Este é o título de outro ensaio de José Guilherme Merquior,
publicado na revista acadêmica portuguesa Colóquio/Letras
no mesmo ano (1972) do “Para o sesquicentenário de Matthew Arnold”, sobre o
qual discorri no post anterior. “Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas” também consta no volume Crítica (1990), antologia de textos
situados entre 1964 e 1989 com que o então pensador do liberalismo e doutor em
sociologia parecia festejar suas quase três décadas de atividade intelectual
iniciada na condição de crítico literário.
Não poderia ser diferente: Machado de Assis instigou valiosas
reflexões em Merquior. Registro disso são, além do ensaio acima referido, grande
parte do capítulo “Machado de Assis e a prosa impressionista”, encerramento do
volume De Anchieta a Euclides (1977),
e o breve artigo “Machado de Assis e a filosofia”, publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 1982, e depois
republicado em O elixir do apocalipse
(1983).
Muito do que Merquior ensina no ensaio da revista Colóquio/Letras se repete nos outros
dois, o que parece indicar que realmente o autor se concentrou, no tocante à
obra machadiana, na questão do gênero, do estilo e na sua força filosófica,
concentrada esta em questões morais e éticas. Na verdade, esses três aspectos
se entrelaçam, e evidenciam, em Machado de Assis, “a emergência de uma visão
problematizadora inédita na literatura brasileira” (1972, p.12)
Memórias
Póstumas de Brás Cubas, marco do
amadurecimento literário do escritor carioca, segundo José Guilherme Merquior,
“é um caso de novelística filosófica em tom bufo, um manual de moralista em
ritmo foliônico”. (1972, p.14) Todavia, adiante, o ensaísta nos garante que
O humorismo de Machado de Assis é uma atitude eminentemente
filosófica – mas não é uma “filosofia”. Metafisicamente, o humor machadiano não
tem conteúdo positivo. Daí, talvez, a sua terrível liberdade [...], a audaciosa
liberdade que permite a abordagem cômico-fantástica do real. Neste sentido, a
estrutura humorística de um livro como as Memórias
póstumas é verdadeiramente consubstancial à visão de mundo machadiana.
Machado não emprega o humor para “ilustrar” uma filosofia: ao contrário, o seu
humor – fazendo as vezes da inexistente metafísica – é filosofia; e esse fenômeno confere uma notável modernidade à sua
obra, porque nada é tão moderno quanto o eclipse das filosofias afirmativas.
(p.18-19)
Quanto ao gênero do romance que inaugura uma das vertentes
mais sofisticadas da narrativa realista na literatura ocidental, Merquior
ensina que se trata de um livro cômico-fantástico, de tradição tão ilustre
quanto antiga, caracterizada por apresentar, em linhas gerais:
[...] a) a ausência de qualquer distanciamento enobrecedor
na figuração dos personagens e de suas ações [...]; b) a mistura do sério e do cômico, de que resulta uma abordagem
humorística das questões mais cruciais: o sentido da realidade, o destino do
homem, a orientação da existência, etc.; c) a absoluta liberdade do texto em
relação aos ditames da verossimilhança [...]; d) a frequência da representação literária de estados psíquicos
aberrantes: desdobramentos da personalidade, paixões descontroladas,
delírios (como o delírio de Brás Cubas); e) o uso constante de gêneros intercalados – p. ex., de cartas
ou novelas – embutidos na obra global (como as historietas de Marcela, de D.
Plácida, do Vilaça e do almocreve, nas Memórias
póstumas). (1972, p.13-14)
Na escala de valores da crítica merquioriana, a qual nunca
marginalizou a função de julgamento no trato com a coisa literária e artística,
a passagem que negritei consiste num elemento da maior relevância. E ao assim
proceder, o ensaísta zelava pela sobrevivência da literatura e da arte na contemporaneidade,
já que cobrava dos escritores e dos artistas uma linguagem que, acima de tudo,
comunicasse, não cedendo à tentação vaidosa e egoísta de uma elaboração
despreocupada com as questões mais
cruciais.
Por fim, a respeito do estilo, as Memórias póstumas de Brás Cubas, ao lado de outras obras do autor,
convenceram Merquior do impressionismo machadiano, pois nelas se notaria
“[j]unto com a sua prosa artística, a sua aguda percepção do tempo e o
subjetivismo ‘decadente’ de seus personagens”. (1972, p.19) Porém, “Machado
parece até ir além do
impressionismo”, uma vez que na narrativa machadiana “o experimentalismo
ficcional está animado pelo espírito de zombaria”. (1972, p.19) É precisamente
essa lição, que ilumina aspecto pouco explorado pela historiografia e crítica
literárias do século passado, que vai se repetir e desenvolver cinco anos
depois, em De Anchieta a Euclides.