Publicado
em 1975, pela editora Tempo Brasileiro, a mesma que tinha lançado o segundo
livro de José Guilherme Merquior, Arte e
sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), O estruturalismo dos pobres e outras questões é o menor entre os
volumes produzidos pelo autor. Reúnem-se aí seis textos, um inédito e os demais
extraídos, em edições de 1974, do Jornal
do Brasil e da revista literária portuguesa Colóquio / Letras. O ensaio de abertura inspira o título (o mais
provocativo de todos os títulos merquiorianos) do livrinho: “O estruturalismo
dos pobres”. Seguem-se-lhe “Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda: reabrindo o
debate”, “Ut ecclesia parnassus:
sobre a função social do escritor na civilização industrial”, “Malraux contra
Gide”, “O idealismo do significante (a Grammatologie
de Jacques Derrida)” (ensaio não publicado antes) e, finalmente, “Gilberto
Freyre além da modernidade”. Como se vê, no folhear dessas oitenta páginas, de
formato reduzido, José Guilherme Merquior percorre um campo temático
consideravelmente amplo, nelas discutindo questões que acaloravam a vida
cultural e intelectual daquela segunda metade do século XX.
O
nome de Merquior associou-se, no imaginário da inteligência brasileira, a
polêmica. Naturalmente, o leitor se deparará com texto do autor um mais, outro
menos agressivo, sarcástico, bem-humorado. Equiparável ao “Falência da poesia”,
sobre a geração de 45, coligido em Razão
do poema (1965), “O estruturalismo dos pobres” é um daqueles ensaios em que
o “agitador das ideias” protagoniza ao lado do (passe a expressão) “pensador
das ideias”. A questão atacada nessas primeiras páginas do pequeno volume são
as consequências da consolidação, no espaço acadêmico-universitário brasileiro,
do estruturalismo. O primeiro parágrafo desse ensaio-panfleto é uma obra-prima
da virulência e do humorismo polemista:
Se
você quer estudar letras, prepare-se: que ideia faz você, já não digo da
metalinguagem, mas, pelo menos, da gramática generativa do código poético? Qual
a sua opinião sobre o rendimento, na tarefa de equacionar a literariedade do
poemático, de microscopias montadas na fórmula poesia da gramática/gramática da
poesia? Quantos actantes você é capaz de discernir na textualidade dos romances
que provavelmente (tres-)leu? E que me diz do “plural do texto” de Barthes? – é
possível assimilá-lo ao genotexto da famigerada Kristeva? Sente-se você em
condições de detectar o trabalho do significante no nouveau roman, por
exemplo, por meio de uma “decodificação” “semannalítica” de bases
glossemáticas? Ou prefere perseguir a “significância”, mercê de alguns cortes
epistemológicos, no terreno da forclusão, tão limpidamente exposta no
arquipedante seminário de Lacan? (1975, p.7)
Decerto
o leitor, assim como eu mesmo, profissional da área, não compreendeu patavinas
de todo esse jargão da linguística e da teoria literária em moda nos cursos de
Letras das universidades brasileiras, na década de 1970. José Guilherme
Merquior denomina o recurso ao patoá, exclusivo para iniciados, de “terrorismo
terminológico”, procedimento comparsa, segundo o ensaísta, de um “terrorismo
metodológico”, já que
[...]
o estruturalismo é o paraíso do Método; a nova crítica, por exemplo, se
alimenta do mito do Modelo mecanicamente aplicável. Pós-graduandos
incrivelmente ignaros, outrora incapazes, por simples analfabetismo, de
empreender a interpretação de obras pejadas
de referências culturais, agora se entregam sem nenhuma inibição à volúpia
de aplicar a torto e a direito modelos “científicos” de análise. (1975, p.8)
“O
estruturalismo dos pobres” ataca conjuntamente em duas esferas: a do
conhecimento e a do sistema educacional. Em artigo de 2012 (disponível em
<< http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie07/RevLitAut_art09.pdf>>),
Eduardo José Tollendal chega a entrever alguma insinuação de Merquior numa
terceira esfera, a da política, dentro do contexto da ditadura brasileira nos
anos 70, período em que o controle do Estado civil-militar teria condicionado,
no caso dos estudos literários, uma “despolitização da crítica sociológica”,
possibilitada pela aplicação da metodologia estruturalista. Seja como for, me
aterei aqui ao que se refere àquelas duas primeiras esferas, mais facilmente
identificáveis no ensaio de José Guilherme Merquior.
O
professor Tollendal entende que, em “O estruturalismo dos pobres”, o alvo do
ataque “não é a teoria estruturalista, mas o uso que dela fizemos nos cursos de
Letras”. (2012, p.208) Em minha opinião, a frase mereceria reformulação, para
ficar assim: talvez o alvo do ataque merquioriano seja menos a teoria estruturalista do que o uso que dela fizemos nos cursos de Letras.
O
ponto que me parece ocasionar tal divergência está na compreensão de que, para
Merquior, “Não existe um estruturalismo:
existem no mínimo vários, tão diferentes na inspiração quanto no grau de
consistência de seus resultados”. (1975, p.9) Ao afirmá-lo, o autor carioca não
estava solando com o virtuosismo de sua inteligência. No prefácio de uma
antologia clássica, o português Eduardo do Prado Coelho escreve algo muito
semelhante: “Não existe um ‘estruturalismo’ ideal, porque o ‘estruturalismo’,
se na verdade existe, apenas está nas suas manifestações.” (s.d, p.vi) Para o
ensaísta brasileiro, as manifestações
estruturalistas de autores como Lévi-Strauss, Georges Dumézil, Michel
Foucault, teriam, de fato, contribuído com resultados
consistentes, à diferença das “gratuitas elucubraçõezinhas de Genette ou
Todorov”, dos “graciosos arabescos especulativos, totalmente despojados de gume
sociológico, de Althusser e sua súcia”, da idolofagia
de Jacques Lacan e de Jacques Derrida. (1975, p.9)
Assim
sendo, há, sim, uma crítica veemente de Merquior, nesse ensaio originalmente
publicado no Jornal do Brasil, a 27
de janeiro de 1974, a certa teoria estruturalista. Vale recordar que parcela
significativa da obra de nosso autor é dedicada à corrente de origem francesa
que, inspirada pela linguística de Ferdinand de Saussure e pela antropologia de
Lévi-Strauss, passou a abarcar várias outras áreas das ciências humanas, como a
filosofia, a psicanálise e a crítica literária. Após divulgar suas primeiras
reflexões sobre o tema (das primeiras realizadas no Brasil) em “Estética e
antropologia”, último ensaio de Razão do
poema, José Guilherme Merquior profere, em janeiro de 1969, no Collège de
France, estudo que, traduzido, vai se publicar em 1975, com o título de A estética de Lévi-Strauss. Na “Nota
prévia” ao volume, o eterno estudante manifesta o orgulho de ter aprendido com
“Mestre Lévi-Strauss” “o estruturalismo autêntico”.
(2013, p.19; o destaque é do próprio autor)
A
noção de que haveria um estruturalismo “autêntico” e deturpações do
estruturalismo, ela reaparece no segundo ensaio do pequeno livro. Ao resenhar As aporias da vanguarda, de Hans Magnum
Enzensberger, noticiando e, em boa medida, endossando as reprimendas desse
autor dirigidas ao experimentalismo cientificista das neovanguardas, Merquior verifica
nessa conduta estética, com base especialmente no exemplo de nosso concretismo,
uma sintonia-parentesco com “o estruturalismo escolástico, formalização
alienante das ciências humanas, bem desobediente à advertência que fez
Lévi-Strauss em sua crítica a Propp: ‘o estruturalismo não é formalismo.’”
(1975, p.19)
A
distinção entre estruturalismo e formalismo é retomada e desenvolvida em capítulo
de Formalismo e tradição moderna
(1974), outro livro de Merquior, como se vê, do mesmo ano daqueles seus dois
ensaios. Nesse livro, lemos:
É
imperioso sublinhar que o que consideramos insuficiente ou errôneo [...] não é de modo algum a análise formal em si –
mas apenas a sua rarefação, o seu “emagrecimento” numa atenção à forma “pura”,
esquecida da riqueza de significações que ela contém. Essa rarefação converte a análise formal em visão formalista [...]. (1974, p.188)
Páginas
adiante, a mesma recriminação, que engloba tanto a crítica literária quanto
grande parte da produção artística desde o romantismo: “O formalismo é,
portanto, o nome geral da consciência estética acometida por indiferença ou
insensibilidade em relação à problemática da civilização.” (1974, p.217)
Eduardo
José Tollendal aventa, em seu artigo, a possibilidade ou probabilidade de
existirem razões não claras para Merquior, quem “não só dominava a teoria como
a atualizava em seus estudos críticos”, (2012, p.209) “assim desancar
eficientes avanços da crítica literária, como a intertextualidade, a
metalinguagem, as vozes polifônicas e a técnica do close reading, que ajudaram a desencorajar os excessos e as
imprecisões da crítica meramente impressionista ou reveladora de supostas
influências”. (2012, p.209)
Na
verdade, José Guilherme Merquior não contesta os eficientes avanços da crítica literária arrolados pelo professor.
Quanto à intertextualidade e à metalinguagem: as linhas de “O estruturalismo
dos pobres” a respeito de Roman Jackobson procuram convencer que o problema
reside na concepção segundo a qual “poesia é pura combinatória verbal, e o
único aspecto referencial extralinguístico digno de atenção na literatura
se limita a sua relação com as demais artes”. (1975, p.9) Pois, de fato,
Merquior, de novo em Formalismo e
tradição moderna, deixa clara a sua “exigência do reconhecimento da
referencialidade do literário em si”.
(1974, p.226) Afinal de contas, a questão da mímese sempre ocupou lugar central
nas preocupações críticas de nosso autor.
Quanto
à polifonia, acho pertinente mencionar o reconhecimento de Paulo Bezerra,
registrado em prefácio (diga-se de passagem, de temperatura por excelência
merquioriana) à quarta edição de Problemas
da poética de Dostoievsky, de Bakhtin: “As primeiras contribuições para a
divulgação de Bakhtin entre nós no campo específico da reflexão sobre
literatura e cultura vieram de José
Guilherme Merquior e do mestre Bóris Schnaiderman.” (2008, p.xii)
Quanto
ao close-reading, menos uma
metodologia do que uma atenção cuidadosa e detalhista de análise, recomendada
pelos new critics norte-americanos, basta
ler o célebre “Poema do lá”, ensaio em que o autor de Razão do poema, estilólogo da família de Leo Spitzer e Augusto
Meyer, vasculha verso a verso a “Canção do exílio” de Gonçalves Dias...
O
fato é que Merquior associa, naqueles meados da década de 1970, formalismo a
alienação, numa compreensão crítica que deve bastante ao marxismo ocidental,
especialmente a Theodor Adorno. Tanto produzir uma arte avessa a enfrentar a
realidade, traduzindo-a de forma ficcional e crítica, quanto compreender a arte
nessa mesma perspectiva seriam posturas de uma formalização alienante, verdadeiro pecado para Merquior. No âmbito
brasileiro da época, as ressalvas de nosso autor a certo estruturalismo ganham
interessante significado sob a luz da contextualização de Luiz Costa Lima, que
noticia, em “Estruturalismo e crítica literária”:
Para
muitos, sem dúvida, o estruturalismo funcionou como uma forma de escapismo.
Ante a paranoia que se apossou do país, onde a tortura, a delação e a
insegurança se tornavam as constantes de nosso quotidiano, o estruturalismo,
enfatizando a necessidade de conhecer a máquina do texto, suas combinações e
transformações, serviu de pretexto para o apoliticismo de muitos de seus
praticantes. (2002, p.785)
Desse
modo, o teor político da crítica merquioriana ao estruturalismo formalista fica
evidente, uma vez que o autor de Saudades
do carnaval concebe que o formalismo como poética criativa ou poética
interpretativa incorre em alienação. Uma segunda justificativa para a
insatisfação de Merquior no tocante ao assunto situa-se no âmbito do
conhecimento: a abordagem formalista do estruturalismo mutilaria o aspecto
simbológico do texto literário, isto é, a competência mimética da literatura,
posta no centro da discussão do terceiro livro do ensaísta, A astúcia da mímese (1972). A terceira
justificativa, esta no âmbito educacional, é a visão de que a adoção-ensino do
estruturalismo em nossas universidades decorria de um problema maior do sistema
brasileiro, não apenas no nível superior. Passagens como “Pós-graduandos
incrivelmente ignaros, outrora incapazes, por simples analfabetismo” (1975,
p.8) soam propositalmente doídas, como um puxão de orelha. Mas a questão aí
está longe de envolver simpatia ou antipatia, da parte do autor, pelos alunos
universitários do País. Trata-se de uma constatação – fácil e realmente atual,
como ressalta Tollendal – dos resultados não quantitativos, mas qualitativos da
educação brasileira, daqueles anos até hoje. Em outras palavras, José Guilherme
Merquior não está xingando os alunos, nem querendo ser simpático com eles.
Analfabetismo e ignorância: são estes e não outros os termos que qualificam a
grande maioria de nossos estudantes. Está xingando,
sim, as deficiências seculares da educação do Brasil e sendo bem antipático com
os professores que, em nome da moda acadêmica, faziam um desserviço nas
universidades.
Por
fim, acredito que o título desse ensaio significa como uma via de mão dupla.
Tollendal esclarece que os “pobres seríamos nós do terceiro-mundo” (2012, p.204),
mas a pobreza também é de algumas das influentes manifestações do
estruturalismo exportadas pelo primeiro-mundo. Ou seja, o “estruturalismo dos
pobres” poderia sofrer alteração de ordem dos termos sem implicar alteração no
produto: significando também a pobreza
do estruturalismo.
Passo
a comentar o segundo ensaio do livro, “Vanguarda, neovanguarda e antivanguarda:
reabrindo o debate”, originalmente publicado em agosto de 1974, no Jornal do Brasil. “Vanguarda”, assim
como “estruturalismo”, “marxismo” e “liberalismo”, está entre as palavras-chave
do universo merquioriano. A propósito, frase que, neste blog, já citamos – e se
tem citado – quase à exaustão é a pergunta retórica que abre As ideias e as formas (1981): “É
possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser
reacionário em política, ciências humanas e estética?” (1981, p.11) Seis anos
antes, porém, José Guilherme Merquior não estava engajado nessa militância multidisciplinar.
Em meados da década de 1970, pensa que, conquanto filhos de um “mesmo meio
histórico, formalismo e modernidade estética são irmãos inimigos”, (1974, p.1)
conforme sua advertência a Formalismo e
tradição moderna. Isso não quer dizer que o crítico passasse a mão na
cabeça de um que houvesse se comportado, algumas vezes, como o outro.
No
texto de O estruturalismo dos pobres e
outras questões, Merquior afirma a importância em se identificar a natureza
e a personalidade “histórico-estilística” da arte dos anos 40 até àquele
decênio. Contestando de cara a preguiçosa avaliação de tal produção artística
como “culturalmente estéril e decadente”, (1975, p.15) o ensaísta prefere
operar com as noções de continuidade e de ruptura em relação ao modernismo das
primeiras décadas do século XX.
Para
satisfazer a essa “necessidade incômoda, porém vital, de definirmos a
verdadeira mentalidade do nosso tempo”, (1975, p.15) José Guilherme Merquior traz
à baila três traduções então recentes de obras sobre o tema: a Teoria estética (1970), de Theodor
Adorno, “As aporias da vanguarda” (1971), de Hans Magnum Enzensberger, e “Por
una vanguardia revolucionaria” (1972) (do italiano para o espanhol), de Edoardo
Sanguineti.
O
foco do ensaio merquioriano são as neovanguardas, exemplificadas, de modo
esclarecedor na seguinte lista:
[...]
a música concreta e estocástica; a pintura informal, a arte pop e
hiper-realista, a arte gestual, neodadá e conceitual; o cinema
pós-neo-realista; os estilos de mise-en-scène
neobrechtianos e artaudianos; a poesia “beat” e o nouveau roman; a poesia concreta e práxis; o movimento
tropicalista, etc. (1975, p.16)
Nem
todos os exemplos aí elencados serão considerados detidamente no ensaio. À
poesia concreta e práxis e ao hiper-realismo, todavia, Merquior reserva
palavras que evidenciam a sua separação do que é joio do que é trigo. Entre as
velhas vanguardas e as novas vanguardas, o crítico segue as diferenciações
propostas por Sanguineti: as segundas não ostentariam o radicalismo anárquico e
revolucionário, de tradição romântica, das primeiras, e atuariam às voltas com
processo típico da sociedade de consumo, o do acelerado envelhecimento do novo;
também a proliferação dos manifestos vanguardistas do início do século dariam
lugar à autoafirmação dos grupos neovanguardistas, que substituiriam o
experimentalismo “diletante e selvagem” dos ancestrais pelo experimentalismo “científico
e laboratorial”. (cf. 1975, p.17)
Frente
a tal caracterização, Edoardo Sanguineti repara, segundo o ensaísta brasileiro,
nos “traços de acomodação conformista à sociedade de consumo, à ‘sociedade
tecnológica’, [que] seriam, a rigor, a atualização de aspectos potenciais da própria vanguarda velha”.
(1975, p.17) Adorniano em plena forma nesse ensaio, José Guilherme Merquior vê
como oportuno frisar a “natureza sumamente ambígua, embora nunca
unilateralmente alienada” das manifestações vanguardistas, (1975, p.17) e
assina embaixo da advertência de Sanguineti “contra a ilusão que consiste em
separar totalmente a face ‘heroica’ e a cara ‘cínica’ das vanguardas – o seu
momento de repulsa à desumanização imposta pela sociedade reificada, e o momento
de cumplicidade com essa mesma desumanização.” (1975, p.18)
Aliás,
humano e desumanização, cabe destacar, constituem ideias que fundamentam o
critério da avaliação cultural merquioriana, que também trata, no segundo
ensaio de O estruturalismo dos pobres e
outras questões, da mídia de massa. Mas antes de avançarmos nessa parte da
discussão, gostaria de registrar ainda a aprovação de Merquior à atitude
crítica de Enzensberger, que “esquematiza com sarcasmo e penetração as
tentações soteriológicas da vanguarda nova – o seu vezo ridículo de
apresentar-se como tabernáculo da redenção cultural”, não sendo o autor alemão menos
severo para com [seu] furor experimentalista”. (1975, p.19) Ainda José
Guilherme Merquior aplaude, no que se refere ao experimentalismo das novas
vanguardas:
[...]
Enzensberger enxerga apenas, certeiramente, a volúpia da irresponsabilidade, o
desejo de entregar-se a manipulações de “linguagens” em plena imunidade moral –
já que passam a ser os destinatários quem se responsabiliza pelas obras, numa
caricatura da teoria da “obra aberta” de Umberto Eco. (1975, p.19)
Linhas
adiante no ensaio, nosso autor interfere mais diretamente na discussão, defendendo
haver uma patente coerência entre o “culto a Pound” dos concretistas
brasileiros e destes a “adesão festiva ao cientificismo do dia” (que nada mais
seria do que o estruturalismo conspurcado), em nome de uma poética “culturalmente
míope [...] e sociologicamente obtusa”, (1975, p.19) em concordância com
críticas de Mário Chamie, líder da chamada poesia práxis.
A
essa ligação entre “as fanfarronadas cientificistas dos experimentalismos
amamentadas em extrapolações indébitas da teoria da informação ou da
semiologia” (1975, p.20) e estruturalismo distante das lições antropológicas de
Lévi-Strauss, José Guilherme Merquior acrescenta outra: “Em seu namoro com os mass media, muitas neovanguardas
desenvolvem uma espúria complacência para com o kitsch (enquanto isso, o kitsch,
via midcult, se apropria de vários
processos vanguardistas).” (1975, p.20) Não resisto a citar aqui mais um
excerto de Formalismo e tradição moderna,
no qual o autor diz enxergar dentro dos “poços de efeitismo kitsch” “99% da
crítica literária dita estruturalista”. (1974, p.39)
De
volta a O estruturalismo dos pobres, nessa pauta do debate, José Guilherme
Merquior fere questão controversa a respeito de legitimidade e nocividade
cultural, no contexto do namoro
neovanguardistas com a mídia de massa:
Um
certo “aristocratismo” é simplesmente, em nosso tempo de “democratismo”
aviltado, condição sine qua non de
autenticidade cultural. Pode parecer o contrário: mas a verdade é que o
liberalismo genuíno, em arte, se situa do lado da crítica da cultura “aristocrática”,
e não dos “democráticos” justificadores dos media
como eles são (e dos gêneros imbecilizantes que eles impuseram) – pois desde
quando o condicionamento das consciências é sinal de liberdade ou democracia?
Os defensores da cultura de massa são de fato muito tolerantes; mas é ao jeito
daquele epigrama de Adorno: “O burguês é tolerante: seu amor aos homens como
são reflete o seu ódio ao homem como ele deve ser”. Tenhamos a decência de não
falar em “democratização da cultura” quando o que estiver sendo “democratizado”
não for, absolutamente digno do nome de cultura, no sentido crítico-educativo
da palavra. (1975, p.20-21)
Em
mira está a ameaça à arte e ao povo como “possibilidade de negação do humano”,
(1975, p.21) um evidente manifesto adorniano com seu quê de pessimismo cultural
(Kulturpessimismus) que mais tarde,
nos anos 80, Merquior rejeitará com veemência. Seja como for, ele se manterá sempre
convicto de que “a tarefa número um da arte na sociedade industrial” é “a
interpretação crítica do presente”, algo cumprido pelos hiper-realistas, dispostos
a “exorcizar o demônio da alienação formalista”. (1975, p.22)
Em
texto que já citei acima, Luiz Costa Lima identifica três grupos, no Brasil,
que teriam refutado o estruturalismo por razões distintas:
Sendo
uma forma de defesa [contra o policiamento intelectual do regime
civil-militar], o estruturalismo era também, ao menos para os mais
consequentes, um jogo perigoso. Se a esquerda lhe tinha ódio, os conservadores
e a direita tampouco o tinham em boa conta. E todos tinham razão. A esquerda
porque a crítica estruturalista, centrada na obra, minimizava o papel social e
rara vez alcançava a articulação da base social com a produção textual [...].
Os conservadores, de sua parte, acusavam os praticantes do estruturalismo de
esmagar o prazer da leitura por demonstrações complicadas e por substituir a
intuição pessoalizada por um jargão para iniciados. A direita, enfim, porque o
estruturalismo sufocaria o homem, sua espiritualidade, enfatizando as formas
sistêmicas em que o indivíduo perde o rosto. (2002, p.785-786)
A
confiarmos nesses três agrupamentos delineados sumariamente pelo eminente teórico
da literatura, poderíamos enquadrar José Guilherme Merquior não apenas entre os
conservadores e os de direita, mas também no grupo da esquerda, o que tanto
explicita a complexidade da sua rejeição ao estruturalismo (a certo
estruturalismo, nunca é demais repetir) quanto contesta a facilidade dos
rótulos frequentemente a ele atribuídos (“intelectual de direita”,
“conservador” e outros epítetos do gênero). Pois o autor de O estruturalismo dos pobres e outras
questões não insiste em acentuar “o papel social” da literatura e em
reivindicar “a articulação da base social com a produção textual” como
imprescindível à análise literária? Não era Merquior o crítico literário que,
em O elixir do apocalipse (1983),
recordava a advertência de T. S. Eliot – “só existe um método – ser muito
inteligente” – (cf. 1983, p.x) e acusava o estruturalismo de “terrorismo
terminológico”, no primeiro ensaio do volume que aqui comento? Não se
preocupava nosso autor com “a possibilidade de negação do humano” no kitsch das neovanguardas, na mídia de
massa e na abordagem formalista do estruturalismo?
“Ut ecclesia parnassus” é o terceiro
ensaio do pequeno volume de 1975, e tem por subtítulo “sobre a função do
escritor na civilização industrial”. Havia sido publicado primeiramente em
novembro de 74, no número 22 da prestigiada revista literária portuguesa Colóquio / Letras. Suas reflexões iniciais
coincidem com as de “Fragmentos de história da lírica moderna”, texto de Formalismo e tradição moderna, no qual o
ensaísta também considera a conquista da autonomia filosófica pela poesia como
uma das marcas inaugurais da modernidade literária ocidental. Essa reviravolta,
surgida em contexto sócio-político eminentemente burguês, foi, conforme ensina
Merquior, “resposta da literatura à crise espiritual
da cultura burguesa”, (1975, p.25) cultura esta “sem solo axiológico
comunitário partilhado”. (1975, p.25)
A
nova atmosfera social, de fins do século XVIII, coincide com a ruptura, na
literatura, do modelo Greco-romano e cristão, fato que rebaixou o valor da
disposição de edificar e de entreter, para elevar a cotação das letras que atuassem
“como crítica da cultura”, com o objetivo de “problematização da vida”, e confinar aquelas duas funções tão
importantes para a arte clássica, no espaço menos exigente da literatura
popular. (1975, p.26)
A
grande referência bibliográfica na qual se apoia a discussão merquioriana nesse
ensaio é o livro de Paul Bénichou, Le
sacre de l’ecrivain (1750-1830), de publicação então recente (1973). Em decorrência dessa escolha, o
contexto francês se destaca na discussão do ensaio, mas não deixa de ser
comparado com o alemão, outro contexto nacional que fornece ilustração emblemática
das mudanças pelas quais teria passado a função social do escritor segundo
Merquior. O arco histórico enfocado parte de Johann Wolfgang von Goethe, cuja
obra proclama, a partir do derradeiro quartel do século XVIII, a definitiva
possibilidade de independência filosófica da poesia e da literatura, até chegar
a Franz Kafka, Hermann Broch e Samuel Beckett, três autores representativos do
novecentos.
É
na França de Voltaire que se daria a primeira fase da consolidação do
pensamento autônomo na literatura do Ocidente. Os questionamentos severos à
autoridade eclesiástica condicionariam “a investidura iluminista do homem de letras
como guia e bússola da sociedade”. (1975, p.28) Contudo, aí não se trata
propriamente do poeta, visto que a mentalidade setecentista mantém reservas
frente ao ficcional, ao fabuloso. Desse modo, se verificaríamos relevância, na
época, de uma “literatura-filosófica”, esta não é ainda uma
“literatura-filosofia”. (1975, p.30)
Até
porque, segundo Merquior amparado por Bénichou, o poeta só será alçado à
condição de profeta ou de vate com a negação romântica do Iluminismo, efeito do
divórcio entre razão e sentimento que correntes influentes do romantismo
advogarão. Conquanto exemplos franceses (Chateaubriand, Victor Hugo) possam
induzir a associarmos entronização do poeta ao irracionalismo
contrarrevolucionário (já que o ethos da
revolução era, por excelência, iluminista), José Guilherme Merquior observa o
caso alemão contemporâneo (Novalis, F. Schlegel, Tieck, Hörderling), não
irracionalista, e mesmo antevisão do niilismo moderno. (cf. 1975,p.31-32)
Fosse
como fosse, a ambiência romântica se responsabilizou em estimular a soberania
do pensamento em literatura, incentivando escritores e poetas a considerarem-se
“guardiães dos valores ameaçados pela sociedade burguesa”, (1975, p.33) a se
assumirem como “clérigos profanos, [que] avocaram a si a custódia dos valores
humanos”. (1975, p.33-34) “Ut ecclesia
parnassus... eis a divisa tácita, e secretamente nostálgica, que presidiu o
conceito da missão do poeta.” (1975,
p.34) A expressão latina, que intitula o ensaio, importa esclarecer, parafraseia
célebre máxima horaciana, ut pictura
poesis, de hábito traduzida por “a poesia como a pintura”; ou seja, no caso
do título do texto merquioriano: “o parnaso como igreja”.
Nesse
processo de credenciamento clerical
do poeta, não limitado dali adiante ao romantismo, resultado de forte abalo das
estruturas sociais das tradições, a religião perde o prestígio e a autoridade
que passam a possuir a filosofia e a literatura. Estas duas, todavia, frisa
Merquior, se distinguem sob a ótica oficial do Estado. A primeira se acomodou
com mais hospitalidade e conforto junto ao status
quo do que a segunda.
A
tal propósito, José Guilherme Merquior redige um dos parágrafos histórica, cultural
e politicamente mais lúcidos e perspicazes do voluminho, destinado a permanecer
praticamente irretocável no seu pensamento:
Contudo, nem
sempre o clero-parnaso conheceu o flagelo da condenação social. O rigor com que
a moral vitoriana tratou os escritores inconformistas foi, afinal, bem mais
esporádico e menos severo do que qualquer perseguição religiosa. O suplício e
banimento do escritor “maldito” é hoje uma lenda neorromântica, anacronismo
byroniano grotescamente inflacionado pelo baixo folclore artístico do nosso
tempo. O autor-vítima é um prato exótico invariavelmente servido com molho
(neo)estalinista; no cada-vez-mais-permissivo Ocidente, os Genet são obrigados
a verdadeiras acrobacias para manter a aparência
de renegados e os Sartres podem ser, a qualquer momento, eleitos para a Academia
– por mais que isso excite o furor do próprio Sartre... O gauchisme faz tudo para acreditar o mito da excomunhão burguesa,
mas o fato é que, desde a queda do Terceiro Reich, nenhum ordálio ocidental se
compara, em termos de intolerância, com a longa provação de Soljenítsin [autor
de O arquipélago Gulag]. As
liberdades “burguesas” asseguram o livre exercício da rejeição radical dos
(pseudo-)valores correntes; e se o gauchisme
das grandes democracias, que despreza essas mesmas liberdades
irresponsavelmente esquecido do quanto há de terrível em perdê-las, finge
ignorar esse fenômeno, o obscurantismo reacionário positivamente não o
esquece... (1975, p.35)
Aí
está, na história da inteligência brasileira, uma das mais belas declarações de
amor à liberdade de expressão e à democracia, apenas – até hoje – verdadeiramente
promovidas pelos regimes de orientação liberal. Essas palavras, publicadas em
contexto de Guerra Fria (convém lembrar-se disso), dirigiam-se ao esquerdismo
alardeado por ampla parcela dos intelectuais a oeste de Greenwich (pedindo
empréstimo da expressão ao prof. Tollendal). Na passagem, José Guilherme
Merquior chama o leitor à realidade, colocando os pingos nos ii: o grito da
rebeldia, artística ou filosófica, contra a intolerância e a perseguição da
sociedade burguesa, seja esta vitoriana, seja novecentista, não passa de um
rosnado quixotesco e nostálgico dos tempos do romantismo. A força argumentativa
desse parágrafo contrasta com a sustentação manca da crítica à desumanização da
arte de vanguarda, postulada no segundo ensaio de O estruturalismo dos pobres e outras questões, concepção de crise
da cultura abandonada pelo Merquior dos anos 80.
À
luz da própria racionalidade concreta, postura intelectual que Miguel Reale
aponta no autor de O argumento liberal,
a distinção em matéria de arte, de um lado, positiva do humano e, de outro,
negativa da desumanização mostra-se, com efeito, de difícil defesa. Afinal,
como atestar que produzir ou consumir o que nos oferece a chamada indústria
cultural desumaniza? Apreciar a música de Beethoven faria de mim mais humano do
que meu vizinho que adora me fazer escutar bem alto Aviões do Forró, Raça Negra
e Psirico? Além disso, se a mídia de massa condiciona tanto o público, por que
tantos programas de TV, tantas novelas auferem níveis de ibope ruins? Por que
nem todo disco, nem toda banda, nem todo filme hollywoodiano são bem sucedidos
em termos de retorno financeiro? Há algo nesses sucessos e fracassos que
sinalizam um mínimo de senso crítico, nem que seja de gosto pessoal, que atesta
o não total condicionamento da indústria cultural.
Em
âmbito contíguo à questão, psicológico e sociológico, o seguinte trecho de Eric
Voegelin a respeito das crueldades realizadas pelo governo nazista de Hitler ajuda
a elucidá-la:
O
homem continua homem em toda a realidade, mesmo quando perde a razão e o
espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a
existência; ele não cessa de ser homem. E não há nenhuma razão, como ainda se
faz tão frequentemente, em acusar Hitler de desumanidade; foi uma humanidade
absoluta em forma humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e
doente, uma humanidade pneumopatológica. (2008, p.145)
No
referente à autonomia filosófica da literatura, conquanto “não signifi[que]
necessariamente nenhuma superioridade das letras modernas [...] em relação às
precedentes”, (1975, p.23) José Guilherme Merquior entende que é essa a mais valorosa
postura da literatura na modernidade, e não a do parnaso como igreja. Isso
porque, dentre outros motivos, os poetas-clérigos não zelariam por nada mais do
que “valores negados ou esvaziados pela prática social, e por isso mesmo pouco
suscetíveis de alimentar uma verdadeira fé
humanística”. (1975, p.35-36) Também a ostensiva “posição de classe” desse tipo
de escritor, substituto cultural do clero em contexto de aversão a teocracias,
acaba por não encontrar terreno favorável “na cultura sublegitimada,
sub-auto-justificada que é a nossa”. (1975, p.36)
As
páginas conclusivas de “Ut ecclesia
parnassus” confrontam a hipótese do próprio autor em torno do pensamento
autônomo da literatura moderna, o rastreamento histórico do poeta-profeta por
Paul Bénichou e uma conhecida tipologia proposta por Roland Barthes, em Ensaios críticos. Para esse que figurou
como uma das estrelas do estruturalismo francês, o escritor poderia ser
identificado como écrivaint,
“funcionário da língua codificada que
é a literatura”, usuário de um “discurso institucionalizado”; (1975, p.36) como
écrivant, “personagem surgido no seio
da grande reorientação ‘participante’ das letras durante a época das Luzes”,
que “politizou a palavra literária”; (1975, p.36) e, por fim, como um misto dos
tipos anteriores, o écrivain-écrivant,
“servidor de dois senhores – a ‘literatura’ e o pensamento crítico”. (1975,
p.37)
Se
no segundo tipo barthesiano Merquior identifica “o homme de lettres iluminista de Bénichou”, o écrivain-écrivant seria o poeta-pensador, que se beneficiaria, em
superioridade aos demais, tanto da autonomia, isto é, da “irredutibilidade do
logos literário às outras racionalidades (de cunho lógico-científico)”, quanto
do pensamento, em seu “sentido crítico
(em vez de cultual), iluminatório (em vez de ritualístico) do mesmo discurso
poético”. (1975, p.37)
No
fito de melhor distinguir a autonomia de pensamento em questão, nosso autor
recorre ainda ao livro clássico de Julien Benda, La trahison des clercs, observando que esse título também
caracterizaria, no âmbito específico da literatura, a atuação do parnaso como
igreja. Cônscio de que “a propensão a ‘trair’ é consubstancial à literatura
autêntica”, José Guilherme Merquior afirma haver traições cultural e socialmente
benéficas e outras recrimináveis. Recriminável seria a “‘traição’ que abastarda
a inteligência”; benéfica, a traição do “que há de desumanamente imaculado nos
santuários do esteticismo, seja este filosófico ou artístico – esteticismo dos
conceitos ou esteticismo das formas”. (1975, p.38) Recriminável seria a traição
do escritor que toma postura participante (ou politicamente engajada), mas que,
em nome de tal postura, “sacrifica os direitos e deveres da produção poética”,
assim como a tradição do “poeta áulico, glorificador de falsos ídolos” e do
“poeta-serafim, oficiante de ritos reificados, o escapista em cujas mãos a arte
se converte em álibi para a alienação”. (1975, p.38) Em outras palavras, mais
uma vez, Merquior repudia o formalismo, mais uma vez, tanto das vanguardas quanto
do estruturalismo. A traição “boa”, então, evita tanto o conformismo ideológico
(o “servilismo”) quanto a alienação das estéticas escapistas das torres de
marfim.
A
questão, para Merquior, está nas condições sócio-culturais modernas e
contemporâneas que desacreditam as autodivinizações e autossacralizações a que
a arte e a literatura possam aspirar: “Nos nossos dias, toda transfiguração
enobrecedora, toda idealização anagógica cheira a kitsch: depois de tantas decepções, o humano aprendeu a proteger-se
de todo pathos altissonante.” (1975,
p.38)
Passo
final do ensaio é a defesa da validade conceitual do pensamento que na literatura
se emancipa. A interlocução, nesse debate, se dá com Maurice Blanchot, quem
Merquior elege “talvez o mais importante crítico moderno depois da morte de
Erich Auerbach”. (1975, p.39) Não obstante tão alta consideração, o ensaísta brasileiro
discorda do francês, no que este atribui ao antiintelectualismo o preço pago
pela literatura por sua independência filosófica. Com o apoio de Della Volpe, e
em seguida o do mestre Lévi-Strauss, José Guilherme Merquior sustenta que o
poético é “usuário” do “logos que é a linguagem (logos = linguagem e razão)” e que assim “se mantém fiel à
natureza racional do logos”, (1975,
p.40) sendo impositivo “reconhecer nos campos mais diversos a atuação da força
lógica do espírito humano”. (1975, p.40)
Contudo,
a discordância se converte em adoção do que ensina Blanchot a respeito da “fala
neutra” ou “fala do silêncio”, que se detectaria em obras posteriores à de
Franz Kafka. No caso de Beckett e Hermann Broch, não se trataria de um discurso
que procura pronunciar a transcendência, diferentemente do que tentam fazer os
poetas-profetas. O infradiscurso beckettiano e brochiano tem raízes no
cotidiano, do qual aspectos não antes percebidos seriam denunciados,
frutificando conscientização mais plena da condição humana. E, satisfeito,
Merquior destaca: “[...] nesse infradiscurso, o que ‘fala’ sem falar são as
dores e carências da condição humana, as cicatrizes da História, a mágoa
anônima dos injustiçados.” (1975, p.42)
O
terceiro ensaio do pequeno volume, portanto, aferra-se a entendimento já antes
defendido de que a literatura deve cumprir uma função social específica: empenhar-se
em iluminar as mazelas da existência humana, uma vez que “toda comunicação será
gratuita enquanto se mantiver alheia à realidade concreta do sofrimento.”
(1975, p.42) Sendo assim, José Guilherme Merquior conclui que a emancipação
filosófica da literatura teve por uma de suas motivações principais “uma
concepção diferencial do homem”, (1975,
p.42) e ratifica que “os poetas-pensadores [...] são os grandes escritores do
nosso tempo”. (1975, p.44)
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MERQUIOR, José
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2ª ed. (trad. Juvenal Hahne Jr.) São Paulo: É Realizações, 2013.
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problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
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TOLLENDAL,
Eduardo José. “Papéis cruzados: o estruturalismo nos regimes autoritários a
leste e oeste de Greenwich” in revista eletrônica Literatura e autoritarismo: dossiê Artistas e cultura em tempos de
autoritarismo. Maio de 2012.
disponível em <<http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie07/RevLitAut_art09.pdf>>.
VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Trad. Elpídio Mario
Dantas Fonseca. São Paulo: É Realizações, 2008.
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