A trajetória intelectual e profissional de José
Guilherme Merquior ficou marcada por uma daquelas coincidências com que a
história, às vezes, parece brincar de romancista. E o tema da interface entre o
contexto do regime militar brasileiro e o cenário literário, cultural da época
promove oportunidade de se repensar as possibilidades do pensamento criativo e
também crítico, em condições especiais de adversidade política. Nesse sentido,
é ilustrativo o caso de Merquior, autor que, bastante jovem, a convite de
Manuel Bandeira, colaborou na seleção de poemas para a antologia Poesia do Brasil, publicada em 1963, ano
em que também se formou no Instituto Rio Branco, para seguir a carreira de
diplomata até o fim da vida. Na verdade, sua morte foi menos conclusão do que
brusca interrupção. Precoce, pois, para começar, tendo escrito ensaios
veiculados no Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil já em fins da década
de 1950, quando contava cerca de 18 anos, e precoce para encerrar sua brilhante
existência de pensador dos mais eruditos e produtivos que o País conheceu,
Merquior faleceu aos 50 anos incompletos, em janeiro de 1991.
Estabelecidas essas duas datas,
1963, marco do reconhecimento público de sua competência de crítico literário e
do princípio de suas atividades como funcionário do Itamaraty, e 1991, término
de uma vida intelectualmente operosa, dedicada a diversas áreas das ciências
humanas, é que podemos melhor observar a coincidência romanesca referida acima.
Afinal, a instabilidade política já assolava o Brasil em 1963, assombrado pelas
tensões e conflitos entre a postura ideológica e as atitudes do então
presidente da república João Goulart e os interesses de poder dos militares e
de parcela significativa da sociedade civil, em convergência ainda com a
política externa norte-americana relativa à América Latina. Era o ambiente que
preparava o Golpe para o ano seguinte. Quanto a 1991, em especial o mês de
janeiro, nesse momento o governo do primeiro presidente eleito pelo voto direto
depois do período 1964-1985, Fernando Collor de Mello, punha em prática seu
segundo plano – o Collor II –, em mais uma tentativa, que logo se revelaria
mal-sucedida, de controlar a inflação galopante que conturbava tradicionalmente
a economia brasileira.
Ora, sabe-se que José Guilherme Merquior, na época
notório entusiasta do social liberalismo, redigiu significativa parte do
programa de gestão presidencial para o político alagoano, assim como foi ghostwriter de textos que Collor
publicaria em seu próprio nome. De qualquer forma, o fato que queremos destacar
é que a imagem do sucessor de José Sarney, fosse quem fosse, lidaria com as
esperanças de um novo Brasil, democrático sobretudo, avesso às truculências e arbitrariedades
ditatoriais de um passado recente, em conformidade mesmo com a Constituição
Federal promulgada em 1988.
Todavia, não tencionamos aqui
concluir mais do que o razoável e o pertinente dessas considerações de ordem tão
marcadamente cronológica e biográfica. A pergunta que pretendemos não
responder, mas discutir neste artigo é: que intelectual foi José Guilherme
Merquior, quem pensou e produziu a maior parte de sua obra durante o regime
militar? Ou ainda: seria legítimo considerá-lo um autêntico intelectual, tendo
sido funcionário desse governo, se sujeitado à censura do Ministério do
Exterior, segundo a praxe diplomática, antes de publicar qualquer texto?
Para dar início a nossa discussão,
propomos teimosamente retornar àquelas duas datas: 1963 e 1991. Em sua “Nota
antipática” à antologia Poesia do Brasil,
José Guilherme Merquior assumia, aos 22 anos de idade, um tom de escrita que o
caracterizaria para sempre – o tom da polêmica aliado a uma petulância
estilística destemida que o jovem autor, decerto orgulhoso e envaidecido pelo
convite de um poeta do quilate de Manuel Bandeira, dizia ter aprendido da “atitude
artística e crítica de 22”. (MERQUIOR, 1963, p.8) A referência, está claro, é ao
modernismo da Semana de Arte Moderna, cuja geração, com irreverência
iconoclasta, atacara todo o tradicionalismo de formas e de ideias de uma
literatura ainda aferrada a modelos estéticos oitocentistas.
No tocante à segunda data, cumpre sermos mais exato.
Na verdade, não propriamente em 1991, mas em novembro do ano anterior, ciente
do câncer que lhe não permitiria ver publicado seu livro Liberalism: old and new, Merquior redige seu último texto, uma
homenagem ao jurista e filósofo Miguel Reale. Em discordância de certo
otimismo, expresso na obra do homenageado, em relação à complementaridade e
solidariedade entre si dos valores na modernidade, José Guilherme Merquior
assim argumenta:
Como a sociedade, a cultura vive
em conflito – até certo ponto, do conflito
[...]. O sonho neocatólico de uma re-harmonização dos valores não se afigura
capaz de enraizamento na cultura moderna. O pluralismo, que Reale sublinha, não
leva ao consenso; a dissonância é
inerente à sociedade aberta e, tudo
indica, à alma contemporânea. (MERQUIOR, 1992, p.35-36)[1]
Dessas duas citações podemos inferir
como Merquior compreendia sua própria condição de polemista. Esse termo, de
fato, identifica muito bem os aparelhos discursivos de pensamento do nosso autor,
que, em princípios da década de 1960, via a si mesmo como herdeiro da postura
crítica, inconformista da geração de 22.
Aliás, cabe aqui citar também passagem do ensaio “A
poesia modernista”, originalmente publicado em 1962 e depois coligido em Razão do poema, o primeiro livro de
Merquior, publicado em 1965. Nesse texto, expressa-se “a certeza de que o
espírito de 22 se conserva absolutamente vivo, e ainda mais vivo, porque depois
dessa data e da fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou
verticalmente a poesia brasileira”. (MERQUIOR, 2013, p.40) Mas não confundamos
alhos com bugalhos. O que teria a ver a atmosfera da poesia naquele período com
o propósito de uma obra em prosa de caráter analítico, reflexivo, crítico e
filosófico que é a obra merquioriana? Essa aproximação não quer insinuar mais do
que a sintonia que um pensador e crítico literário afirmou haver entre si e uma
índole literária que sempre defenderia dever orientar os presentes e futuros
poetas brasileiros. Pois, para Merquior, um dos feitos realizados pelo
modernismo de 22 teria sido produzir “uma literatura telúrica de primeira
grandeza”, na conquista definitiva da nacionalidade literária, mas que também
“respondeu à exigência de universalizar-se, guardando no seu vigoroso senso de
lugar uma dimensão profundamente humana”. (2013, p.41) Era o que, aliás, José
Guilherme Merquior, na condição de orador de sua turma que se formava no
Instituto Rio Branco, postulava no discurso pronunciado em dezembro de 1963:
Nós nos sentimos alegres por
iniciar uma carreira de perfil internacional precisamente quando o Brasil
oficializa a percepção desse sentimento popular. Sentimento que faz, de nossa
participação no Ocidente, que é uma aberta e dinâmica concepção de vida, e não
um baluarte cegamente armado contra a convivência, medroso de infiltrações,
maníaco pela autodefesa, nas vésperas de um alargamento físico-demográfico do
mundo por si só tornando ridículas as pretensões ao isolamento. Nós não
receamos nenhum contágio. Suficientemente convictos de nossa força,
destinamo-nos a cumprir uma vocação universalista. Nosso amor à nacionalidade
é, no fundo, a melhor forma de sermos humanos. (MERQUIOR, 1993, p.45)
O que se mostrava estar em jogo para
Merquior, portanto, era a inserção sem dissolução da cultura brasileira numa
amplitude ocidental ou universalista. Não resta dúvida de que o autor de As ideias e as formas procurou
orientar-se por esse horizonte de intervenção intelectual que não se limita à
pátria, para o que, naturalmente, a diplomacia contribuiu enormemente. Alguns
títulos significativos de sua obra atestam-no. L’esthétique de Lévi-Strauss (1975),
The veil and the mask (1979), Rousseau and Weber (1980), Foucault (1985), The Western Marxism (1986) e From
Prague to Paris (1986) foram livros publicados lá fora, originalmente
escritos em língua estrangeira. Todavia, os temas discutidos nesse conjunto –
estruturalismo, pós-estruturalismo, marxismo, sociologia – eram (se ainda não
são todos) de interesse não apenas estrangeiro, mas também brasileiro – afinal,
aqueles livros não tardaram a ser traduzidos e aqui publicados.
Do que até aqui expusemos acreditamos poder extrair uma primeira conclusão a respeito de José Guilherme Merquior no contexto do regime militar: suas atividades de pensador, de intelectual requerem contextualização mais ampla do que a das fronteiras nacionais, para não corrermos o risco de incorrer em mais danosa simplificação. Essa contextualização mais ampla, a qual ainda assim permite articulação com o cenário ditatorial do País, parece encontrar um bom começo na passagem do texto dedicado a Miguel Reale, “a dissonância é inerente à sociedade aberta e, tudo indica, à alma contemporânea”.
Do que até aqui expusemos acreditamos poder extrair uma primeira conclusão a respeito de José Guilherme Merquior no contexto do regime militar: suas atividades de pensador, de intelectual requerem contextualização mais ampla do que a das fronteiras nacionais, para não corrermos o risco de incorrer em mais danosa simplificação. Essa contextualização mais ampla, a qual ainda assim permite articulação com o cenário ditatorial do País, parece encontrar um bom começo na passagem do texto dedicado a Miguel Reale, “a dissonância é inerente à sociedade aberta e, tudo indica, à alma contemporânea”.
Fixemo-nos por ora nestas três palavras: dissonância e sociedade aberta. Elas poderiam servir de palavras-chave de nossa
discussão em torno de um polemista que pertenceu a um país cuja sociedade
estava longe de ser “aberta”. Com efeito, vindo a participar de notórias
polêmicas, José Guilherme Merquior reconhecia a importância, mas também as
dificuldades desse tipo de debate no contexto brasileiro. Em entrevista à
revista Veja, na época do lançamento
de As ideias e as formas (1981), lamentava:
“Uma das características defeituosas do nosso debate intelectual [...] é que
ele é muito subdesenvolvido [sic] e raramente ocorre [...]”, porque “É típica a
maneira como se reage no país à polêmica. Quando um intelectual no Brasil se
sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca as ideias do crítico,
ataca o próprio crítico.” (MERQUIOR, disponível em <<http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_014.html>>)
No próprio As
ideias e as formas, (e importa frisar que se trata de livro publicado em
período da ditadura, conquanto em momento francamente mais propenso à
democratização), Merquior reivindicava, em nome do que denominava de “crítica
liberal”, uma “independência do espírito” que via sob ameaça de uma suposta intelligentsia de esquerda, acostumada a
refutar ideias adversárias, de olho na pessoa que as defendia:
Desqualificado o crítico, não vale a pena discutir o que ele diz –
e os sectários podem continuar refestelados nas suas dogmáticas certezas de
preguiçosos mentais e palmatórias do mundo. “Fulano disse x, beltrana escreve
y? Esqueça x e y: fulano não passa de um burguês conformista ou oportunista;
não vê que ele trabalha para o governo? – e fulana é condicionada, não é à toa
que seu marido é empresário”, etc... (1981, p.30)
O problema, portanto, não dizia
respeito apenas à censura do governo militar: muitos que se opunham ao regime e
a sua ideologia capitalista acabavam por censurar vozes outras, comprometendo a
preparação de um ambiente democrático que se prometia realizar nos últimos anos
da ditadura. Naturalmente, a passagem acima citada refere-se a experiências do
próprio Merquior, ainda hoje vítima de equívocas classificações, no mais das
vezes rótulos que tresandam a ressentimentos esquerdoloides e/ou a ignorância
relativa à obra do autor aqui em discussão.
Dessa polêmica antipolêmica, na medida em que
interdita a comunicação de ideias, priorizando o confronto pessoal, Merquior
procurou esquivar-se ao máximo, em obediência a preceito que lapidarmente ele
mesmo defenderia no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, proferido
a 11 de março de 1983: “[...] o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via
régia do conhecer e da paixão que me anima: a paixão de compreender. O prêmio
da vida acadêmica não é a discordância sem discórdia?” (disponível em <<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13257&sid=330>>)
Compreensivelmente, amigos
procuraram, em bibliografia em boa medida motivada pela comoção frente à morte
precoce de Merquior, isentá-lo do epíteto – alegado redutor – de polemista. É o
caso de José Mario Pereira, autor do incontornável escorço biográfico “O
fenômeno Merquior”. Todavia, a frequência significativa com que o próprio
homenageado se identificava ou insinuava ser um “guerrilheiro das ideias” (expressão
que tomamos emprestada de João Cezar de Castro Rocha; cf. 2011, p.161) parece-nos
contrariar a compreensão de Mario Pereira.
A questão se refere primeiramente a uma visão
redutora dos potenciais da polêmica bem constituída, ou da guerrilha bem
travada, conforme esclarece Castro Rocha, em Crítica literária: em busca do tempo perdido?. Nesse livro, o autor
questiona o entendimento de que a polêmica consistiria necessariamente em
manifestação nociva do autoritarismo narcisista arraigado na sociedade
brasileira. Com o objetivo de reabilitá-la, considerando-a indicativo de
vitalidade intelectual e instrumento poderoso de discussão de ideias, João
Cezar de Castro Rocha receita a polêmica como um dos possíveis remédios para o
marasmo intelectual destes primeiros anos do século XXI.
Ao contrário de José Mario Pereira, Sérgio Paulo
Rouanet e Miguel Reale não pisaram ovos perante o qualificativo de polemista
atribuível ao amigo. Em Figuras da
inteligência brasileira, Reale fere a questão de modo exemplar: “Em poucos
escritores senti tão intensa e viva a angústia de comunicação e participação, o
que, de um lado, explica a natureza dialógica de seus estudos, em permanente
cotejo com posições afins ou contrárias, e, de outro, a preocupação de nunca
deixar críticas sem resposta [...].” (REALE, 1994, p.165) Com palavras mais
descontraídas, por ocasião da solenidade comemorativa dos 10 anos de falecimento
de Merquior, Rouanet referiu-se, mais de uma vez, ao gosto pela polêmica que
marcou profundamente o homenageado. A partir de lembrança de antigo debate
entre os dois em torno do marxismo, Rouanet, confessando-se então vencido e
convencido pela opinião do amigo, afirmou: “Mas José Guilherme era um polemista
tão incorrigível, que talvez, só pra continuar a polêmica, ele mudasse de
posição [...]”. (ROUANET, 2011, p.250)
Obviamente, há algo aí que suplanta o meramente
anedótico. É frequente mencionar-se os nomes de Marilena Chauí, de Eduardo
Mascarenhas, de Hélio Pellegrino, quando se pretende noticiar as polêmicas nas
quais Merquior se envolveu. Houve nesses episódios, porém, indisposição
pessoal, e não puramente confronto de ideias. Sendo assim, a nosso ver, seria
esclarecedor acrescer os nomes de Sérgio Paulo Rouanet, Carlos Nelson Coutinho,
Leandro Konder, amigos com quem Merquior chegou a travar belas polêmicas,
acaloradas, mas sem deixar de ser calorosas. Ou seja, a concepção merquioriana
de polêmica realizou-se na prática, sim, como exercício democrático de
manifestação e defesa de ideias, e não mero sintoma de autoritarismo
ideológico.
Como primeira etapa de nossa discussão, fiquemos por
aqui, solicitando que o leitor retenha a consciência de José Guilherme Merquior
da dissonância como característica da “alma contemporânea”, para a qual seria
imprescindível “uma sociedade aberta”, e como um dos dispositivos discursivos
que manifestam essa dissonância a polêmica. Em suma, para nossos propósitos, a
disposição à polêmica poderá ser a chave de compreensão de Merquior como
intelectual nos tempos da ditadura.
Nesta segunda etapa de nossa investida,
passaremos a tentar situar a obra de Merquior, que, para efeitos deste artigo,
necessariamente ultrapassa o apenas escrito por ele, com reflexões em torno do
papel e do lugar do intelectual na sociedade novecentista. Para esse fim,
elegemos, dentre uma bibliografia numerosa, três livros de autores distintos:
as Representações do intelectual, transcrição
e reunião das conferências Reith que Edward Said pronunciou, a convite da rede
britânica BBC, em 1993; Os últimos
intelectuais, de Russell Jacoby, originalmente publicado, em inglês, em
1987; e O intelectual e o poder, de
Eduardo Portella, volume de 1983. Por que tais títulos? O recorte mínimo e a
seleção pareceram-nos pertinentes, na medida em que o livro de Said poderia
proporcionar uma atualização de cunho mais universal para a questão do
intelectual, sem demasiada distância cronológica da época em foco; o livro de
Jacoby contribuiria especialmente para a contextualização no que se refere ao
fenômeno da expansão universitária e profissionalização acadêmica, entre as
décadas de 1940 e 70; e o de Portella funcionaria como termo comparativo
nacional, ideológico, afetivamente mais próximo de Merquior, dado que eram
grandes amigos.
Ao introduzir as reflexões que desenvolveu no
volume, Edward Said pontua características e tarefas que o intelectual que faça
jus a este título toma para si como norteadores de atuação. “Uma das tarefas do
intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias
redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (2005, p.10),
afirma o autor, que, mais adiante, acrescenta: “[...] minha tentativa nessas
conferências foi, antes de mais nada, falar de intelectuais precisamente como
aquelas figuras cujo desempenho público não pode ser previsto nem forçado a
enquadrar-se num slogan, numa linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido.” (2005,
p.12)
Como situar José Guilherme Merquior
perante tais caracterizações iniciais? O que anteriormente observamos deve ser
retomado. Julgamos correto afirmar que o estereótipo consiste em uma das
expressões do senso comum, obviamente, do senso comum de uma determinada
comunidade. O pensamento merquioriano, como vimos, instrumentalizou
sistematicamente a polêmica como dispositivo dialógico, no fito de contribuir
para a circulação das ideias, mas também de testar a pertinência das ideias.
Esse esforço, havemos de concordar, atesta a procura de se escapar justamente
do que se configurou como consenso. Pois a polêmica, nos moldes gerais em que
Merquior a travou, agride “os estereótipos e as categorias redutoras”.
Em junho de 2013, tivemos a
oportunidade de comunicar, em simpósio dedicado ao tema da “Literatura e dissonância”,
do XXIII Congresso Internacional da ABRALIC, realizado em Campina Grande-PB, o
texto “Vai, Merquior! desafinar o coro dos descontentes...”. Em síntese, voltado
principalmente para a última década de sua produção, observamos, nessa
comunicação, que o autor de A natureza do
processo se empenhou em martelar ídolos de universidades brasileiras e
estrangeiras, como o marxismo, a psicanálise, a arte de vanguarda, os quais,
por aquela altura, já se institucionalizaram numa espécie de imperativo
categórico que impeliria professores e estudantes a integrarem o coro dos
descontentes. José Guilherme Merquior, portanto, contra a doxa cultural
acadêmica, contra o movimento contracultural esvaziado em moda, era uma voz
dissonante nesse mesmo meio, o universitário, de que não deixou de fazer parte.
Afinal, assevera Said: “O que o intelectual menos deveria fazer é atuar para
que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e
até mesmo desagradável.” (2005, p.2
Por outro lado, não teria Merquior se enquadrado “num slogan, numa linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido”, ao manifestar-se dentro dos propósitos referidos no parágrafo anterior? No decorrer das três décadas nas quais o autor carioca exerceu publicamente suas atividades intelectuais, não verificamos que ele tenha se aferrado a um slogan específico, e, de fato, é impossível reduzir o pensamento crítico merquioriano a uma palavra ou a uma frase de ordem. Quanto aos vínculos com a campanha e a gestão presidencial de Fernando Collor de Mello, estamos de acordo com a hipótese de Luiz Costa Lima, para quem “o posterior envolvimento [de Merquior] com governos que caminhavam do turvo ao torpe [não] tivera [propriamente] relação com suas opções intelectuais anteriores [, mas], conforme me inclino a crer, a silenciavam”. (2002, p.399) Todavia, ao aceitarmos essa hipótese como fato, a condição de Merquior como intelectual, por conseguinte, fica comprometida, segundo os parâmetros de Edward Said, em outro aspecto
Recordemos uma lição de Roland Barthes. Em ensaio clássico de O rumor da língua, o crítico francês ensinava que “desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”. (2004, p.58) Said, consciente das diferenças entre o escritor com objetivos literários e o escritor com objetivos intelectuais, por sua vez, alertou: “A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público [...].” (2005, p.25)
Por outro lado, não teria Merquior se enquadrado “num slogan, numa linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido”, ao manifestar-se dentro dos propósitos referidos no parágrafo anterior? No decorrer das três décadas nas quais o autor carioca exerceu publicamente suas atividades intelectuais, não verificamos que ele tenha se aferrado a um slogan específico, e, de fato, é impossível reduzir o pensamento crítico merquioriano a uma palavra ou a uma frase de ordem. Quanto aos vínculos com a campanha e a gestão presidencial de Fernando Collor de Mello, estamos de acordo com a hipótese de Luiz Costa Lima, para quem “o posterior envolvimento [de Merquior] com governos que caminhavam do turvo ao torpe [não] tivera [propriamente] relação com suas opções intelectuais anteriores [, mas], conforme me inclino a crer, a silenciavam”. (2002, p.399) Todavia, ao aceitarmos essa hipótese como fato, a condição de Merquior como intelectual, por conseguinte, fica comprometida, segundo os parâmetros de Edward Said, em outro aspecto
Recordemos uma lição de Roland Barthes. Em ensaio clássico de O rumor da língua, o crítico francês ensinava que “desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”. (2004, p.58) Said, consciente das diferenças entre o escritor com objetivos literários e o escritor com objetivos intelectuais, por sua vez, alertou: “A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público [...].” (2005, p.25)
Sendo assim, a discordância da
prática política com o pensamento crítico, nos seus últimos anos de vida, parece
evidenciar a parcialidade representativa de José Guilherme Merquior como
intelectual, dentro dos parâmetros estabelecidos nas conferências de Said, uma
vez que, para este, o intelectual é “alguém que não pode ser facilmente
cooptado por governos ou corporações”. (2005, p.26) Aliás, vale aqui reiterar
as censuras implicadas no exercício do cargo de diplomata, tendo sido Merquior,
efetivamente, vítima de sua própria sujeição a esse cerceamento da palavra.
A questão importa nos termos de
nossa discussão, pois o autor palestino compreende o intelectual “como um
exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que tenta falar a
verdade ao poder”. (2005, p.15) Trata-se, está claro, de postura o mais
autônoma, mais independente possível, no propósito de mais plena defesa de
valores universais – não necessariamente circunscritos a uma instituição, a uma
nação, a um governo –. Quanto a isso, ainda adverte Said que “os governos
continuam a oprimir abertamente as pessoas, graves erros judiciários ainda
acontecem, a cooptação e inclusão de intelectuais pelo poder continuam a calar
a sua voz, e o desvio dos intelectuais da sua vocação é ainda muitas vezes uma
realidade”. (2005, p.31-32)
Quereria isso implicar que José
Guilherme Merquior se enquadraria na categoria dos intelectuais conformados,
dos quais Said diferencia dos inconformados nos termos abaixo transcritos?
De um lado, há
os que pertencem plenamente à sociedade tal como ela é, que crescem nela sem um
sentimento esmagador de discordância ou incongruência e que podem ser chamados
de consonantes: os que sempre dizem “sim”; e, de outro, os dissonantes,
indivíduos em conflito com sua sociedade e, em consequência, inconformados e exilados
no que se refere aos privilégios, ao poder e às honrarias. (2005, p.60)
Nossa resposta, se impostas as opções do sim ou do não,
prefere o silêncio. Pois Merquior, na condição de funcionário público de alto
nível socioeconômico, não se exilou desse mundo de privilégios, de poder
oficial, de honrarias, tampouco a ele se opôs explícita e frontalmente.
Todavia, o que pensar diante da consciência merquioriana da dissonância ou
discordância e a prática discursiva desta na polêmica? Donde cabe a
contrapergunta: o que Said quer dizer com “os que pertencem plenamente à
sociedade”? A uma sociedade de representação política? De oposição ou de
situação? A uma sociedade acadêmica? Ao povo? A fragmentação social moderna e
contemporânea dificulta bastante o estabelecimento de uma referência dessa
discordância, desse exílio ideológico ao qual Edward Said se refere.
Ademais, o entusiasmo liberal pronunciado na década
de 80 por Merquior não nos parece conotar um sim incondicional à sociedade
brasileira, em suas características de disparidade econômica, em seu
centralismo governamental, tampouco a diversas manifestações culturais em voga
na época. O que talvez possamos concluir, por ora, é que o lá ou cá conceitual
de Said recai numa simplificação, numa desatenção à complexidade de uma cultura
que “vive em conflito de valores”.
Passemos para o próximo título – Os últimos intelectuais. Nesse livro, Russell Jacoby discute o
que diagnostica como a extinção dos intelectuais norte-americanos ou, talvez
mais propriamente, o desconhecimento por parte do público em geral dos
intelectuais que se esperaria constituírem a geração de 1960. Ao passo que
nomes de gerações anteriores seriam facilmente lembrados, Jacoby observa que,
comparativamente, muito poucos intelectuais nascidos na década de 1940 e a
partir desse decênio, nos EUA, haviam conseguido estabelecer efetivo diálogo e
impacto na sociedade, fato que daria a sensação de que: “Está faltando uma
geração” (1990, p.33). Para o autor, a lacuna se explicaria como decorrência da
expansão do ensino superior, nos anos 60 e 70 do século passado, o que teria
gerado o fenômeno da profissionalização do intelectual. Desse modo, nas
palavras de Jacoby:
O peso total do
academicismo atingiu a geração nascida após 1940; eles cresceram em um mundo em
que eram raros os intelectuais independentes da universidade. Assim como as
gerações anteriores de intelectuais quase nunca consideravam as carreiras
universitárias, o inverso se tornou realidade: esta nova geração quase nunca
considerava uma vida intelectual fora da universidade. (1990, p.30)
Conquanto trate especificamente do contexto
norte-americano, Os últimos intelectuais aborda
processos e problemas que também aconteciam no Brasil da mesma época. Esse
livro traz informações como: “Em 1900, a universidade era estritamente um
assunto da elite, atendendo a cerca de 4 por cento dos jovens de dezoito a 22
anos; no final dos anos 60, cerca de 50 por cento do grupo entre dezoito e
dezenove anos estavam ingressando no sistema educional superior” (1990, p.143)
e “Os estudantes de pós-graduação aumentaram de cerca de 100 mil em 1939-40
para mais de 1 milhão em 1970” (1990, p.144). Tomemos como termo comparativo brasileiro
o sucedido nos cursos de Letras, um dos alvos da Reforma Universitária de 1967,
tendo-se reformulado sua grade curricular na mesma década, e ainda implantado
cursos de pós-graduação na área, ao fim dos anos 60 (cf. ROCHA, 2002, p.14-15).
Esse processo consolidará uma notória novidade no panorama da crítica literária
nacional: ao contrário das gerações anteriores do mesmo século, no mais das
vezes sem formação universitária específica, e atuando como jornalistas, ao
publicarem preferencialmente em rodapés, grande parte dos novos críticos vinha
se profissionalizando, graduando-se em Letras. Na verdade, já antes, desde
meados da década de 40, havia o prenúncio da “crescente perda de poder deste
intelectual sem especialidade, deste ‘leitor-que-sabe-de-tudo’, que dominava o
jornalismo literário” (SÜSSEKIND, 2002, p.18). Esse contexto se transforma
definitivamente não apenas em decorrência das reformas e da expansão dos cursos
de Letras, mas também da “regulamentação da profissão de jornalista, de 17 de
outubro de 1969” (SÜSSEKIND, 2002, p.31).
A expansão do ensino universitário seduzia grande
parte da inteligência nacional com a estabilidade financeira, modificando assim
a ambientação intelectual e profissional do País. A custo, geralmente, como
sublinha Jacoby para o contexto norte-americano, da maior autonomia e liberdade
de pensamento. Com efeito, segundo Russell Jacoby, a profissionalização acadêmica
provocava dois grandes prejuízos para o exercício autêntico da intelectualidade:
1) a restrição da autonomia do pensamento e expressão, uma vez que o professor
devia conformar-se a regras institucionais, aos gêneros textuais e ao jargão
que cada área estabelecia; e 2) a restrição da capacidade de intervenção social
ampla, da qual haviam desfrutado os intelectuais de gerações anteriores, mais
propensos à vida boêmia, por um lado, mas por outro, formuladores de um
pensamento estilisticamente mais acessível ao público em geral. O que teríamos,
então, poderia ser expresso na fórmula do paradoxo: a marginalização do
intelectual, traduzida na vocação boêmia, associava-se à comunicação efetiva
com a sociedade; e a conformação social do intelectual, condicionada pela
estabilidade profissional e financeira, associa-se à dificuldade na comunicação
com a sociedade, em virtude (ou vício) do recurso a uma linguagem destinada a
iniciados.
Desconsiderando-se o fator da boemia, para nos
atermos ao aspecto diletante da crítica literária no Brasil, tanto nos EUA
quanto aqui, o confinamento da maioria dos intelectuais ao gueto acadêmico, com
seu linguajar, suas intervenções realizadas em congressos e em teses dirigidos
ou acessíveis a um público específico, também de acadêmicos, implicou a perda
da faceta socialmente mais participativa do intelectual, de seu papel de
consciência política, convertido este em papéis escritos sob o estímulo do
irônico “publish or perish” (“publique ou pereça”).
Em mais de um texto, José Guilherme Merquior
manifestou desagrado frente a tais condições de pensamento em tempos de
massificação do ensino, fenômeno que afetava o lugar do intelectual nos EUA,
mas também no Brasil e, é justo dizê-lo, em boa parte do Ocidente. Seu artigo
provocativamente intitulado “O estruturalismo dos pobres”, de 1974, por
exemplo, atentava para o problema “da universidade que, desejando-se socialmente antielitista, por fidelidade
ao imperativo da democratização do ensino, vem destruindo, consciente ou
inconscientemente, o outro elitismo
da universidade tradicional – o seu legítimo aristocratismo intelectual”. (1975; 12) Ao discutir a
validade de certa ideia de progresso, em A
natureza do processo, livro publicado em 1982, Merquior reincide em sua
percepção dos fatos:
A expansão do
número de universitários não significa, automaticamente, nenhum aperfeiçoamento
da instrução superior – ao contrário, em muitos países, entre os quais o nosso,
veio dificultá-lo. A multiplicação de especializações com direito à ocupação
exclusiva de certos empregos não é um efeito natural do progresso da divisão do
trabalho, levando a maior eficiência em várias funções. Longe disso: com
frequência o reino do diploma cria rigidez e ineficiência. Antigamente, por exemplo, os colunistas econômicos
dos grandes jornais brasileiros eram economistas, profissionais ou amadores.
Hoje, eles têm que ser obrigatoriamente formados em “comunicação” – e, em
consequência, pouco entendem da matéria sobre a qual vão escrever... (1982,
p.26)
Sem dúvida, a preferência de Merquior pela dicção
ensaística e polêmica derivava do desejo de desacademizar as ideias cada vez
mais conformadas ou padronizadas pelas instituições universitárias. O ensaísmo,
forma avessa ao rigor de gêneros como artigo, dissertação e tese, e a polêmica,
propensa a desestabilizar o conforto das ideias enquadradas naquele formato, na
maioria dos casos, destinadas assim ao não diálogo, constituíram o instrumento
básico da militância merquioriana, que pretendia, “aquém do jargão, além do
chavão”, conforme professou em A natureza
do processo (1982, p.10), atingir potencialmente o maior número de leitores.
Com isso, dois objetivos pareciam estar em vista. Um de cunho científico: fazer
circular as ideias, sujeitando-as à discussão, às críticas alheias, desse modo
consolidando-se ou reconsiderando-se as próprias opiniões; outro de cunho
pedagógico: mediante a linguagem mais acessível a uma maior dimensão de
público, no que colaborava o suporte do jornal, ensejar a instrução em
determinados temas artísticos, filosóficos, políticos, econômicos etc.
O curioso é que José Guilherme Merquior, embora
tivesse mantido postura discursiva não acadêmica nos aspectos aqui em foco,
buscou uma formação acadêmica invejável, graduando-se em Direito no Brasil,
doutorando-se e obtendo grau de PhD no exterior, lecionando em universidades
nacionais e estrangeiras, tendo sido aluno de Lévi-Strauss... Mas, na época dos
que nasceram depois de 1940 (e Merquior nasceu em 1941), em companhia de
Jacoby, perguntamos nós: aonde recorrer, em busca de formação intelectual
consistente, senão à universidade? De qualquer modo, o ensaísta e polemista
Merquior, com persistência, fincou os pés no território da autonomia de
pensamento e na idiossincrasia do estilo. Ademais, sua crítica sistemática ao
esteticismo das vanguardas, ao formalismo de certa crítica literária e sua
aversão ao jargão encarnado no “delírio tecnicista” (MERQUIOR, 1996, p.7) ou
“terrorismo terminológico” (MERQUIOR, 1975, p.8) pode ser iluminada pelos
seguintes trechos de Os últimos
intelectuais, em torno do marxismo de Fredric Jameson: “O problema não é só
o jargão excessivo de Jameson, mas o próprio jargão: tudo é texo e mais texto”,
a ponto de, em consonância com as lições de Roland Barthes e Jacques Derrida,
“abdica[r-se] da preocupação com um contexto social ou material” (JACOBY, 1990,
p.185). Ou seja, a arte pela arte vanguardista, a forma pela forma do
estruturalismo pareciam irmanar-se com a produção acadêmica pela produção
acadêmica, ou ainda com “fetichismo da teoria” (JACOBY, 1990, p.186), sem
ressoarem os três termos socialmente.
Confrontemos agora o trajeto como intelectual de
José Guilherme Merquior com as reflexões a respeito do assunto expostas por
Eduardo Portella, em O intelectual e o
poder. Trata-se, conforme já noticiamos, de livro publicado em 1983, altura
em que o regime militar brasileiro encontrava-se em período crepuscular,
anunciando a abertura para a democracia e o governo civil. Integrante do
gabinete civil do presidente Juscelino Kubitschek, ministro da educação no
governo de Figueiredo, Portella, assim como o amigo Merquior, pôde conhecer por
dentro o mecanismo do poder estatal, vivenciando conflitos entre sua assumida
condição de intelectual (publicou numerosos títulos seus e alheios na área da
crítica e teoria literárias, sendo editor da importante Tempo Brasileiro), e o
exercício frequente de cargos políticos de grande destaque. O intelectual e o poder resulta, em boa
parte, da biografia profissional do autor, mas se volta principalmente para uma
universalização do que deve cumprir o intelectual, que necessariamente lida com
e enfrenta o poder.
É digno de nota ainda, como consideração inicial, o
fato de que autor do volume assumia ter se dado a liberdade de evitar os moldes
dos gêneros acadêmicos e as intenções da erudição (cf. 1983, p.11), sendo tais
aspectos formais, diante do que anteriormente discutimos, a partir do livro de
Russell Jacoby, muito significativos da postura intelectual de Eduardo
Portella, para quem:
O erudito
instalado na instituição acadêmica parece haver optado por outra forma de
isolamento: ele se isola dentro de um inacessível jargão, nas paredes do qual
se encontra uma enorme placa proibindo a entrada até aos menos comuns dos
mortais. Esses iniciados nos segredos de todos os ocultismos, em vez de
trabalhar com a linguagem, operam com sinais cifrados. (1983, p.82)
Infere-se, desde já, que Portella compreende o intelectual como função avessa ao disseminado solipsismo acadêmico hegemônico, donde o autor partir de hipóteses conceituais diversas, nem todas elogiosas:
O intelectual
constitui, nos quadros do capitalismo de organização, um núcleo infatigável de
resistência política? Uma peça de museu reverenciada, um anacronismo
descartável, ou um agente de renovação social? É provável que cada um desses
enunciados contenha, paradoxalmente, substancial parcela de verdade. (1983,
p.18)
Assim como E. Said e R. Jacoby, E. Portella
distingue mais de uma postura do intelectual, balizando comportamentos e
ideário compatíveis com que seria o ideal ou o mais autêntico tipo. Nesse
sentido, o autor indica um percurso histórico que partiria do ambiente de
certezas, onde se situaria a “figura do letrado,
particularmente confessional, que estende a sua jurisdição desde o beletrista
até o médico humanista”, passaria pelo “espectro do especialista, o técnico por antecipação, que invade as profissões
liberais e ‘funcionaliza’ os saberes universais”, que, por sua vez, cede lugar
ao “tecnocrata, a corruptela e até o kitsch do técnico, aquele que se dedica
a restaurar a certeza na era da incerteza
– o portador de um saber cada vez mais dominador e excludente.” (1983, p.19)
Na época em que Portella enuncia, atuariam, pois, os
dois grandes tipos: o eticamente deturpado e o ideal do intelectual. A
diferença determinante se verificaria no fato de que “O intelectual não pertence ao poder. O tecnocrata sim:
subservientemente.” (1983, p.53) A esse propósito, em outra passagem do livro
de Portella, lemos a seguinte contestação: “Costuma-se afirmar que todo governo
‘tem’ os seus intelectuais; como se essa capciosa relação de posse não
implicasse na violação do próprio caráter intelectual – uma vez que, o
intelectual tido, de há muito já
deixou de ser.” (1983, p.26)
Em contrapartida, Portella evita santificar o que
considera apenas um tipo ideal, na medida em que este deverá consistir em “um
sujeito histórico concreto” (1983, p.21), e não “um feiticeiro modernizado, o
ambicioso super-herói, talvez o semideus persistente da galáxia da Ilustração.”
(1983, p.19) Por isso mesmo, se revelaria tão incomum a representação mais
autêntica do intelectual e tão mais comum a do intelectual corrompido, que, “à
sua maneira, reproduz o poder ao qual se pretende opor: o intelectual que
exclui; e já não o que se acha excluído.” (1983, p.78)
Se a conspurcação do intelectual, para Russell
Jacoby, decorre, em maior medida, de sua profissionalização acadêmica, para
Eduardo Portella, o fator maligno é não mais abstrato, porém mais tentacular: o
poder – o poder, sobretudo, que o Estado pode deter, principalmente nos moldes
autoritários. Sendo assim, reflete o autor:
A crise é, mais
do que nunca, de legitimidade; de rendimento social dos esforços
racionalizadores. Não advém da inviabilidade de uma nação espiritualmente
combalida. Mas do muito Estado na nação, e da pouca nação no Estado. O que já
se chamou, com louvável precisão, de ‘golpe de Estado tecnocrático’, é ainda –
permanente e progressivo. A decisão concentracionária alarga o raio de alcance
do autoritarismo. Regulando preços, salários, parte substancial dos
instrumentos de formação de opinião, subsidiando, direta ou indiretamente,
ponderável parcela da produção cultural, o Estado condena o trabalho
intelectual a uma dependência particularmente brutal. (1983, p.47)
Dentro dos termos de discussão de Portella, como
situarmos a atuação intelectual de José Guilherme Merquior? Para começo de
conversa, o autor de Os intelectuais e o
poder sugere ser ele mesmo espécime do que defende ser o tipo ideal de
intelectual. De fato, em passagens desse livro, há o relato autobiográfico de
como Portella reagiu, no exercício de cargos públicos, a coações da hierarquia,
que comprometeriam, caso a elas se sujeitasse, seu compromisso ético de
intelectual. Portanto, parece se estabelecer aqui importante diferença entre o
ideal de Said e o ideal de Portella; em outras palavras, o intelectual
portelliano, ao contrário do saidiano, consegue manter-se, não sem enfrentar
obstáculos, é claro, mas principalmente porque os supera, um autêntico
intelectual, mesmo que exerça cargos políticos de elevada importância.
No caso de Merquior, não dispondo nós de informações
mais detalhadas senão as esparsas em depoimentos de amigos e colegas, não é
fácil determinar exatamente seu enfrentamento do poder. Sua boa relação com
José Sarney, com Roberto Marinho, com Fernando Collor de Mello, significaria
subserviência ao poder? Não nos sentimos, mais uma vez, seguro para dar nossa
resposta. Se, em vez de “subserviência ao poder”, disséssemos “conformismo”,
tendemos a responder que Merquior não poderia ser associado a essa postura
tecnocrática. Pois, para ainda nos apoiarmos no livro de Portella,
identificamos Mequior muito mais como um “Conviva ou criatura da dúvida, muito
mais do que produtor ou consumidor de ideologias” (1983, p.58), que não se
teria permitido atuar intelectualmente nas condições abaixo:
Fechado no seu
pequeno mundo, nostálgico, ressentido, o intelectual se assemelha a um guru
subempregado; ao qual se houvesse retirado a audiência. Então ele se tranca
ainda mais, e todo interlocutor independente não passa de um disfarçado agente
da barbárie. A competência autocrítica, inerente à sua condição, deixa até de
ser uma hipótese remota. A fobia da discrepância é a doença que se alastra. E
nessa hora, ele é todo um guerreiro da palavra. O seu código é um arsenal; a
sua fala, dispara. Sanguíneos e apopléticos, reproduzem a passionalidade
mórbida. Jamais a paixão criadora. Os apenas passionais carecem de genuína
paixão. Já não falo sequer de compaixão. Esses enfurecidos, ou coléricos, se
abandonaram à raiva porque romperam todos os elos com o próximo. (1983, p.79)
Merquior teria sido, na condição de polemista, sim
um guerrilheiro das ideias, mas sua obra não manifesta “passionalidade
mórbida”, mas “paixão criadora”. A ensaística merquioriana não objetivava a
destruição, mas a edificação do pensamento, de forma comparável à da sua tão
amada geração modernista de 22.
De tudo que expusemos, o que concluímos? Que espécie
de intelectual foi José Guilherme Merquior, nos tempos de regime militar
brasileiro? Está claro que nosso parâmetro comparativo não poderia ser o do
engajamento da esquerda na época, que não se limitou a contestar verbalmente a
ditadura capitalista, mas também se empenhou em combatê-la fisicamente,
sujeitando-se à clandestinidade, a perseguições, à tortura, ao assassinato etc,
até ao ponto da impossibilidade de atuação dos grupos mais conhecidos, como VPR,
MR-8, COLINA e ALN. Definitivamente, este não consistiu no modelo de
intelectual para Merquior, funcionário operoso e exemplar a serviço dos
interesses da diplomacia de Brasília. Com isso, porém, não pretendemos insinuar
a inferioridade ética do papel de intelectual exercido pelo nosso autor,
tampouco ratificar os célebres rótulos de “intelectual dos militares”, de “reaça”,
“pensador de direita”, entre outros. Afinal de contas, significativa parcela
dos militantes contrários ao governo de entre 1964 e 1985 tomava como ideal
político de oposição os regimes soviético e cubano; como todos sabemos,
igualmente perseguidores, torturadores, silenciadores da liberdade de expressão
etc.
Edward Said, a propósito, no livro discutido neste
artigo, caracteriza como tolice, para um autêntico intelectual, escolher, por
imposição da realidade, entre duas opções políticas ruins. Por que não aspirar
ao melhor, ainda que se trate de atitude utópica? O fato de Merquior ter sido
funcionário público durante a ditadura não implica adesão ideológica, nem
colaboracionismo. Sua obra publicada na década de 1970 aplaudia uma arte de
formulação socialmente crítica, afastada do que o autor compreendia como
alienação do esteticismo de muitas realizações vanguardistas. Por outro lado, a
campanha merquioriana e entusiasticamente favorável ao liberalismo, sobretudo
ao social liberalismo, ao longo da década de 80, também ia de encontro ao
procedimento político das gestões autoritárias, ao postular participações
menores ou mínimas do Estado no âmbito da economia, mas uma maior e mais
eficiente disposição estatal em solucionar as disparidades tão cruéis da
sociedade brasileira.
Em “Padrões de construção do Estado no Brasil e na
Argentina”, texto coligido em Os estados
na história, sob organização de John Hall, publicado originalmente em 1986,
José Guilherme Merquior salientava o centralismo e o autoritarismo como marcas
da tradição política histórica de ambos os países sul-americanos. Ao se deter
sobre o período do regime militar, ainda bastante recente, o ensaísta explicava
terem se estabelecido governos autoritários, de centralismo socialmente forte,
mas “politicamente fraco” (MERQUIOR, 1992, p.415) e não ter havido por parte
deles efetiva preocupação com “produção de novos símbolos de legitimidade”
(1992, p.415), senão “a legitimidade que pode ser extraída de um sucesso
econômico duradouro”. (1992, p.416) A curta duração do conhecido “milagre
brasileiro”, entretanto, não parecia ter compensado os longevos prejuízos
sociais legados para os gestores civis. O centralismo despótico dos ditadores,
segundo Merquior,
Em primeiro
lugar, aumentou a distância entre a riqueza das regiões, tão visível no
contraste entre o Sul rico e o Nordeste pobre – graças especialmente a uma seca
de dimensões bíblicas. Em segundo lugar, o abismo entre, de um lado, os
escalões superiores da sociedade e uma classe média expandida, e, de outro, a
pobreza das massas, que frequentemente chegava à miséria absoluta permaneceu
[...]. A face social do centralismo “despótico” realmente é assustadora: a fria
máscara de uma sociedade tão abandonada. (1992, p.415)
O social-liberalismo que José Guilherme Merquior
abraçou, em período no qual o regime militar agonizava, se propunha objetivamente
a eliminar os maus hábitos políticos e as mazelas sociais que o País herdaria
da ditadura. Em “Tarefas da crítica liberal”, clamava pela tolerância em
relação a opiniões distintas, pela discussão de ideias sem ataques pessoais, o
que, caso contrário, ecoaria práticas de censura; clamava também Merquior pelo
equacionamento da intervenção do Estado, nem hipertrofiado, nem atrofiado, mas
direcionado a se fazer de criador de “oportunidades concretas de vida e de
avanço para a maioria esmagadora da população” (MERQUIOR, 1981, p.18-19). É
sinceramente de se duvidar que José Guilherme Merquior tardasse a desacreditar
que o jovem candidato à presidência Fernando Collor de Mello, que, em campanha,
rugia contra os marajás e apelava aos “descamisados”, promoveria, se eleito, o
social-liberalismo dos sonhos merquiorianos. Em “Padrões da construção do
Estado no Brasil e na Argentina”, três anos antes das eleições de 1989, o autor
criticava o tratamento peronista à “classe trabalhadora, que era ao mesmo tempo
mimada paternalisticamente (os descamisados
de Evita) e tratada como uma plebe, ao invés de respeitada, como no Ocidente
keynesiano, onde assumia a condição de um ‘quarto Estado’ independente”.
(MERQUIOR, 1992, p.409) Deu no que deu.
Seria, então, o caso de descolar as ideias que
proferia o intelectual José Guilherme Merquior do homem José Guilherme
Merquior? O chiste de Rouanet, em seu depoimento mencionado anteriormente neste
artigo, em homenagem aos 10 anos de falecimento do amigo, nos incentiva a
pensar nesse sentido. Mas aí não faríamos com que o autor de Razão do poema tivesse praticado a
polêmica pela polêmica, as ideias pelas ideias, em mais outra versão da arte
pela arte, da forma pela forma e da produção acadêmica pela produção acadêmica?
Referências bibliográficas:
BARTHES, Roland.
“A morte do autor”. In: O rumor da língua.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. pp.57-64.
JACOBY, Russell. Os últimos intelectuais: a
cultura americana na era da academia. São Paulo: Trajetória Cultural; USP, 1990.
LIMA, Luiz Costa. “Um certo Merquior”. In: Intervenções.
São Paulo: Edusp, 2002.
MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
______. De Anchieta a Euclides: breve história
da literatura brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994.
______. Discurso
como orador da turma do Instituto Rio Branco de 1963. In: LAFER, Celso et alii.
José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: FUNAG/IPRI, 1993. pp.40-45.
______. Discurso
de posse na Academia Brasileira de Letras. Disponível em <<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13257&sid=330>>. Acesso
em 27 de junho de 2013.
______.
Nota antipática. In: BANDEIRA, Manuel. Poesia
do Brasil. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963.
______.
O estruturalismo dos pobres. In: O
estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975. pp.7-14.
______.
“Padrões de construção do Estado no Brasil e na Argentina”. In: HALL, John
(org.). Os estados na história. Rio
de Janeiro: Imago, 1992. pp.386-418.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de
estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações: Topbooks, 2013.
______.
Situação de Miguel Reale. In: LAFER, Celso e FERRAZ JR., Tércio Sampaio
(coords.). Direito, política, filosofia,
poesia: estudos em homenagem ao professor Miguel Reale. São Paulo: Saraiva, 1992. pp.31-38.
______. The Western Marxism. London: Paladin,
1986.
PORTELLA,
Eduardo. O intelectual e o poder. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
ROCHA, João Cezar de Castro e. Crítica literária: em busca do tempo perdido?. Chapecó: Argos, 2011.
ROUANET, Sergio Paulo. In: Dez anos sem José Guilherme Merquior: mesa-redonda realizada na Academia Brasileira de Letras no dia 4 de outubro de 2001. pp.247-259.
SAID, Edward. Representações do intelectual:
as conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SÜSSEKIND, Flora. “Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira
moderna”. In: Papéis colados. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
VEJA. Disponível em <<http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_014.html>>. Acesso
em 15 de abril de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário