quarta-feira, 28 de outubro de 2015

"Guia-me a só razão": um poema de Fernando Pessoa

Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.

Tivesse Quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
“Cego, fora eu bendito”?

Como o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão –
Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.

(Ficções do interlúdio. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. p.97)

sábado, 17 de outubro de 2015

Merquior: um aluno repetente da escola de morrer moço?

Admirados e espantados pela quantidade e pela qualidade do legado intelectual de José Guilherme Merquior (cerca de duas dezenas de livros, numerosos textos esparsos, uma bibliografia ainda influente e atual), e entristecidos pelo falecimento precoce do autor (aos nem 50 anos de idade), à mente de muitos de nós costumam vir palavras como: “Parecia que ele tinha pressa em ler, aprender e escrever muito porque pressentia a própria morte para muito em breve.”

São palavras pertencentes à mesma espécie dos lugares-comuns ouvidos em velórios: “desta vida não se leva nada; para morrer basta estar vivo”, etc. Ou seja: é um pensamento boboca, bem ao gosto ultrarromântico, que explicou, no século retrasado, a morte de um Álvares de Azevedo, aos 20 anos, mas que desagradaria, irritaria o próprio Merquior, homem de razão, avesso a elucubrações de ordem mística ou de inconsciente, ainda mais em estado de clichê.
O que houve foi uma mera, e sim, é verdade, trágica coincidência de mais servira se não fora para tão longa obra tão curta vida. Beethoven morreu aos 57 anos e compôs, em termos numéricos, significativamente menos do que Mozart, que morreu aos 35; idade em torno da qual Rossini abandonou a carreira de compositor, para só vir a falecer aos 68 – caso semelhante, na literatura, ao de Rimbaud. Johannes Brahms, ultraperfeccionista, deixou obra bem menor que a de Beethoven, e deixou a vida 10 anos mais velho.

Aos cinquenta, em 1875, Camilo Castelo Branco já tinha escrito uma das maiores obras literárias em língua portuguesa. Se o Romancista de Ceide, como Balzac, se estafou com a pena em punho, fosse porque pressentisse que iria morrer cedo, fosse porque vivia desse ofício pouco rendoso, contou com mais quinze anos, durante os quais escreveu mais outra prateleira. Outro titã da tinta e do papel, em Portugal, foi Teófilo Braga, cuja existência longeva (entre 1843 e 1924) resultava, já cinquentão, numa obra filosófica e de crítica literária, pelo menos quanto ao volume, de impor respeito. Para ficarmos em território nacional, podemos mencionar a contribuição de Assis Brasil. Nascido em 1932 (hoje, portanto, aos 83 anos), o escritor piauiense se consagra com uma das mais volumosas obras literárias produzidas por brasileiro (ultrapassa os 100 títulos).
José Guilherme Merquior escreveu e publicou tanto simplesmente por ter se disposto intelectual e fisicamente para essa tarefa. Uma platitude, eu sei. Se não tivesse sido levado pelo câncer, é muito provável que continuasse a escrever e publicar. Ou não, como diria o por ele intitulado “intelectual de miolo mole”. Não importa. O importante é a lição de Merquior, o professor da escola de viver o melhor e mais sensatamente possível, que ensinava ser um obscurantismo anacrônico, uma infância mental peter-panesca nos deixarmos assombrar, já no século XX e ainda no XXI, pelos velhos fantasmas românticos do irracionalismo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Notícias do evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”

Realizou-se à noite de ontem (1º de outubro), no auditório do campus Dom José Váquez Díaz da UESPI, o evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”, organizado pelo GEM, sob coordenação do prof. Dr. Adriano Lima Drumond, com apoio da PREX/UESPI. Foram proferidas três conferências, que, no conjunto, objetivavam não somente divulgar e discutir a tradição e as concretizações do liberalismo segundo Merquior, mas também apresentar nosso grupo à comunidade acadêmica local e noticiar nossa produção nesses dois anos de atuação oficial.

O prof. Dr. Nouga Cardoso Batista, reitor da Universidade Estadual do Piauí, pronunciou as palavras de abertura e de encerramento, tendo destacado a relevância das informações e a qualidade das discussões ouvidas por público composto por alunos e professores do campus, além de outros interessados. A autoridade maior da UESPI ainda aventou a possibilidade de se realizar o mesmo evento em outros campi da instituição, como forma de incentivar a extensão e a pesquisa em diferentes municípios do Estado.

prof. Dr. Nouga Cardoso Batista (Reitor da UESPI)
 
Na primeira conferência, intitulada “José Guilherme Merquior: lições de um crítico das ideias”, Adriano Lima Drumond, docente do curso de Licenciatura Plena em Letras Português, forneceu aos presentes os dados biográficos e bibliográficos principais do autor em questão, discerniu os conceitos de liberismo (visão restrita ao âmbito econômico) e de liberalismo (uma visão abrangente, que envolve ideias como as de democracia, liberdade, igualdade, desenvolvimento, progresso, ciências, razão, Estado de Direito), bem como esclareceu a proposta liberal adotada e propagandeada por Merquior: a de social-liberalismo, conforme a qual o Estado se compromete, em condições de disparidades socioeconômicas, como no Brasil, a servir como promotor de condições mais igualitárias, contudo respeitando a autonomia do mecanismo do mercado e estimulando a eficiência e a expansão da iniciativa privada.

prof. Dr. Adriano Drumond, falando ao microfone
 
A conferência do prof. Adriano Drumond também ensejou a doação particular, que se tornou solene e orgulhosamente pública, de 11 exemplares dos seis títulos de publicação recente pela editora É Realizações para a biblioteca do campus Dom José Vásquez Díaz. O acervo contém Razão do poema, Verso universo em Drummond, A estética de Lévi-Strauss, De Anchieta a Euclides, O liberalismo: antigo e moderno e Formalismo e tradição moderna.

prof. José de Arimateas de Sousa Nunes, falando ao microfone
 
Em seguida, o prof. José de Arimateas de Sousa Nunes, também pertencente ao quadro docente do curso de Licenciatura Plena em Letras Português e integrante do GEM, expôs o panorama histórico que José Guilherme Merquior traçou do liberalismo em seu último livro (1991), desde o protoliberalismo, que se manifesta na Idade Média, até suas vertentes consolidadas no século XX. Como conclusão de sua conferência, especialmente aplaudida pelo Magnífico Reitor, o prof. Sousa Nunes convidou o público, de modo lúdico e provocativo, a orar o “Credo liberal”.

O juiz e prof. Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz
 
Por fim, Dr. Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz, professor do curso de Bacharelado em Direito do campus, juiz titular da Vara do Trabalho de Bom Jesus-PI e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de Teresina-PI, interpretou, sob a ótica jurídica, o texto “Liberalismo e constituição” que Merquior publicou em Constituição de 1988: o avanço do retrocesso (1990), livro organizado por Paulo Mercadante. Entre concordâncias e divergências de visão sobre o assunto em pauta, o prof. Nery da Cruz reforçou que o pensamento liberal deve defender não somente um Estado de Direito, que pode ocorrer e ocorre em regimes autoritários, como na Coreia do Norte ou em Cuba, mas, mais especificamente, um Estado democrático de Direito.

público do evento, no auditório do campus (UESPI)
 
da esquerda para a direita: professores Carlos Wagner, Nouga Cardoso, Adriano Drumond,
Raimundo Isídio, José de Arimateas e Gasparino Batista
 
 
Esse evento, que o GEM planeja ser o primeiro de muitos, em realizações anuais, nos deixou imensamente satisfeitos e felizes. Acreditamos que o público (mais de cem pessoas) saiu do auditório com entendimento, no mínimo, menos depreciativo e caricato de liberalismo e do valor da obra de José Guilherme Merquior. Cumpre ressaltar a presença, que mais ainda nos prestigiou, do diretor do campus, prof. Dr. Gasparino Batista de Sousa, e do pró-reitor da PRAD (Administração e Recursos Humanos), prof. Ms. Raimundo Isídio de Sousa.

os professores Carlos Wagner, Adriano Drumond e José de Arimateas
 
Na condição de coordenador do GEM, gostaria de agradecer especialmente, neste espaço, a colaboração dos integrantes discentes Daniel Nogueira do Nascimento, Denise Bezerra Leal, Nicélia Oliveira Campos, Silvania Maria de Sousa Brito e da graduada Thaís Amélia de Araújo Rodrigues, e manifestar minha felicidade e entusiasmo com o engajamento do grupo nesta nossa empreitada acadêmica. Por motivos de força maior, a aluna Daniela Ferreira Martins não pôde estar presente, mas decerto nos ajudou com sua torcida para que no evento tudo desse certo.
GEM (da esquerda para a direita): Daniel Nogueira, Adriano Drumond, Nicélia Campos,
Denise Leal, Silvania Brito, Thaís Amélia e José de Arimateas