na Crítica do juízo, conforme assinala o ensaísta
brasileiro em A astúcia da mímese (1972)
e “Sobre a doxa literária”, texto coligido no volume Crítica (1990). Todavia, o estruturalismo acabará por encetar, muitas
vezes, uma “análise formal degenerada, ou seja, formalista, sustentando a ilusão
da insularidade do texto literário”. (1972, p.17)
Comemorar os 150 anos de nascimento de Matthew Arnold dá a Merquior
a ocasião especial de reforçar sua insistente denúncia de que “a dimensão sociocultural da análise estrutural do texto
vem sendo obscurecida, quando não negada, e a função judicativa do discurso crítico vem sendo tratada com negligência ou
desdém”. (1972, p.16) A postura crítica merquioriana, que de fato se irmana com
a de um Antonio Candido, no Brasil, e a de um Erich Auerbach, no exterior, preconiza
que a forma, conquanto autônoma, ainda assim se vale, na efetivação de seu significado,
do contexto social, cultural, em suma, histórico. E, desse modo:
O recurso ao código da história visa tão-somente a conferir
objetividade à exegese crítica, prevenindo a arbitrariedade ou a irrelevância das
leituras “ventríloquas’ (Lévi-Strauss), isto é, daquelas análises em que o crítico,
embora paramentado com numerosos conceitos da moda, continua na verdade a projetar sentidos no texto em vez de lê-lo
em profundidade, contemplando, no signo de si que este é, o signo do social que
também nunca deixa de ser. (1972, p.16-17)
Matthew Arnold não daria bons exemplos de um crítico consciente
da autonomia da forma, sendo “em regra indiferente aos valores propriamente estilísticos”,
(1972, p.19) razão para várias restrições que receberia ao longo do século XX. Em
compensação, porém, o britânico teria praticado “uma atitude igualmente imprescindível
à crítica moderna: a problematização das relações entre literatura e sociedade”.
(1972, p.20) Problematização que, ademais, se revela, no caso arnoldiano, como “arma
de uma crítica da civilização”. (1972,
p.20) Adiante Merquior esclarece o alvo em questão: o ideário de Matthew Arnold
era o do “liberalismo conservador, extremamente
sensível à baixa dos valores humanos na sociedade industrial”. (1972, p.20)
É, sobretudo, por ter alvejado esses resíduos tóxicos da modernidade
(razões éticas, portanto) que o ilustre crítico inglês merecerá a admiração do melhor
escritor liberal brasileiro. A Arnold somente teria faltado “surpreender o impulso
de problematização da cultura na estrutura mesmo do texto literário”, (1972, p.22)
a exemplo do que se daria na fase pré-marxista, segundo Merquior, do húngaro Georg
Lukács.
Referências
bibliográficas
MERQUIOR,
José Guilherme. De Praga a Paris: o surgimento,
a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Trad. de Ana Maria de Castro
Gibson. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
______.
O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
______.
“Para o sesquicentenário de Matthew Arnold” in Colóquio Letras, Lisboa, no 10, Novembro de 1972.
pp.16-24.
Nenhum comentário:
Postar um comentário