“O ‘povo’ não precisa de poesia ao seu
nível; o que melhora o povo, o que o ergue
a dignidades injustamente recusadas,
é dotá-lo do poder e da consciência de receber a arte [...].”
José Guilherme Merquior (Razão do poema)
Saudade! Olhar
de minha mãe rezando,
E o pranto lento
deslizando em fio...
Saudade! Amor da
minha terra... O rio
Cantigas de
águas claras soluçando.
Noites de
junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o
arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as
folhas lívidas cantando
A saudade
imortal de um sol de estio.
Saudade! Asa de
dor do Pensamento!
Gemidos vãos de
canaviais ao vento...
As mortalhas de
névoa sobre a serra...
Saudade! O
Parnaíba – velho monge
As barbas
brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos
bois da minha terra...
Foi
transcrito acima o soneto “Saudade”, de Da Costa e Silva. Acerca desse texto,
realmente célebre, de um poeta nacionalmente reconhecido e regionalmente
considerado um dos maiores senão o seu maior nome (o “Príncipe dos poetas
piauienses”), José Guilherme Merquior o reputa como “o mais famoso poema sobre
a saudade, o poema titular sobre a saudade, o poema que nesse sentido ficou
vincado na memória popular tanto quanto a famosa canção gonçalvina”. (2000, p.41)
É
preciso compreender os motivos do exagero elogioso na comparação entre o soneto
do poeta nascido no Piauí e a “Canção do exílio” do maranhense Gonçalves Dias: Merquior
escreveu o ensaio ao qual pertence a passagem citada no parágrafo anterior, sob
a gratidão e o incentivo da edição das Poesias completas de Da Costa e Silva,
de 1977, preparada pelo filho deste, Alberto da Costa e Silva, quem presenteou
o amigo autor de Verso universo em
Drummond com um exemplar.
O
ensaio de Merquior, intitulado “Indicações para o estudo da obra de Da Costa e
Silva”, prefacia a edição revista e ampliada da Nova Fronteira, de 2000,
daquelas Poesias completas, e
principia com esta confissão:
Quando
o meu caro amigo e, ele mesmo, alto poeta, Alberto da Costa e Silva, me deu sua
cuidada e carinhosa edição das Poesias
completas de seu pai, em 1977, eu mal conhecia – digo mal conhecia como
crítico, mal conhecia em profundidade, mal conhecia na totalidade da obra –
esse grande poeta. Eu o sabia um nome, e um nome historicamente importante não
só na poesia do Nordeste, mas na poesia do Brasil, durante todo um período que,
por sinal, foi dos mais ricos do nosso estro poético. (2000, p.37)
De
certa forma, pode-se considerar o estudo de José Guilherme Merquior sobre o
poeta piauiense um suplemento a De
Anchieta a Euclides que, segundo o crítico carioca, por se encerrar em
momento que antecede em seis anos o início da publicação da obra de Da Costa e
Silva (1908), não a contempla (de fato, Os
sertões, de Euclides da Cunha, vem a público em 1902). A abordagem
interpretativa do ensaio-prefácio é a mesma daquela breve história da
literatura brasileira de 1977, coincidentemente nascida, portanto, no mesmo ano das Poesias completas de Da Costa e Silva.
A
análise merquioriana parte de uma rigorosa contextualização histórica, visando
a compreender, formalmente, a obra do piauiense. Publicada essa obra entre 1908
e 1927, para José Guilherme Merquior, “Da Costa e Silva representou um papel
poético do maior relevo na nossa Belle
Époque”, (2000, p.37-38) a qual
teria tido começo no crepúsculo do século XIX e término, no caso brasileiro, conforme
garante o ensaísta, em torno de 1930, ano este de “rupturas e convulsões
epitomizadas pela Revolução de 30”. (2000, p.38) Em vista da tradição
periodológica de nossa historiografia, essa demarcação de um momento literário
chama a atenção. Pois implica que houve coexistência da Belle Époque com o modernismo que, em 1922, faria ecoarem das salas
do Teatro Municipal berros do Ipiranga nada pomposos, numa plataforma estética
contrária senão adversária ao beletrismo da mesma Belle Époque.
Nesse
ensaio, a contextualização da obra de Da Costa e Silva mostra-se coerente com a
conceituação merquioriana de “estilos históricos”, denominação preferida à de
“estilos de época”, uma vez que, se estes “podem suceder-se”, também “podem coexistir”, conforme defende em “Os
estilos históricos na literatura ocidental”, (1975, p.42) capítulo de Teoria literária, volume organizado por
Eduardo Portella e publicado ainda na década de 1970. Na verdade, esclarece
José Guilherme Merquior, no ensaio sobre Da Costa e Silva, a “nossa Belle Époque [...], a exemplo da Belle Époque europeia, engendrou ou
comportou a emergência de vanguardas”, (2000, p.38) podendo conter, assim, os
movimentos modernistas liderados por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e
outros, na década de 1920.
A
costura entre a dimensão histórica e o aspecto formal, na análise, vaia se
apoiar nos conceitos de logopeia, melopeia e fanopeia, propostos por Ezra Pound para discriminar as linhas de
força básicas da poesia. Merquior explica-os, nesta síntese:
Logopeia,
para simplificar, seria a dança dos conceitos, o mundo do pensamento em poesia,
seria o conceito na sua expressão poetizada. Melopeia não precisa de definição.
Refere-se evidentemente ao aspecto musical, à dimensão musical do fenômeno
poético. E, finalmente, fanopeia significa o poder de presentificação (e não
apenas de apresentação), isto é, o fenômeno pelo qual a poesia se vertebra em
imagens, não só nítidas, mas, sobretudo, potentes, sobretudo poderosas na sua
irradiação conotativa. (2000, p.38)
O
domínio e a maestria em um ou outro aspecto poundiano servem ao ensaísta de
critério para definir três posturas poéticas, com base nas quais se estabelece um
minicânone da Belle Époque nacional.
Sendo assim, Merquior aponta em Augusto dos Anjos “o mestre da nossa logopeia”
e em José Albano “o grande artífice da nossa melopeia”. (2000, p.38) E, por
fim, “o maior mestre da nossa fanopeia, nesse período, foi, muito
provavelmente, Da Costa e Silva”. (2000, p.38-39)
A
dúvida do crítico decorre de duas razões: tanto porque haveria “outros nomes
que certamente tiveram grande categoria no seu artesanato poético [no âmbito da
fanopeia]” quanto porque o poeta piauiense “é um grande músico do verso e não
apenas um grande autor de imagens poéticas”, condição que, ademais, resultaria
em “um equilíbrio poético realmente excepcional”. (2000, p.39)
Para
caracterizar mais claramente o verso de Da Costa e Silva, Merquior evoca a poesia
do paraibano Augusto dos Anjos, pré-expressionista, ao lado do qual o piauiense
“faz uma figura de quase clássico”, que é também comparado com o mineiro
Alphonsus de Guimaraens, equiparáveis em termos de musicalidade e irmanados na
competente representação do simbolismo brasileiro, conquanto cada um dos dois
em gerações distintas. (2000, p.39)
Um
dos destaques que José Guilherme Merquior faz à versificação de Da Costa e
Silva é a habilidade no emprego do enjambement,
com expressivo efeito de suspensão do verso. O poeta também dominaria como
poucos as técnicas do decassílabo (o verso de dez sílabas) e as do soneto.
Todavia, essa afinidade classicizante não impediria o autor de Sangue de ser “um pioneiro da
experimentação, um pioneiro do verso longo e do verso livre, e um pioneiro na
reexperimentação com várias formas passadas, como a balada e o vilancete”. (2000,
p.40)
No
que se refere à temática, José Guilherme Merquior distingue a poesia da
natureza, a de lamento da esposa falecida, como ocasiões especiais de nos
depararmos com toda a competência imagística do poeta piaueinse. A arte de suas
paisagens, dentre as quais se encontram as do soneto “Saudade”, leva Merquior a
recordar a ut pictura poesis romântica
de Castro Alves. Seu pranto de viúvo repercutiria o célebre soneto de Machado
de Assis, “À Carolina”. E nas reflexões morais da-costianas se enquadraria
“Vanitas vanitatum”, “um dos maiores sonetos da língua portuguesa, e não apenas
da literatura brasileira”, (2000, p.43) que aqui convém, tão alta a conta em
que o tem o crítico, transcrever:
Não fujas ao destino, nem te afastes
Da rota que te foi traçada um dia,
Que a vida de surpresas e contrastes
Tem de ser fatalmente o que seria.
O tempo, inutilmente, não no gastes
Em rumo oposto à estrela que te guia;
Mas segue em tudo o verbo do Eclesiastes,
Profundo e amargo de sabedoria.
Não te afoites de encontro à própria
sorte,
Porque, sendo imutáveis, são eternas
As leis da vida como as leis da morte;
E, se as tuas vaidades tanto externas,
Não penses que, sendo homem, não és
forte
E que, sendo mortal, não te governas.
Merquior
discorre sobre a linguagem de Da Costa e Silva para ressaltar que sua “sintaxe
levemente alambicada” não se converteria, como no parnasiano Alberto de
Oliveira, em “princípio estilístico”. (2000, p.40) O comentário enseja a
aproximação do piauiense com poeta não brasileiro, Rubén Darío, em cuja obra,
como na de outros da mesma época, “o virtuosismo, a capacidade de mudar de
formato poético com igual proficiência era muito acentuada, sem que caíssem
numa poesia particularmente árdua, particularmente difícil e, muito menos,
hermética”. (cf. 2000, p.41) Já os últimos parágrafos do ensaio se voltam para
a disseminada comunhão, realizada não apenas pela poesia de Da Costa e Silva,
mas também pela de outros brasileiros do passado, da linguagem culta com a
oralidade. Merquior esclarece:
O
que eu quero assinalar é essa combinação de uma poesia que não é popular na sua
forma, porque é, evidentemente, culta na sua inspiração e na sua execução, como
um sentimento de oralidade, que é exatamente o elemento que vai permitir aquela
comunicatividade intensa e imediata que esses poetas – um Bilac, um Da Costa e
Silva – conseguiram ter e manter, de tal forma a se fazerem sabidos, a serem declamados,
a serem guardados na memória de quantos conhecessem e amassem poesia no Brasil.
(2000, p.44)
Sempre
fazendo jus à autoidentificação orgulhosa de “historiador literário”, (2000,
p.45) o ensaísta retoma a observação do antropólogo francês Roger Bastide, para
quem a linguagem difícil e/ou culta de boa parte dos autores brasileiros
tardo-oitocentistas, como Euclides da Cunha, Olavo Bilac, Machado de Assis,
Cruz e Sousa, teria pronunciada motivação nas condições desses escritores na
sociedade: “Tudo se passava como se essas proezas de ordem literária e verbal
fossem títulos de nobreza da parte de quem não os possuía na sua origem
social”. (2000, p.44) Cumpre aqui salientar a importância para Merquior dessa
compreensão literário-sociológica de Bastide, que será aplicada em, pelo menos
(de que eu me lembre), duas outras passagens da obra merquioriana: no texto já
aqui referido “Os estilos históricos na literatura ocidental” (cf. 1975, p.80)
e no “Em busca do pós-moderno”, coligido em O
fantasma romântico e outros ensaios (cf. 1980, p.18).
José
Guilherme Merquior confessa intrigá-lo esse enlace de uma linguagem culta e seu
razoável grau de dificuldade de compreensão para o público e o leitor médios,
com uma elevada eficiência comunicativa, ou mesmo com uma “comunicatividade
popular”. (2000, p.45) Tal caráter, ainda comum na literatura dos tempos de Da
Costa e Silva, parecia a Merquior estar desaparecendo desde a hegemonia
modernista – donde a proposição de uma série de perguntas:
[...]
o que fez com que, num determinado horizonte histórico da cultura brasileira,
formas de alta cultura fossem dotadas desse alto poder de inserção social?
Poder este que nem sempre formas de altas culturas posteriores – e eu digo isto
sem nenhum prejuízo da alta qualidade dessas formas – conseguiram reaver ou
manter. Por que hoje a maioria das altas formas de cultura do país são mais
divorciadas da memória e da sensibilidade popular? Por que esses fenômenos de
classe média culta não se repuseram ou não se refizeram na nossa experiência
histórica mais recente? (2000, p.45)
Não
pretendo solucionar o “quase enigma” que a poesia de Da Costa e Silva instigou
em nosso crítico e pensador, “quase enigma” com o qual termina seu ensaio. Mas
creio que Merquior pensava nas consequências da cultura pop, seus novos meios, as
novas artes e um poder de se distribuir, chegando ao público (cada vez mais, a
partir de então, “-consumidor”) inexistentes na época de Olavo Bilac e na época
de Da Costa e Silva. Seja como for, a perda da comunicatividade popular da poesia constituía preocupação antiga,
nas reflexões merquiorianas. Na sua postura judicativa, e não somente
interpretativa de crítico literário, em “Crítica, razão e lírica”, ensaio que
integra Razão do poema (1965), José
Guilherme Merquior cobra da criação poética uma hegemonia da razão, dado que o
“predomínio do sentimental parece não ofender muito a finalidade comunicativa
da poesia”, mas “nada tem a comunicar, não transmite no interesse coletivo”; já
a “presença exagerada da fantasia, ao contrário,
prejudica a comunicação poética até o ponto em que o poeta se torna objeto
ininteligível”. (2013, p.183) Mais adiante, o ensaísta enaltece e incentiva a
confluência da linguagem culta e da popular, pois a poesia “Precisa da amplidão
que só a forma culta permite, mas, simultaneamente, repudia qualquer condição
‘preciosa’”. (2013, p.208) Ainda em Razão
do poema, o ensaio “Evtuchenko” toca o mesmo problema, conquanto sem a
mesma abordagem, e conclui:
[...]
a simples ocorrência de uma poesia como a de Voznesenski (mais requintada e
mais fina que a do nosso poeta [Evtuchenko], e não obstante igualmente
declamada para públicos numerosos e delirantes) prova que o recurso à prática
oral da poesia, no século XX, numa sociedade alfabetizada (no Brasil,
alfabetizanda [ainda hoje, acrescento]) não significa obrigatoriamente
decréscimo de qualidade poética – tal como nunca significou no passado – embora
exija, como é natural, vários ajustes de estilo. (2013, p.153)
Talvez
também Merquior tivesse em mente, como uma razão – razão do não poema – para a perda da comunicatividade popular da poesia toda nossa incompetência
permanente e cruel em questões educacionais. É o que a epígrafe deste post quer sugerir.
Referências bibliográficas
DA COSTA E
SILVA. Poesias completas. 4ª ed.
(rev. e ampl.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
MERQUIOR, José
Guilherme. “Indicações para o estudo da obra de Da Costa e Silva” in DA COSTA E
SILVA. Poesias completas. 4ª ed. (rev.
e ampl.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. pp.37-45.
______. “Os
estilos históricos na literatura ocidental” in PORTELLA, Eduardo et alii. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.40-92.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e
estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
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