Um
dos meus textos preferidos da lavra merquioriana é o “Sobre a doxa literária”,
publicado pela primeira vez em número da revista portuguesa Colóquio Letras de 1987, e constante na
antologia do autor intitulada Crítica (1990).
O ensaio, portanto, expressa um pensamento que, ao longo de toda a década de
1980, militou em nome da razão liberal, atacando, como adversários principais,
o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda, conforme o próprio autor havia
anunciado mais de um lustro antes, em As
ideias e as formas (1981).
Há
efetivamente uma mudança significativa entre a crítica de José Guilherme
Merquior nos anos 70 e nos 80. Em Formalismo
e tradição moderna (1974), os dois termos desse título “figuram neste livro
como pólos antitéticos”, como “irmãos inimigos”, (2015, p.39) uma vez que o
autor aí compreende um enfrentamento entre a arte moderna, na qual se
enquadrariam as vanguardas modernistas, o alto modernismo europeu, e a crítica
estruturalista, cuja perspectiva de análise – um “rito alienado” (2015, p.40) –
concentrar-se-ia na forma, na imanência do texto, alheando-se da “significação
humana e crítica” do objeto literário. Todavia, na apresentação de sua
antologia de 1990, Merquior esclarecerá sua atualização de pensamento, em que
se conscientiza da “ligação íntima entre os dois movimentos [a crítica
formalista e a arte de vanguarda] que antes tentara ingenuamente contrapor”.
(1990, p.II)
Não
obstante essa reorientação de visão sobre a arte de vanguarda e a tradição
moderna, a mudança no pensamento merquioriano em tela se ateve ao âmbito das
conclusões, não tendo-se alterado os pressupostos. Pois o ensaísta preserva sua
postura crítica relativa ao formalismo (visto, então, não apenas nos estudos
literários, mas também na literatura do alto modernismo) e mantém sua exigência
à literatura, proclamada desde os primeiros estudos, de comunicação e de contato
com a realidade.
Em
“As contradições da vanguarda”, artigo publicado em 1965 nos Cadernos brasileiros, José Guilherme
Merquior não atacava toda e qualquer arte vanguardista, mas separava o joio do
trigo: caso não acatasse ao “primado do produzir sobre o experimentar” (1965,
p.5) e a uma “orientação para o realismo” (1965, p.5-6) – realismo no sentido
de “exprimir a realidade da experiência cotidiana, não necessariamente de
maneira sociologística, documental, mas, ao contrário, frequentemente, de forma
visionária, fantástica, alusiva e simbólica” e de “apreender, ao lado dessa
realidade do cotidiano, as condições concretas em que se dá, na atualidade, a
experiência estética”, (1965, p.6) – a vanguarda corria o risco de se
apresentar como vã-guarda, isto é,
“improdutiva e incomunicante”. (1965, p.5)
Razão do poema,
estreia em volume do autor no mesmo ano do ensaio acima referido, reforçava as
exigências do jovem crítico, especialmente no tocante à poesia, da qual
proclamava a “necessidade de recorrer a símbolos da inteligência comum”, no
propósito de efetivar uma “comunicação, por via consciente, de significados de
fundo coletivo, porque a poesia não pode ser um jogo de obscuridade e de
inconsciência totais”. (2013, p.183)
“As
contradições da vanguarda” questionava a validade sócio-artística do concretismo
brasileiro, por este ignorar que “a frase, o discurso, não são abastardamentos da língua, são seus componentes
estruturais”, (1965, p.17) e do Nouveau
roman francês, que se renderia à ingenuidade de ambicionar “apresentar a
face pura das coisas, sem as deformações impostas pela homem”, produzindo um
discurso pretensamente “isento de
todo preconceito de toda projeção subjetiva”. (1965, p.18) Por outro lado, com
óculos lukácsianos, o ensaísta enxergava em Franz Kafka, James Joyce, Bertolt
Brecht realizações “onde ética e estética se sintetizam”, (1965, p.10)
mergulhadas que seriam elas na “consciência problemática da realidade”. (1965,
p.20)
Parte
dessa avaliação se modificará uma década e meia depois. Além de continuarem
desqualificados, no julgamento merquioriano, o concretismo brasileiro e o Nouveau roman, exemplarmente o Ulisses de Joyce, marco da estética
vanguardista ocidental da primeira metade do século XX, passará a ser
considerado, nos termos da epígrafe de “Sobre a doxa literária”, um livro que, “sem
negar que seja interessantíssimo, duma profunda literatice”. Tendo-se em vista
o sentido do ensaio de Merquior, essas palavras zombeteiras de Mário de Andrade
não significam apenas no âmbito do que estritamente dizem; o fato de tratar-se
seu autor de um modernista brasileiro tão representativo prefigura a distinção
valorativa na qual José Guilherme Merquior virá a insistir: diferentemente do
“alto modernismo europeu”, o modernismo no Brasil, em geral, não consumou a
emancipação da lógica, da retórica, da comunicação; não almejou a libertação do
significante; não imergiu na “tenebrização dos sentidos”; não foi “um rito de
negação da história”, nem um enfrentamento cheio de nojinho da modernidade.
Em
síntese, “Sobre a doxa literária” discute uma conjuntura cultural e acadêmica
onde uma certa tradição moderna e a estética vanguardista do alto modernismo
europeu e suas ramificações geopolíticas (de Mallarmé a Franz Kafka, James
Joyce, T. S. Eliot, Ezra Pound) foram alçadas à condição de modelo hegemônico
em matéria de literatura. É esta a doxa,
o consenso, o senso comum que Merquior demoniza, numa de suas mais desenvoltas
performances de crítico polemista. E o faz porque detecta, dentre outros prejuízos
desse discurso, a injusta subvalorização de autores como Robert Musil, André
Gide e Henrik Ibsen, contemporâneos dos primeiros citados neste parágrafo.
Há
quem faça careta ao ouvir o nome de Merquior, com condenação na ponta da língua
por ele ter sido colaborador intelectual da campanha eleitoral e da presidência
de Fernando Collor de Mello. Muitos que assim reagem, contudo, não exprimem o
menor desconforto na reverência a Martin Heidegger, filósofo que, por sua vez,
validou o regime nazista, deste sendo entusiasta e beneficiado por um bom
tempo. Essa incoerência de postura, verifica Merquior, traduzida nas
“afinidades entre modernismo e autoritarismo”, sustentaria placidamente a “doxa
literária”, que não seria, muitas vezes, só simpática a fascismos (a exemplo de
Ezra Pound), (1990, p.367) mas também por natureza “uma apologia do elitismo”.
(1990, p. 366) Em tal disposição, a arte moderna teria se retirado da
“arte-na-cultura” e se refugiado na “arte-cultura”, isto é, “uma cultura
estética que se quer autárquica, e se orgulha de rejeitar globalmente o código
de valores da cultura social”. (1990, p.369)
Tenebrizados
seus sentidos, fetichizadas suas formas, aristocratizada sua recepção, como se
surpreender que um sentimento de crise da
cultura se instalasse na mentalidade que postulou os termos da doxa literária contemporânea? É verdade
que, nos anos 70, José Guilherme Merquior acreditou na realidade dessa
crise, Leitmotiv de dois importantes
volumes de sua autoria: Saudades do
carnaval (1972), uma “introdução à crise
da cultura”, e Formalismo e tradição
moderna (1974), de subtítulo “o problema da arte na crise da cultura”. A respeito do primeiro livro, o autor ele mesmo o
designará “estudo imaturo”, em O
argumento liberal. (1983, p.230-231) Quanto ao segundo, onde consta “Kitsch
e antikitsch (arte e cultura na sociedade industrial)”, ensaio-chave do volume,
cuja pegada adorniana registra uma
crítica de fundo marxista, às voltas com pressupostos como os de alienação e de
indústria cultural, José Guilherme Merquior elegerá de todo o livro apenas dois
textos: “O dia em que nasci moura e pereça” e “A interpretação estilística da
pintura clássica”, para reaparecerem na sua antologia de 1990. Observe-se que,
assim como este último, subintitulado “um desafio para o método formalista”, o
ensaio “O dia em que nasci moura e pereça” é uma análise também estilística,
nos moldes de Augusto Meyer e Ernst Robert Curtius, de famoso soneto de um
poeta também clássico, ninguém menos do que Luís Vaz de Camões. Uma estocada
dupla, não?, na crítica formalista e na arte de vanguarda, sob as bênçãos de “Tia
Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, [que] era bem mais sensível,
bem mais escrupulosa, em face do discurso poético [do que a tradição estruturalista]”.
(1975, p.10)
“Paladino
da racionalidade concreta”, conforme alcunha precisa de Miguel Reale, Merquior
viria a refutar a existência de uma crise cultural, somente atestável na ótica
da arte moderna, em nome da qual se disseminou, no destaque de Antoine Compagnon,
a “hostilidade enfrentada por um
artista [como] o sinal de sua glória futura e, inversamente, de seu rápido
sucesso, a prova de sua mediocridade”. (2003, p.31) Aos mitos da arte moderna e
à máxima de Rimbaud, José Guilherme Merquior, em “Sobre a doxa literária”,
retrucou com o brado: “Cumpre ser
absolutamente racional”.
Referências bibliográficas
COMPAGNON,
Antoine. Os cinco paradoxos da
modernidade. Tradução de Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e
Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
MERQUIOR, José
Guilherme. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e
literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
______. Formalismo e tradição moderna: a
problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações,
2015.
______. O argumento liberal. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
______. O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de
estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
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