A extensão, a pluralidade, a erudição e a complexidade da obra de José Guilherme
Merquior, nada fácil nem simples de se dominar por completo, parecem ocasionar equívocos
comuns, cometidos mesmo por quem já estabeleceu intimidade com o pensamento do
grande ensaísta.
Um
que se deve eliminar com urgência, por conotar escabroso desleixo, é a
pronúncia “Meuquior”, não poucas
vezes ouvida, seja da boca de jornalistas, seja da de comentaristas da obra de
Merrrrrrrrrquior. Há, sim, a
variante do sobrenome “Melquior”, mas cumpre – prescinde dizê-lo – respeitar,
na fala, a grafia onomástica dessa família. Não me furto a divulgar, a propósito
disso, o trocadilho que minha esposa soltou, ao tomar conhecimento desse feio deslize: “ei, olha o meu ‘qui ó!”
Outro
equívoco comum, este de fato decorrente das dificuldades em lidar com o
conjunto titânico dos textos do autor, é rotulá-lo de neoliberal (assumo: eu
mesmo o cometi há alguns anos). A não ser que entendamos neoliberalismo em
sentido elástico, como toda e qualquer versão mais recente de liberalismo. José
Guilherme Merquior, particularmente no último decênio de vida, foi um pensador
liberal, que se identificou com o ideário do social-liberalismo, uma vez que preconizava o equilíbrio entre a
liberdade da economia de mercado, a mais eficaz forma de produção de riqueza, e
a igualdade social, a ser promovida ou preservada por intervenções do Estado. Sendo
assim, a solução de Merquior não é nem o Estado mínimo do neoliberalismo, nem o
Estado máximo do socialismo-comunismo. A respeito do tema, deve-se ler “Tarefas
da crítica liberal” de As formas e as ideias
(1981) e os vários ensaios de O argumento
liberal (1983).
O
terceiro equívoco comum foi cometido por ninguém menos do que Sergio Paulo
Rouanet, um dos mais próximos amigos de José Guilherme Merquior, sobre o qual
afirma que “[...] descartando Freud,
Merquior abriu mão de um valiosíssimo aliado na cruzada iluminista. Freud é
o último e mais radical dos iluministas” e ainda: “Por ignorar Freud,
Merquior privou-se da ajuda desse Voltaire da alma, e reduziu seu poder de fogo
diante dos verdadeiros inimigos do espírito.” (2014, p.366 – destaques meus)
Rouanet
tem em vista, nesse seu texto de homenagem ao autor falecido tão jovem, a
célebre pergunta retórica e introdutória de As
ideias e as formas: “É possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte
de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?”
(1981, p.11) Contudo, note-se que a frase não diz “Freud”, e sim “psicanálise”,
assim como não diz “Marx”, e sim “marxismo”. Merquior anunciava, naquele livro aparecido juntamente com o início da década de 80, que passaria a investir
contra, nas palavras certas de Rouanet, aquilo “em que a psicanálise se
transformou”, e não propriamente contra o legado freudiano. Para termos a
certeza dessa distinção, e de que Merquior compreendia o pai da psicanálise,
sim, como um iluminista, e não o contrário, basta lermos as primeiras linhas de
“O avestruz terapêutico”, ensaio contido em O
elixir do apocalipse (1983):
Muita
gente boa ainda pensa que a psicanálise é uma teoria do distúrbio mental. Isso
é o que ela promete, mas não cumpre. No duro mesmo, a psicanálise não é uma
medicina da mente – é uma enfermidade do intelecto, um projeto iluminista que virou superstição burguesa. (p.63 –
destaque meu)
Não
obstante o deslize tão localizado, o texto de Sergio Paulo Rouanet não deixa de
oferecer uma bela chave de compreensão do pensamento merquioriano, compreensão que
será incrementada, aliás, com a leitura de livros como As razões do iluminismo (1987), título que por si só nos força a
recordar o nome do ensaísta de Razão do
poema.
*
* *
Referências bibliográficas
MERQUIOR, José
Guilherme. As ideias e as formas. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
ROUANET, Sergio
Paulo. “Merquior: obra política, filosófica e literária” in MERQUIOR, José
Guilherme. O liberalismo: antigo e
moderno. 3ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2014. pp.360-370.
Nenhum comentário:
Postar um comentário