quarta-feira, 13 de julho de 2016

Vai, Merquior!... desafinar o coro dos descontentes: sobre “Sobre a doxa literária”

Um dos meus textos preferidos da lavra merquioriana é o “Sobre a doxa literária”, publicado pela primeira vez em número da revista portuguesa Colóquio Letras de 1987, e constante na antologia do autor intitulada Crítica (1990). O ensaio, portanto, expressa um pensamento que, ao longo de toda a década de 1980, militou em nome da razão liberal, atacando, como adversários principais, o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda, conforme o próprio autor havia anunciado mais de um lustro antes, em As ideias e as formas (1981).

Há efetivamente uma mudança significativa entre a crítica de José Guilherme Merquior nos anos 70 e nos 80. Em Formalismo e tradição moderna (1974), os dois termos desse título “figuram neste livro como pólos antitéticos”, como “irmãos inimigos”, (2015, p.39) uma vez que o autor aí compreende um enfrentamento entre a arte moderna, na qual se enquadrariam as vanguardas modernistas, o alto modernismo europeu, e a crítica estruturalista, cuja perspectiva de análise – um “rito alienado” (2015, p.40) – concentrar-se-ia na forma, na imanência do texto, alheando-se da “significação humana e crítica” do objeto literário. Todavia, na apresentação de sua antologia de 1990, Merquior esclarecerá sua atualização de pensamento, em que se conscientiza da “ligação íntima entre os dois movimentos [a crítica formalista e a arte de vanguarda] que antes tentara ingenuamente contrapor”. (1990, p.II)

Não obstante essa reorientação de visão sobre a arte de vanguarda e a tradição moderna, a mudança no pensamento merquioriano em tela se ateve ao âmbito das conclusões, não tendo-se alterado os pressupostos. Pois o ensaísta preserva sua postura crítica relativa ao formalismo (visto, então, não apenas nos estudos literários, mas também na literatura do alto modernismo) e mantém sua exigência à literatura, proclamada desde os primeiros estudos, de comunicação e de contato com a realidade.

Em “As contradições da vanguarda”, artigo publicado em 1965 nos Cadernos brasileiros, José Guilherme Merquior não atacava toda e qualquer arte vanguardista, mas separava o joio do trigo: caso não acatasse ao “primado do produzir sobre o experimentar” (1965, p.5) e a uma “orientação para o realismo” (1965, p.5-6) – realismo no sentido de “exprimir a realidade da experiência cotidiana, não necessariamente de maneira sociologística, documental, mas, ao contrário, frequentemente, de forma visionária, fantástica, alusiva e simbólica” e de “apreender, ao lado dessa realidade do cotidiano, as condições concretas em que se dá, na atualidade, a experiência estética”, (1965, p.6) – a vanguarda corria o risco de se apresentar como vã-guarda, isto é, “improdutiva e incomunicante”. (1965, p.5)

Razão do poema, estreia em volume do autor no mesmo ano do ensaio acima referido, reforçava as exigências do jovem crítico, especialmente no tocante à poesia, da qual proclamava a “necessidade de recorrer a símbolos da inteligência comum”, no propósito de efetivar uma “comunicação, por via consciente, de significados de fundo coletivo, porque a poesia não pode ser um jogo de obscuridade e de inconsciência totais”. (2013, p.183)

“As contradições da vanguarda” questionava a validade sócio-artística do concretismo brasileiro, por este ignorar que “a frase, o discurso, não são abastardamentos da língua, são seus componentes estruturais”, (1965, p.17) e do Nouveau roman francês, que se renderia à ingenuidade de ambicionar “apresentar a face pura das coisas, sem as deformações impostas pela homem”, produzindo um discurso pretensamente “isento de todo preconceito de toda projeção subjetiva”. (1965, p.18) Por outro lado, com óculos lukácsianos, o ensaísta enxergava em Franz Kafka, James Joyce, Bertolt Brecht realizações “onde ética e estética se sintetizam”, (1965, p.10) mergulhadas que seriam elas na “consciência problemática da realidade”. (1965, p.20)

Parte dessa avaliação se modificará uma década e meia depois. Além de continuarem desqualificados, no julgamento merquioriano, o concretismo brasileiro e o Nouveau roman, exemplarmente o Ulisses de Joyce, marco da estética vanguardista ocidental da primeira metade do século XX, passará a ser considerado, nos termos da epígrafe de “Sobre a doxa literária”, um livro que, “sem negar que seja interessantíssimo, duma profunda literatice”. Tendo-se em vista o sentido do ensaio de Merquior, essas palavras zombeteiras de Mário de Andrade não significam apenas no âmbito do que estritamente dizem; o fato de tratar-se seu autor de um modernista brasileiro tão representativo prefigura a distinção valorativa na qual José Guilherme Merquior virá a insistir: diferentemente do “alto modernismo europeu”, o modernismo no Brasil, em geral, não consumou a emancipação da lógica, da retórica, da comunicação; não almejou a libertação do significante; não imergiu na “tenebrização dos sentidos”; não foi “um rito de negação da história”, nem um enfrentamento cheio de nojinho da modernidade.

Em síntese, “Sobre a doxa literária” discute uma conjuntura cultural e acadêmica onde uma certa tradição moderna e a estética vanguardista do alto modernismo europeu e suas ramificações geopolíticas (de Mallarmé a Franz Kafka, James Joyce, T. S. Eliot, Ezra Pound) foram alçadas à condição de modelo hegemônico em matéria de literatura. É esta a doxa, o consenso, o senso comum que Merquior demoniza, numa de suas mais desenvoltas performances de crítico polemista. E o faz porque detecta, dentre outros prejuízos desse discurso, a injusta subvalorização de autores como Robert Musil, André Gide e Henrik Ibsen, contemporâneos dos primeiros citados neste parágrafo.

Há quem faça careta ao ouvir o nome de Merquior, com condenação na ponta da língua por ele ter sido colaborador intelectual da campanha eleitoral e da presidência de Fernando Collor de Mello. Muitos que assim reagem, contudo, não exprimem o menor desconforto na reverência a Martin Heidegger, filósofo que, por sua vez, validou o regime nazista, deste sendo entusiasta e beneficiado por um bom tempo. Essa incoerência de postura, verifica Merquior, traduzida nas “afinidades entre modernismo e autoritarismo”, sustentaria placidamente a “doxa literária”, que não seria, muitas vezes, só simpática a fascismos (a exemplo de Ezra Pound), (1990, p.367) mas também por natureza “uma apologia do elitismo”. (1990, p. 366) Em tal disposição, a arte moderna teria se retirado da “arte-na-cultura” e se refugiado na “arte-cultura”, isto é, “uma cultura estética que se quer autárquica, e se orgulha de rejeitar globalmente o código de valores da cultura social”. (1990, p.369)

Tenebrizados seus sentidos, fetichizadas suas formas, aristocratizada sua recepção, como se surpreender que um sentimento de crise da cultura se instalasse na mentalidade que postulou os termos da doxa literária contemporânea? É verdade que, nos anos 70, José Guilherme Merquior acreditou na realidade dessa crise, Leitmotiv de dois importantes volumes de sua autoria: Saudades do carnaval (1972), uma “introdução à crise da cultura”, e Formalismo e tradição moderna (1974), de subtítulo “o problema da arte na crise da cultura”. A respeito do primeiro livro, o autor ele mesmo o designará “estudo imaturo”, em O argumento liberal. (1983, p.230-231) Quanto ao segundo, onde consta “Kitsch e antikitsch (arte e cultura na sociedade industrial)”, ensaio-chave do volume, cuja pegada adorniana registra uma crítica de fundo marxista, às voltas com pressupostos como os de alienação e de indústria cultural, José Guilherme Merquior elegerá de todo o livro apenas dois textos: “O dia em que nasci moura e pereça” e “A interpretação estilística da pintura clássica”, para reaparecerem na sua antologia de 1990. Observe-se que, assim como este último, subintitulado “um desafio para o método formalista”, o ensaio “O dia em que nasci moura e pereça” é uma análise também estilística, nos moldes de Augusto Meyer e Ernst Robert Curtius, de famoso soneto de um poeta também clássico, ninguém menos do que Luís Vaz de Camões. Uma estocada dupla, não?, na crítica formalista e na arte de vanguarda, sob as bênçãos de “Tia Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, [que] era bem mais sensível, bem mais escrupulosa, em face do discurso poético [do que a tradição estruturalista]”. (1975, p.10)

“Paladino da racionalidade concreta”, conforme alcunha precisa de Miguel Reale, Merquior viria a refutar a existência de uma crise cultural, somente atestável na ótica da arte moderna, em nome da qual se disseminou, no destaque de Antoine Compagnon, a “hostilidade enfrentada por um artista [como] o sinal de sua glória futura e, inversamente, de seu rápido sucesso, a prova de sua mediocridade”. (2003, p.31) Aos mitos da arte moderna e à máxima de Rimbaud, José Guilherme Merquior, em “Sobre a doxa literária”, retrucou com o brado: “Cumpre ser absolutamente racional”.


Referências bibliográficas

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Tradução de Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MERQUIOR, José Guilherme. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. Formalismo e tradição moderna: a problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2015.

______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.


______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário