Bem-vindo seja, para
muito em breve, o quarto volume da Biblioteca José Guilherme Merquior da
editora É Realizações, com organização do prof. João Cezar de Castro Rocha. O
título: De Anchieta a Euclides, cuja
primeira edição data de 1977 (pela editora José Olympio), havendo ainda outras
duas, a de 79 (também pela José Olympio) e a de 96 (pela Topbooks). Tivemos a
grata honra de contribuir com um texto nessa edição, intitulado “Merquior ou a
rebeldia com razão”,[i]
e aqui gostaríamos de acrescentar comentários em torno desse mesmo livro,
objetivando situá-lo no contexto da crítica literária e do pensamento do
próprio Merquior, de modo bastante sintético.
A história das
literaturas nacionais consagrou-se como gênero de destaque na crítica literária
do século XIX, espécie de correspondente da epopeia para a poética clássica,
credencial de maior respeitabilidade que poderia laurear seu autor. Assim como
Francesco Petrarca e Cláudio Manoel da Costa ambicionaram ser reconhecidos,
sobretudo, por respectivamente África
e Vila Rica, dois poemas épicos
frustrados e sobrepujados pelo estro lírico dos poetas itálico e mineiro, com
mais felicidade Teófilo Braga em Portugal, Sílvio Romero e José Veríssimo no
Brasil realizaram-se como críticos literários, sobretudo, porque legaram suas monumentais
histórias da literatura portuguesa o primeiro e da literatura brasileira os
dois últimos.
Dois eventos básicos e
ideologicamente irmanados estabeleceram as diretrizes conceituais e o prestígio
desse gênero crítico ao longo do oitocentos. Um foi a consolidação da própria
história como disciplina de estatuto protocientífico, sob estímulo do
racionalismo iluminista da segunda metade do século anterior, o XVIII. Desde essa
mesma época, vinha se constituindo fenômeno político-cultural tipicamente
moderno, a nação, cujo destino e influência se podem medir por episódios como a
Revolução Francesa (1789) e as guerras de independência das colônias europeias
nas Américas. Ambos os eventos mencionados no início deste parágrafo atestavam
o decisivo abalo da concepção clássica de universalidade, no âmbito tanto
geográfico quanto cronológico. Era um contexto que incentivava pensar o
transcurso do tempo e das ações do homem através da ótica relativista,
privilegiando as particularidades identitárias que cada pátria procurava, a
partir de uma esfera discursiva, sem dúvida, restrita a uma elite, encarnar. De
qualquer forma, se, no Ancien Régime,
aristocratas de diferentes reinos sentiam-se mais próximos, em termos de
identificação, uns com os outros do que com o extrato popular de seus
respectivos reinos, a modernidade político-cultural delineada pela ideia de
nação – muito bem resumida no lema revolucionário da liberté, égalité et fraternité – disseminava o sentimento superior
de nacionalidade.
O despertar das
consciências nacionais no Ocidente do século XIX se serviu largamente da
literatura, a qual o romantismo libertava dos preceitos retóricos universais do
classicismo, passando a direcioná-la conforme projetos de índole patriótica ou
nacionalista, a exemplo do que se passou no Brasil, com a obra de Gonçalves
Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, e em Portugal com a de Almeida
Garrett e Alexandre Herculano. O grande artista clássico se tinha manifestado
pela obediência aos modelos, na manipulação engenhosa da imitatio e da aemulatio.
Já o grande artista romântico, compreendido como gênio, era a expressão do Volksgeist (o espírito do povo).
No decorrer do século
XIX, crítica literária e história da literatura – esta, aqui, não somente na
acepção de gênero textual – confundiram-se. Madame de Staël, cuja obra se impôs
como uma das mais influentes na primeira metade da centúria, compreendia a
literatura em relação às civilizações, chegando a propor mapeamento em que o
sul europeu, ensolarado (condição de estímulo a uma visão racional) se
caracterizava pela propensão ao clássico, ao passo que o norte do continente,
brumoso (condição de estímulo a uma visão onírica) se caracterizava pela
propensão ao romântico. Álvares de Azevedo, em Literatura e civilização em Portugal, seguindo a lição de Staël, afirmará
que “Mudai as relações do país e a literatura
muda”.
Conquanto o poeta da Lira dos vinte anos
tenha destoado no tocante à afirmação nacionalista romântica da literatura
brasileira, sua perspectiva e seus pressupostos não se distinguem muito dos
que, como Joaquim Norberto, que planejou escrever nossa primeira História da literatura brasileira, e
Nunes Ribeiro, argumentavam em favor da nacionalidade autônoma, em relação a
Portugal, da produção literária do País então recém-independente.
O recorrente respaldo
biográfico, à maneira de Brunetière, que apontava na intenção autoral o
significado a ser desvendado na obra, era outro elemento do primado histórico
da crítica da época, sem ainda, geralmente, perder-se de vista o teor
patriótico ou nacionalista ou, pelo menos, da nacionalidade em questão. A
segunda metade do século, menos metafísica e mais positivista, que abraçou a
perspectiva de Hypolite Taine, não foi menos apegada à história (agora aliada
da geografia e da biologia), ao apontar no meio, na raça e no tempo as
condicionantes da constituição literária, cada uma delas, adotadas com maior
acento, respectivamente, em terras tupiniquins, por Araripe Júnior, Sílvio
Romero e José Veríssimo.
Logo nas primeiras décadas do
novecentos, novas correntes dos estudos literários golpearam a credibilidade da
história como perspectiva central de análise. O formalismo na Rússia, o New Criticism nos Estados Unidos e a
estilística na Europa questionaram a tradição crítica do século anterior,
acusada de concentrar-se em aspectos extratextuais, como a vida do autor
(biografia e contexto histórico), para explicar o objeto literário. Empolgava
os formalistas o objetivo morfológico-descritivo de reconhecer o que
constituiria a literariedade, isto é, o que diferenciava o texto literário do
não literário, assim como estabelecer fronteiras formais entre conto, novela e
romance, por exemplo. O New Criticism
norte-americano igualmente se aventurou em busca de compreensão imanentista da
literatura. Denominaram de “falácia da intenção” a autoria concebida como chave
interpretativa do texto, e postularam o close-reading,
a leitura cerrada, desatenta a tudo que não fosse o próprio texto, como
orientação metodológica de análise. Interessada acima de tudo na dimensão
fonética, lexical, sintática e tópica do objeto literário, a estilística, se
não eliminou de todo a perspectiva histórica, pelo menos procurou fugir ao
problemático propósito totalizador das tradicionais histórias da literatura,
preferindo eleger aspectos específicos a serem rastreados em determinado
período, via de regra, em âmbito antes cosmopolita que nacional, como é o caso
de Mímese (1946), de Erich Auerbach,
e Estrutura da lírica moderna (1956),
de Hugo Friedrich. Cumpre, todavia, observar que os
formalistas russos também, em estágio posterior de suas reflexões, concluíram
que a exclusividade da perspectiva imanente não bastava para a compreensão
satisfatória da literatura, uma vez que o conceito de estranhamento ou de
desautomatização perceptiva apenas se poderia dar dentro de uma série
literária, ou seja, o significado de uma obra pressupunha obras anteriores e
contemporâneas.
Quanto à segunda metade
do século XX, principalmente no tocante às décadas de 60 e 70, a crítica
literária do estruturalismo descartou mais ostensivamente a dimensão histórica,
incentivada pelo suposto primado da sincronia saussuriana. Em compensação, em
conferência pronunciada em 1967, na Universidade de Constança, Alemanha, Hans
Robert Jauss dava à luz nova corrente da crítica conhecida como estética da
recepção, que restaurava – embora sem a mesma repercussão avassaladora do
estruturalismo – o lugar da história nos estudos literários. A teoria que Jauss
anunciou centralizava o papel do leitor ou, mais especificamente, do
público-leitor na constituição histórica do significado do texto, conjugando o
corte sincrônico, para apreender-se o impacto da obra no contexto de
publicação, com o corte diacrônico, para avaliar-se como a obra vai sendo lida
de uma época para outra.
Essa falta de lugar ou
essa reacomodação da história dentro da crítica literária era consequência de
uma problematização maior, que reavaliava a história mesma como disciplina
legada ao novo século pela filosofia metafísica e pelo positivismo, perpassada
pelos discursos teleológicos e nacionalistas. De fato, o pensamento pós-moderno
(sendo Lyotard uma dessas vozes) viria a decretar a falência das grandes
narrativas, fazendo a historiografia mergulhar mais fundo no relativismo dos
vencidos e das minorias que até então não puderam ter voz nos registros
oficiais. Nos embalos dos Cultural
Studies, abalava-se, assim, a
própria ideia de cânone, um dos fundamentos que a perspectiva das histórias
literárias, cumpre dizê-lo, já começara no século XIX a comprometer, ao
focalizar preferencialmente os autores nacionais aos autores considerados universais,
na contracorrente da prerrogativa da episteme clássica.
Ao lado do Formalismo
Russo, da Estilística, da Estética da Recepção, correntes nas quais a dimensão
histórica ainda encontrava lugar, deve-se mencionar as propostas da literatura
comparada, os próprios Estudos Culturais em ascensão, e, de maior duração e
penetração nos três quartéis iniciais do século XX, a crítica de instrução
marxista e sociológica, a de George Lukács, a de Walter Benjamin, a de Theodor
Adorno, mais sofisticadas e inovadoras em relação à reflexologia que acabava
por incorrer em mais proximidade do que distanciamento da tradição crítica
oitocentista, praticada especialmente atrás da Cortina de Ferro.
De
Anchieta a Euclides, publicado em 1977, enfrentou a
complexidade desse contexto que acima pretendemos ter esboçado. Talvez o fato
de não ter se desviado propriamente das linhas tradicionais das histórias da
literatura explique a fria recepção que o livro de José Guilherme Merquior encontrou
na época. Algo lamentado, no calor ou na gelidez do momento, por Carlos Felipe
Moisés, para quem “o livro em pauta constitui um dos
mais importantes acontecimentos literários e culturais dos últimos anos”.
(1979, p.8) Porém, cabe a pergunta: o que o volume – uma “breve história
da literatura brasileira” – efetivamente trazia de contribuição aos estudos
literários nacionais?
Uma coisa é certa: o
gênero “história da literatura”, no Brasil daquele período (meados da década de
1970), parecia mesmo manifestar sinais de redução de prestígio. Consideremos o
arco de 1967 a 1978, ou seja, os nove anos antes e o ano depois da publicação
de De Anchieta a Euclides. À guisa de
amostragem, podemos citar o aparecimento massivo de reedições: de A literatura no Brasil, organizada por
Afrânio Coutinho, de Formação da
literatura brasileira de Antonio Candido, da História da literatura brasileira de Antônio Soares Amora, da Pequena história da literatura brasileira
de Ronald de Carvalho, da História da
literatura luso-brasileira de Francisco da Silveira Bueno, da História da literatura brasileira de
Nelson Werneck Sodré, da Presença da
literatura brasileira de José Aderaldo Castello e Antonio Candido, da História da literatura brasileira de
Lucia Miguel-Pereira, da coletânea da Cultrix, composta pelos volumes Manifestações literárias do período colonial,
de José Aderaldo Castello; O romantismo,
de Antônio Soares Amora; O realismo,
de João Pacheco; O simbolismo, de
Massaud Moisés; O pré-modernismo, de
Alfredo Bosi; e O modernismo, de
Wilson Martins, da História da literatura
brasileira de Artur Mota, além da mais antigas História da literatura brasileira de Sílvio Romero e a de José
Veríssimo; e da 1ª à 6ª edições da História
concisa da literatura brasileira de Alfredo Bosi. Fiquemos por aqui. Dessa
lista, que pretendemos seja significativa, parece-nos correto concluir, por um
lado, que a demanda editorial por livros desse gênero, marcadamente didático,
justificava a publicação de um título como o de José Guilherme Merquior. Por
outro lado, que a maior parte dos que acima elencamos tinha vindo a público na
década de 1960 ou mesmo antes. Desse modo, De
Anchieta a Euclides poderia se propor, de início, como contribuição à
atualização da nossa historiografia literária, ou, nas palavras que intitulam
outra resenha (de Márcio Almeida) sobre o livro, um “re-conhecimento da
literatura brasileira” (1978, p.10)
Conquanto nele se tenha
apontado equívocos de informação,[ii] De Anchieta a Euclides cumpria papel,
menos textual do que contextual, de um manifesto antiformalista, de modo que se
tratava de trabalho em plena sintonia com a campanha de seu autor, incomodado
com a sedução do estruturalismo na crítica literária da década de 70,
especialmente no Brasil. A data do prefácio do livro, 1974, é, aliás,
significativa: nesse mesmo ano, José Guilherme Merquior publica Formalismo e tradição moderna e o artigo
“O estruturalismo dos pobres” no Jornal
do Brasil. No ano seguinte, redigiria “Os estilos históricos na literatura
ocidental”, contribuição para o volume Teoria
literária, organizado pelo amigo
Eduardo Portella, e publicaria traduzida A
estética de Lévi-Strauss. Essas quatro intervenções se voltavam para um
mesmo propósito: a defesa de abordagem crítica na qual a história sociocultural
fosse captada na forma do objeto literário, a exemplo do que teria realizado,
sob aplauso de Merquior, expresso em nota à segunda edição do prefácio a De Anchieta a Euclides, Roberto Schwarz,
em Ao vencedor as batatas, livro publicado naquele mesmo ano de
1977.
A meta do crítico, na
visão de Merquior, era “saber ler a história no texto, em vez de dissolver o
texto na História”, conforme advertia no volume, citando Ezio Raimondi e
esclarecendo que tanto o sociologismo herdado do século XIX, que dissolvia
ainda no XX as obras literárias na condição de mero reflexo da ambiência histórica
(como o vinham fazendo muitos marxistas), quanto considerar o texto não em sua
autonomia, mas sim numa espécie de autarquia (como o vinham fazendo os
estruturalistas) eram soluções incapazes de compreender adequadamente o
fenômeno literário.
Em ensaio de homenagem
a Antonio Candido, coligido em Esboço de
figura, organizado por Celso Lafer, por ocasião da aposentadoria do grande
professor da USP, em fins da década de 70, José Guilherme Merquior informará
com orgulho sobre Formação da literatura
brasileira:
Símbolo
fecundo como poucos, e a justo título inspirador de toda uma inteligência de
nosso passado literário. Pessoalmente, foi nele (para não falar de várias
outras sugestões de Mestre Candido) que me inspirei (em De Anchieta a Euclides) ao tentar divisar a função latente do
momento seguinte na história de nossas letras: o pós-romântico visto como fase
de sofisticação técnico-intelectual do nosso sistema literário; como nele
tornaria a me inspirar, ao debuxar o perfil da função do modernismo como aprofundamento
do potencial de autognose da cultura brasileira. (p.124)
Para Merquior, o livro
de 1959 de Candido, ademais, realizava modelarmente a postura crítica frente à
literatura, consoante a concepção de que o
texto é resultado, isto é, a obra dialoga necessariamente com a sociedade
onde é produzida, porém o social converte-se em forma na criação literária.
Citemos ainda o ensaísta carioca: “No fundo, Antonio Candido subscreveria sem
hesitar o lema do jovem Lukács [...]: o social, na obra de arte, é antes de tudo
a forma.” (p.123)
Já mais ao fim do
ensaio, intitulado “O texto como resultado”, José Guilherme Merquior cobrava um
avanço em relação ao legado do professor da USP, no sentido de “sublinhar mais
e melhor as variáveis externas codeterminantes da obra de arte literária”,
“usando[-se] com maior empenho os recursos das ciências sociais”. (p.128) Essa
cobrança parece-nos satisfeita pelo próprio autor em De Anchieta a Euclides, na medida em que o volume se aparelha de
consistentes conhecimentos sociológicos, com base nos quais se reflete a
respeito da literatura como manifestação, antes de tudo, sócio-cultural.
Exemplo disso é a explicação merquioriana para o artesanato virtuosístico da
linguagem pós-romântica (o parnasianismo de Bilac, mas também de Cruz e Sousa),
motivado pela tentativa de afirmação aristocratizante de autores pertencentes,
no mais das vezes, à pequena burguesia.
De
Anchieta a Euclides também ratificava a validade dos
estilos de época, tão atacados ainda hoje, mas, no fim das contas, sempre acatados
como abordagem contextualizadora de abrangência. Acerca da questão, ensinava
Mestre Merquior, em texto contido em Teoria
literária, organizado por E. Portella:
Tanto
quanto os estilos de autor, os estilos epocais existem – por mais esquivos que sejam ao arsenal classificatório da
história da literatura. Podemos aprimorar os instrumentos lógicos utilizados
para compreendê-los, porém não temos o direito de fingir que se trata de puras
fantasias arbitrárias, imotivadas pela realidade da literatura.
Se
os conceitos periodológicos parecem com tal frequência meros flatus vocis, é porque se insiste em
atribuir-lhes uma pretensão essencialista, em conferir-lhes um estatuto
lógico-epistemológico que na verdade nunca possuíram. (1975, p.40)
Esse reconhecimento dos
estilos de época fundamentava-se nas averiguações da relação entre texto e
contexto, o primeiro compreendido como resultado do segundo, consoante a
fórmula de Antonio Candido. Trata-se de perspectiva, com efeito, não enrijecida,
mas elástica, conforme José Guilherme Merquior observa na citação acima. Tanto
assim é, que ele, em reflexões reunidas no volume O fantasma romântico e outros ensaios, por um lado, corrobora a
existência do modernismo brasileiro, não obstante a pluralidade estilística do
suposto movimento, mas por outro lado assinala a coexistência de uma literatura
propriamente modernista e de uma literatura moderna, na Europa do século XX
inicial.
É, de fato, uma pena
não se ter cumprido a promessa do segundo volume daquela “breve história da
literatura brasileira”.[iii]
Tanto o modernismo ocidental quanto o modernismo brasileiro interessaram e
marcaram sempre o pensamento merquioriano.
Ficamos a nos perguntar
se hoje seria possível escrever uma história da literatura brasileira, seja nas
proporções hercúleas de um Sílvio Romero, seja nas sintéticas do próprio José
Guilherme Merquior. Em A literatura no
Brasil, Afrânio Coutinho encarava
a realidade modesta do crítico novecentista, que dificilmente poderia dominar
satisfatoriamente tal número de autores, tal número de obras, tais períodos
percorridos pela cultura de todo um país, sobre os quais vinham aparecendo
trabalhos mais específicos e mais aprofundados. Saber tudo de tudo não passaria
de uma presunção de diletante, aos olhos – nisso especialmente lúcidos – do
professor baiano.
A possibilidade e a
importância da historiografia literária têm sido confirmadas, em nossos tempos.
De início, porque livros como Literatura
brasileira hoje (2004), da Publifolha, devem ser avaliados principalmente
segundo critérios que levem em conta o leitor alvo. Acreditamos que, no Brasil,
país de educação precária e, ainda assim, em declínio no tocante talvez não à
quantidade, mas decerto à qualidade, vale muito a lógica das obras literárias
adaptadas. É melhor ler Graciliano Ramos adaptado
do que não ler Graciliano Ramos nenhum. Pois, quem sabe a adaptação não
desperta o interesse para o romancista alagoano puro sangue? O professor, o pesquisador e o crítico que torcem o
nariz para as adaptações literárias sofrem de síndrome da torre de marfim; parecem
desconhecer – e não desconhecem – o fato desalentador de que lutamos para
instruir uma sociedade para a qual a leitura é um sacrifício a ser evitado, a
todo custo. Se, diante desse descaso governamental e dessa ignorância social arraigadas,
já fica difícil acusar qualquer livro, ou melhor, a leitura de qualquer livro
de superficialidade, nocividade ou desserviço intelectual, quanto mais as bem
intencionadas histórias da literatura brasileira.
Também se confirmam a
possibilidade e a importância das histórias da literatura brasileira no viés da
revisão e do questionamento, caso emblemático da trilogia de Flavio R. Kothe,
composta de O cânone colonial, O cânone imperial e O cânone republicano. Não concordamos com certos aspectos da perspectiva
de Kothe nessa empreitada. Exigir dos sonetos de Camões, um poeta clássico, originalidade
é incorrer em anacronismo crasso. Cobrar da “Canção do exílio” de Gonçalves
Dias similitude entre expressão poética e veracidade histórico-biográfica é
cometer injustiça absurda contra a autonomia artística. Mesmo assim, os livros
de Kothe têm o mérito de instigar o debate em torno do cânone literário
nacional e dos fundamentos políticos que o instituíram ao longo dos séculos de
nossa história. Um ponto ferido pelo tradutor de Walter Benjamin é,
especialmente, sério: devemos ler e incentivar a ler, nas escolas, José de
Alencar, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Lima Barreto, Mário de Andrade
somente ou principalmente porque são autores brasileiros? Sim, o nacionalismo
subjacente ao discurso da historiografia literária de um país requer o
policiamento atualizador de nossa análise. Mas igualmente o requer o estético
como valor e critério de seleção ou canonização.
Nas últimas páginas de
sua Introdução à historiografia da
literatura brasileira, Roberto Acízelo de Souza, docente universitário de
reconhecida preocupação com questões didáticas em torno da literatura, enceta
uma breve, mas convincente defesa da história literária como etapa inicial de
conhecimento (ou re-conhecimento, para retomarmos o termo de Márcio Almeida) da
nossa literatura. O professor manifesta plena consciência de que o nacionalismo
e a narrativa historiográfica tradicional sofrem, nestes dois séculos mais
recentes, de descrédito e desprestígio no meio intelectual. Todavia, nas
palavras de Acízelo de Sousa,
[...]
salvo demonstração em contrário, não há como construir um entendimento do
objeto cultural chamado literatura pelo caminho exclusivo da teoria, sem uma
constante remissão à contínua reconfiguração desse objeto segundo decurso do
tempo, isto é, conforme o ritmo da história”. (p.151)
Merquior, igualmente preocupado
com o presente e o destino de nossos estabelecimentos de ensino superior, com certeza
subscreveria as conclusões do professor Acízelo de Souza. De Anchieta a Euclides o atesta.
Referências
bibliográficas
Almeida, Márcio. “De
Anchieta a Euclides: o re-conhecimento da literatura brasileira” in Suplemento Literário de Minas Gerais. v. 13, n. 601, p. 10, abr. 1978.
MERQUIOR, José
Guilherme. “Estilos históricos na literatura ocidental” in PORTELLA, Eduardo et
alii. Teoria literária. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.40-92.
______. “O texto como
resultado (notas sobre a teoria da crítica de Antonio Candido)” in ARINOS,
Afonso et alii. Esboço de figura:
homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.
pp.121-131.
SOUSA, Roberto Acízelo
de. Introdução à historiografia da
literatura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007.
[i] À altura em que redigimos esse texto,
desconhecíamos a resenha de Carlos Felipe Moisés sobre De Anchieta a Euclides, publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais de fevereiro de 1978 (vol. 13;
no. 644). Aí o resenhista já havia detectado a aplicabilidade do que ensinava
Merquior a respeito do estilo e da abordagem críticas de Araripe Júnior sobre o
próprio Merquior, citando passagem que nós também citamos antecedida por
comentário semelhante. Como compensação pela decepção de termos descoberto que
não fomos o primeiro a dizê-lo, tal plágio
involuntário nos deixa feliz, por reforçar a validade da observação comum.
[ii] Infelizmente, não nos recordamos nem do
título da resenha, tampouco do autor que assinalava tais problemas no livro de
Merquior.
[iii] Inicialmente, o plano, proposto por Adonias Filho,
era que Merquior redigisse o primeiro volume dessa história da literatura brasileira,
contemplando do período colonial até fins do séculos XIX e princípio do XX, e Eduardo
Portella se encarregaria, no segundo volume, do século XX. No entanto, Portella
declinou do convite, pois uma “progressiva intolerância [...] foi tomando conta
de mim diante dos vícios do historicismo”, conforme relatou, por ocasião da comemoração
dos 70 anos de nascimento de Merquior, promovida pela Academia Brasileira de Letras.