Há exatos 32 anos,
elegia-se José Guilherme Merquior para ocupar a cadeira 36 da prestigiada Academia
Brasileira de Letras. A averiguação pelo candidato das possibilidades para
ingresso na casa que Machado de Assis, Joaquim Nabuco e outros nomes ilustres
da cultura do Brasil fundaram em 1897, está noticiada em “O fenômeno Merquior”,
às páginas 485 e 486. Segundo José Mario Pereira, o autor de A astúcia da mímese concorreu com
Arnaldo Niskier e Geir Campos, tendo recebido 22 votos, o segundo 15 e o
terceiro apenas um.
O discurso de posse,
pronunciado um ano após a eleição (11 de março de 1983), dos mais belos que se
ouviram nas dependências da ABL e, indubitavelmente, digno de constar em
qualquer antologia merquioriana, será vítima
aqui de alguns comentários nossos. Antes de tudo, cumpre observar a índole
desse gênero textual, marcadamente laudatório. Sabe-se que o protocolo
recomenda ao acadêmico empossar, proferindo palavras em louvor ao patrono e aos
antecessores da cadeira na qual passará a se sentar, sendo ainda de bom deter-se
no último ocupante. O discurso de Merquior, portanto, precisou considerar a
trajetória biográfico-intelectual de Teófilo Dias (o patrono), Afonso Celso, Clementino
Fraga e, mais longamente, a de Paulo Carneiro, diplomata a quem o novo imortal
da ABL chegou a conhecer com grande proximidade e vinha a suceder na
instituição. Cumprindo a risca o ritual, José Guilherme Merquior discorre sobre
as contribuições dessas personalidades das letras e das ciências nacionais, mas
sem cometer traição, em qualquer nível, referentemente às próprias convicções e
concepções. Esse fato, que faz jus à postura de polemista do orador, advém da
intransigência da sinceridade a suplantar o cariz, a princípio, forçosamente
enaltecedor da ocasião. Em suma, estamos lendo, no discurso em questão, as
ideias autênticas de um autor não constrangido, que se sente à vontade para
tratar de assuntos centrais de seu pensamento crítico, como a dialética entre
nacionalismo e universalismo (ou brasilidade e humanidade); a defesa do
comprometimento com a busca do conhecimento objetivo, porém com a precaução de
evitar converter a ciência em reduto de dogmas; e a restauração, de sabor
neo-iluminista, do sentido de humanismo, indevidamente apropriado pelo que
acusava de “delírio irracionalista” (o pós-estruturalismo et caterva).
É interessante
sublinhar como as circunstâncias do local parecem ter estimulado a faceta mais
poética, mais lírica da linguagem merquioriana nesse discurso, o que
justificaria a constatação inicial e final de uma “secreta e harmônica magia” a
entrelaçar a vida e a obra dos ocupantes da cadeira 36, sob o signo da
brasilidade. Esse termo, a propósito, (destaca Merquior) tinha sido cunhado por
Afonso Celso, célebre autor de Por que me
ufano de meu país (o título, aliás, consagraria outro termo, ufanismo). Para o grande crítico
literário, sempre disposto a encarnar opiniões controversas, o “breviário
patriótico” do fundador da sua cadeira, objeto da ridicularização de muitos,
fazia-se “empenho de valorização do nosso passado e da nossa raça frente à
descrença na viabilidade do Brasil e nas virtualidades de seu povo”, indo mesmo
a “aproximar esse ufanismo de 1900 do brasileirismo de 22”. Todavia, o orador
tinha o cuidado em frisar que sua compreensão de nacionalismo, e a de Celso,
não o confunde com xenofobia, da mesma forma que, pelo lado oposto, o exemplo
do diplomata Paulo Carneiro e do poeta Murilo Mendes, ensinava que
internacionalismo não deveria ser “um cosmopolitismo oco e vazio”, nem se
deveria abraçar uma “internacionalidade sem raízes” – preocupação fundamental
de José Guilherme Merquior desde textos do início da década de 60.
O esforço mais curioso
no discurso envolve a revisão do positivismo no Brasil, o que é condicionado
pelo fato de o imediato antecessor, o acadêmico Paulo Carneiro, ter nutrido
estreitas ligações com essa corrente de pensamento tão atacada em sua época e
confinada de uns tempos para cá ao nicho do anedotário da história da
filosofia. Seja como for, Merquior distingue “Positivismo-clima” de
“Positivismo-seita”, esta uma espécie de fundamentalismo, definitivamente
prejudicial a todo propósito original de Auguste Comte, filósofo francês
animado por um “ethos altruísta e generoso, que unia amor ao saber e amor ao
próximo, fundindo assim o melhor do Cristianismo com o melhor da Ilustração”,
tendo sido menos o sistema do que a postura positivista “a tentativa mais
consistente de alcançar uma síntese entre Iluminismo e Romantismo, razão
crítica e sentimento comunitário”. Essa síntese, com efeito, cai como luva na
militância merquioriana, cuja plataforma se constituía da crença inabalável na
racionalidade neo-iluminista (é recorrente nos depararmos com o nome de
Voltaire em sua obra) e da valorização do nacional (em coerência mesmo com sua
carreira de diplomata) dentro do circuito vital do sentimento comunitário.
Não vejamos nessa
compreensão do positivismo que José Guilherme Merquior incentiva – sem dúvida,
ele sabia de seus efeitos polêmicos – como manifestação caricata de um
reacionário, que quixotescamente transpõe para a realidade o sonho-loucura da
filosofia de Quincas Borba. Não deveríamos antes assumir a superficialidade de
nosso entendimento a respeito do positivismo, soterrado por camadas de lugares
comuns reproduzidas em aulas de História do antigo segundo grau, do atual
ensino médio e inclusive do ensino superior? Não ignoraríamos “a índole
antidogmática da ideia comteana de Ciência, com seu acento na relatividade do
saber”? A seriedade e a relevância da atitude de Merquior no discurso de posse
ecoam Eduardo Lourenço, respeitável filósofo português, que, em “Sebastianismo:
imagens e miragens”, texto de outubro do ano anterior, dava um paternalmente rápido
puxão de orelhas em “alguns que têm do ‘positivismo’ uma ideia estereotipada”.
(p.49)
Decerto menos
impactante, porém não menos importante é o resgate do humanismo empreendido por
Merquior àquela ocasião. Irritado com o divórcio, na cabeça de muitos
pensadores e intelectuais da época, entre o conhecimento de dimensão humana e o
de dimensão científica, argumenta:
De
Leonardo a Goethe, ele [o Humanismo] foi basicamente “inclusivo”: aberto ao
progresso do saber e às revoluções científicas. Isso tanto era certo do
Humanismo filosófico da Renascença quanto do Humanismo dos philosophes ao tempo do enciclopedismo, e também, muito
significativamente, dos próprios fundadores da Ciência Moderna. Galileu foi um
humanista. Só conosco é que se instala no Humanismo estabelecido o rancor
contra a Ciência, a denúncia irracional e indiscriminada do progresso, só
conosco é que humanistas passaram a repudiar, injustificadamente, a Cultura
Moderna.
O autor de O marxismo ocidental identificou-se
profundamente com a cadeira 36. Dissemos acima que Merquior, àquele 11 de março
de 31 anos atrás, proferiu palavras que ultrapassam o rito textual laudatório,
impondo a coincidência entre o que ele mesmo pensava e o que pensavam seus
antecessores, principalmente Paulo Carneiro. A passagem transcrita abaixo é
perfeitamente aplicável ao próprio orador, que muitos acusaram de se aproveitar
do debate de ideias em voga para se celebrizar:
Assim
punha ele [Paulo Carneiro] no mais mundano dos gêneros literários – a
conferência extracurricular – uma constante substancialidade de pensamento, sem
qualquer laivo de oportunismo intelectual e, em particular, sem a mínima
veleidade de seguir as modas ideológicas reinantes. Pouco ou nada lhe
importavam os decretos da haute couture
do espírito, os ucasses dos gurus germanopratinos e, quando se abalava a comentar
algum, era única e exclusivamente em função do que houvesse de autenticamente
relevante na sua obra, para além de todo modismo. Foi com esse discernimento
que se interessou, por exemplo, pela renovação da antropologia devida a meu
mestre Lévi-Strauss [...].
Logo nos primeiros
parágrafos do discurso, Merquior anunciava sua obediência ao preceito de Pope,
segundo o qual não se deveria permitir, no crítico, o desaparecimento do homem.
No contexto inicial, o sentido era: não falarei apenas das obras desses críticos (Afonso Celso, Clementino Fraga
e Paulo Carneiro), mas também da atuação moral desses homens. Mais adiante, o preceito parece adquirir nova roupagem semântica:
o orador não permite desaparecer no crítico que fala de outros autores o
próprio crítico, que encontra uma maneira elegante de falar de si mesmo. À
citação acima, uma evidente autodefesa, podemos juntar à singela homenagem a
Josué Montello, escritor maranhense, que o recebia na Academia Brasileira de
Letras. A homenagem se expressou pela declamação de poema de outro maranhense, tio
de Teófilo Dias, Gonçalves Dias, por cujos versos, informava Merquior, “iniciei
meu convívio com a musa morena – a Poesia do Brasil”. E acrescentava: “Meu pai
gostava de recitar ao filho menino os versos de Gonçalves Dias – e ao poeta do I Juca Pirama permaneço obstinadamente
fiel, na galeria de minhas máximas admirações.”
Reputamos o último
parágrafo desse discurso uma das mais preciosas passagens de José Guilherme
Merquior. Nela se exacerba a poeticidade, muito bem disseminada no texto. Nela
se dosa, com aguda pertinência, a erudição. Nela se semeia a sabedoria de uma
lição cristalizada nos contornos de uma máxima: “[...] o diálogo, mesmo na
eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão que me anima: a
paixão de compreender. O prêmio da vida acadêmica não é a discordância sem
discórdia?”
Adotando nós mesmos o
preceito de Pope, gostaríamos igualmente, nestes comentários, de não permitir
que, no crítico das ideias Merquior, não se perca o homem Merquior. No
princípio de seu discurso, o autor de A
natureza do processo assinala a longevidade dos ocupantes anteriores
daquela cadeira – Afonso Celso (1860-1928), Clementino Fraga (1880-1971) e
Paulo Carneiro (1901-1982) –, em contraste com a vida curta do Patrono
(1854-1889), advertindo, porém, haver “no modelo” daqueles “muito mais a imitar
do que a mera longevidade”. Infelizmente, o novo acadêmico, sempre tão ansioso
de ser estudante (condição, como muito bem afirma Josué Montello, “de quem não
perde a curiosidade pelo saber”) só se esqueceu da lição menos importante... ou
antes, acabou imitando nisso a Teófilo Dias.
João de Scantimburgo
sucedeu José Guilherme Merquior, ocupando a cadeira na qual, desde o ano
passado, se senta Fernando Henrique Cardoso. O primeiro, recebido pelo
acadêmico Miguel Reale, grande amigo de Merquior, afirmou sobre este, no
discurso de posse pronunciado a 26 de junho de 1992:
Ao
lermos e meditarmos as obras de Merquior, impressionados pela riqueza das
dissertações, a multiplicidade das questões examinadas, e, portanto,
disputadas, como diriam os escolásticos; ao indagarmos sobre o seu fundamento
filosófico, convencemo-nos de que estamos diante de uma Suma da Cultura
Moderna, em vias de se formar, no melhor estilo de suas congêneres do passado,
ainda que pontilhada de finíssima ironia. Se tivesse vivido para completar sua
obra, provavelmente nos daria a Suma com as grandezas e misérias da Cultura
Moderna, neste século XX que termina em estertores de crise da civilização.
Quanto ao discurso que
Fernando Henrique Cardoso proferiu, a 11 de setembro de 2013, com ênfase
autobiográfica nas questões políticas brasileiras e mundiais, partidárias ou
não, parece-nos acertadamente ensinar:
Puxando
a brasa para minha sardinha, ouso dizer que para Merquior o amor às liberdades
e o respeito às regras do mercado não inibem (como creem os neoliberais) a ação
pública reguladora em busca de maior igualdade. Estava mais próximo da versão
contemporânea da social democracia do que do “liberismo”, tão à moda no final
dos anos oitenta.
Mas também, para o
certo aplauso póstumo de José Guilherme Merquior, o ex-presidente, frente ao
imperativo de se referir ao patrono da cadeira, explicita a orientação poética
à qual Teófilo Dias procurava obedecer, encerrada na “correspondência exata, a
equivalência perfeita, entre a forma e o pensamento”. Palavras, aliás, do
próprio poeta maranhense.
Aqui não podemos nos
ater àquelas palavras reproduzidas mais acima do excelente e hoje, mais do que
nunca, comovente discurso de Josué Montello, incumbido de receber Merquior na
ABL. Os pontos atacados por Montello resultam num texto, além de hospitaleiro e
informativo, esclarecedor e instigante. Sobretudo no que diz respeito à
percepção de que o novo acadêmico se inseria na tradição, que remonta a Sílvio
Romero, de críticos com atuação notadamente pedagógica, não apenas no exercício
da docência, mas também na atividade ensaística. Esse empenho da obra merquioriana
se reforçava, segundo Josué Montello, no “gosto do livro como instrumento de
ação pública, porque sois, concomitantemente, um escritor e um político.” Como
não poderia deixar de destacar, José Guilherme Merquior é assim caracterizado: “Sois
ensaísta, crítico, jornalista, professor, conferencista, mas sois, em essência,
um polemista.” Todavia, se, para nós, em comentários dispensados ao livro Razão do poema neste blog, a carreira
diplomática e a militância do polemista parecia consistir em contradição
espiritual do pensador carioca, Montello enxerga a questão com bem melhores
óculos, apontando a afinidade entre ambas:
Bem
sabeis que a própria vida diplomática, a despeito de suas cortesias externas, é
uma luta vigilante em que o ruído dos entrechoques internacionais se processa o
mais das vezes com o tinido dos cristais e dos talheres. A conversa amena, por
onde circulam as anedotas, substitui o corpo a corpo e pugilato, assim como a
braçada de flores elide a intimidação pelas armas.
Sois
diplomata, e dos mais ilustres e experientes, e sois crítico literário e
ensaísta político. Poder-se-ia supor que o diplomata neutralizaria o crítico e
o ensaísta, mas os três têm igual substância polêmica, cada qual com o seu
estilo e o seu modo de ver.
Não escapou ao discurso
de quem recebia Merquior a beleza estilística de sua linguagem, beleza que
atingia, segundo um comentarista de As
ideias e as formas citado por Montello, os limites da poesia.
Por fim, destacamos –
pedindo desculpas pela insistência na infeliz precocidade da morte de José
Guilherme Merquior – o involuntário sentido metafórico-profético destas
palavras de Josué Montello, pronunciadas numa casa assombrada teimosamente pelo
tema da idade e da (i)mortalidade: “Relevai-me se vos afirmo que ainda deixais
sentir um ar inaugural. Dir-se-ia que andais pela casa dos vinte anos, aguerrido,
bem disposto, os cabelos pretos, o jeito afirmativo, o gosto de bem realizar.
Correis o risco de que vos tomem por terceiro secretário e já sois ministro, a
um passo do fecho de vossa carreira.” Um passo que se alongou por menos de uma década...
*
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Segue abaixo a lista
das demais 39 cadeiras e dos nomes de seus respectivos ocupantes no momento em que
José Guilherme Merquior toma posse na Academia Brasileira de Letras:
Cadeira 1: Bernardo Élis;
Cadeira 2: Mário Palmério;
Cadeira 3: Herberto Sales;
Cadeira 4: Vianna Moog;
Cadeira 5: Rachel de Queiroz;
Cadeira 6: Barbosa Lima Sobrinho;
Cadeira 7: vaga no
momento, em decorrência do falecimento recente (novembro de 1982) de Dinah Silveira de Queiroz;
Cadeira 8: Austregésilo de Athayde (presidente);
Cadeira 9: Carlos Chagas Filho;
Cadeira 10: Orígenes Lessa;
Cadeira 11: Deolindo Couto;
Cadeira 12: Abgar Renault;
Cadeira 13: Francisco de Assis Barbosa;
Cadeira 14: Miguel Reale;
Cadeira 15: Dom Marcos Barbosa;
Cadeira 16: Pedro Calmon;
Cadeira 17: Antonio Houaiss;
Cadeira 18: Peregrino Júnior;
Cadeira 19: Américo Jacobina Lacombe;
Cadeira 20: Aurélio de Lyra Tavares;
Cadeira 21: Adonias Filho;
Cadeira 22: Luís Viana Filho;
Cadeira 23: Jorge Amado;
Cadeira 24: Cyro dos Anjos;
Cadeira 25: Afonso Arinos de Melo Franco;
Cadeira 26: Mauro Mota;
Cadeira 27: Eduardo Portella;
Cadeira 28: Menotti del Picchia;
Cadeira 29: Josué Montello (acadêmico que recebeu J. G.
Merquior);
Cadeira 30: Aurélio Buarque de Holanda;
Cadeira 31: José Candido de Carvalho;
Cadeira 32: Genolino Amado;
Cadeira 33: Afrânio Coutinho;
Cadeira 34: Carlos Castello Branco;
Cadeira 35: José Honório Rodrigues;
Cadeira 37: João Cabral de Melo Neto;
Cadeira 38: José Sarney;
Cadeira 39: Otto Lara Rezende;
Cadeira 40: Alceu Amoros Lima.
Referências
bibliográficas
LOURENÇO, Eduardo.
“Sebastianismo: imagens e miragens” in: Mitologia
da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp.46-53.
PEREIRA, José Mario. “O
fenômeno Merquior” in: COSTA E SILVA, Alberto da (org.). O Itamaraty na cultura brasilera. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
2002. pp. 475-506.
Os discursos que
consultamos estão disponíveis no site oficial da Academia Brasileira de Letras:
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