Ao eleger a mímese centro de suas reflexões poéticas, José
Guilherme Merquior singuralizou-se no quadro
da crítica literária brasileira da segunda metade do século XX. O
fato não escapou a Benedito Nunes, que, por isso mesmo, o situa ao lado, conquanto com viés distinto, de Luiz Costa Lima, (cf. 2007, p.69)
autor este de Mímesis e modernidade (1980),
Vida e mímesis (1995), Mímesis: desafio ao pensamento (2000), Mímesis e a reflexão contemporânea (2010) e outros
títulos que tratam do assunto.
É
verdade que Merquior não se dedicou à mímese (conforme sua preferência gráfica)
na mesma proporção do grande teórico nascido no Maranhão. Aliás, Costa Lima lamentou
que o amigo, justamente em A astúcia da mímese
(1972), tenha discutido a questão que remonta à Grécia Antiga de modo
“convencional” e “hoje [...] bem insuficiente”, (2000, p.401) citando as
seguintes passagens: “A mímese é um
espelho: não reflete nada a priori;
por isso, é capaz de reproduzir tudo” (1972, p.13) e “o poeta imita a natura naturans, não a natura naturata”. Contudo, tal pequena amostra
está longe de nos oferecer uma noção confiável do que José Guilherme Merquior expõe
nesse seu terceiro livro.
O
enfoque sobre o assunto se dá no ensaio de abertura do volume, texto intitulado
“Natureza da lírica”. A linha de raciocínio aí perseguida recorda bastante a de
Platão na República e mais ainda a de
Aristóteles na Poética: assim como os
filósofos gregos, o pensador brasileiro define a natureza da lírica como mímese; desse modo, na mesma medida em que
se lança a pensar a mímese, pensa, por conseguinte, a poesia. Além disso, à
semelhança dos dois sábios da Antiguidade, Merquior nem mesmo se esquece de
discutir, no seu ensaio, a questão dos gêneros poéticos (os três consagrados
pela filosofia grega: épico, dramático e lírico).
Para
os propósitos deste nosso breve comentário, gostaria de inverter o percurso do
texto, adiantando o que seu autor reserva para o fim. De fato, nas últimas
páginas de “Natureza da lírica”, José Guilherme Merquior declara seu “carinho
pelo conceito de mímese”, (1972, p.15) esta que seria “a mais útil das ideias
em poética”, (1972, p.12) dado tratar-se de um “conceito entre todos plástico e
flexível”, (1972, p.13) “um conceito apto a colher, no terreno estético, os
benefícios da tendência à superação da metafísica que caracteriza o espírito da
cultura moderna”. (1972, p.13) Considere o leitor ainda a seguinte passagem,
constante do mesmo parágrafo das anteriores:
Numa
época [a atual] que não só perdeu seu “centro” ontológico, sua imagem fechada
do mundo, como se dispõe a abandonar as últimas nostalgias de um ponto fixo do
ser, as ofertas tão obstinadas quanto anacrônicas de “centros” sobressalentes,
enfim todos os derradeiros obstáculos a uma visão aberta, não substancialista,
do universo – o papel de um conceito [o de mímese] que já traz a abertura
inscrita em si só pode crescer. (1972, p.13)
Essas
linhas transcritas acima atestam, pelo menos, três fatos importantes: a) que
José Guilherme Merquior procurou captar algo semelhante ao que Luiz Costa Lima ainda se disporá a desvendar em suas últimas reflexões sobre o assunto, isto
é, “como a questão da mímesis adere
ao próprio questionamento epistemológico contemporâneo”; (2010, p.10-11) b) que
o autor de A astúcia da mímese tinha
plena consciência da contemporaneidade como uma época destinada a ser
compreendida por uma visão aberta, não
substancialista, do universo; e, finalmente, c) que o ensaísta carioca
requeria uma específica legitimação de seu aparato crítico-teórico, pela via de
uma espécie de demanda não apenas do objeto e ser literários, mas também das
condições sócio-culturais da realidade presente.
E,
afinal, o que é mímese para Merquior, segundo consta em “Natureza da lírica”? Antes
de propriamente responder a essa pergunta, convém esclarecer que o ensaísta
preferia escrever “mímese” com a justificativa de “salientar a diferença entre mimese,
figura de retórica, e o conceito de poética e de estética homônimo”. Mimese se
referiria a algo mais específico, portanto, ao “emprego do discurso direto,
‘imitando’ a fala dos personagens”. Isto é, a nota na “Memoranda” do livro
ignora a grafia mímesis, como prefere
Luiz Costa Lima, e ainda mimesis,
como costumava escrever Benedito Nunes.
A
conceituação merquioriana de mímese é fundamentalmente dialética. E o autor,
com perspicaz pertinência, já a sugere em epígrafe, colhida de Johann Wolfgang von Goethe: “Não se
pode fugir ao mundo de modo mais seguro do que pela arte; nenhuma forma de
prender-se a ele é mais segura do que ela.” (1972, p.2) Em outras palavras,
para Merquior, a mímese configura, ao mesmo tempo, a autonomia formal da arte,
com sua lógica e significados próprios, o que não implicaria que a obra
artística ignore a forma nem o sentido da realidade que nos circunda
– pelo contrário: a mímese merquioriana, pró-aristotélica e antiplatônica,
ostenta um poderoso caráter cognitivo, ou seja, a arte constitui uma
contribuição à compreensão do mundo.
Ao
traduzir mímese por imitação, o ensaísta explica algo que é mesmo
introdutório sobre o tema, e, não obstante, muitas vezes difícil de
ensinar/aprender em sala de aula: “A imitação não é fotográfica. Ela configura
o concreto, mas exibe o universal.” (1972, p.7) Comento as duas frases em três
enfoques.
Primeiro:
observe meu leitor o quanto essa lição deve a Aristóteles, que concluía em sua Poética que a poesia, por ser mímese e,
desse modo, tratar não do que aconteceu, mas do que poderia ter acontecido,
mostra-se mais universal do que a
história, registro de fatos particulares.
Segundo:
Ouso afirmar que a assertiva “A imitação não é fotográfica” requer alguns ajustes, não
tendo sido, a meu ver, uma frase conceitualmente feliz. Isso porque também a
fotografia poderia ser considerada uma mímese, configurando o concreto e
exibindo o universal. Por exemplo, a imagem icônica abaixo significa muito mais
do que um homem diante de tanques de guerra numa praça chinesa:
Podemos também mencionar, a propósito, o célebre quadro de René Magritte, no qual a
reprodução (ou a imitação) de um cachimbo apresenta-se como quase
fotográfica. Porém o pintor, numa tirada teórica bem humorada, alerta o
observador: “Ceci n’est pas une pipe” (“isto não é um cachimbo”), são formas,
perspectivas e cores que iludem seus olhos humanos, dando-lhe a sensação de
enxergar na tela esse objeto.
Para
José Guilherme Merquior, à revelia de sua frase em “Natureza da lírica”, a
imitação/mímese não necessariamente precisa ser fotográfica, e, embora não o
seja, configura o concreto e exibe o
universal.
Terceiro: o
conceito sobre o qual nosso autor se debruça nesse ensaio também lhe permite,
digamos, vislumbrar uma das razões da universalidade da literatura. Por que, em
pleno século XXI, ainda lemos e gostamos de ler Cervantes, Shakespeare, Homero,
autores que abordaram episódios, comportamentos, ambientes para nós, hoje, aparentemente tão
remotos no tempo? A equação que nos parece responder a isso se propõe nestes
termos: “O mundo ‘concreto’ aberto pela obra [literária] resulta de um jogo
complexo entre os universais do médium (linguagem), a particularidade a que a
imitação aspira, e, finalmente, o sentido de universalidade que ressuma dessa
mesma imitação.” (1972, p.8) Ou ainda, de forma lapidar: “Por uma espécie de astúcia da mímese, a representação do
singular logra significação universal.” (1972, p.8)
Essa
significação universal, tomada no
ensaio como finalidade da poesia e da literatura, constitui o valor literário
maior para o pensamento crítico merquioriano. Pois o autor de O marxismo ocidental, via de regra, cobrou
dos escritores o acento da dimensão ética
dentro da dimensão estética, a
partir da “obtenção de um conhecimento especial sobre aspectos ‘universais’ da
vida humana”. (1972, p.12) E esclarece: “Ora, a astúcia da mímese indica a
causa final do literário, que guarda o segredo da universalidade das suas obras:
essa capacidade de interessar aos homens em qualquer tempo e lugar.” (1972,
p.12)
Referências bibliográficas
LIMA, Luiz
Costa. “Introdução geral” in: LIMA, Luiz Costa (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
pp.7-49.
MERQUIOR, José
Guilherme. A astúcia da mímese:
ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
NUNES, Benedito.
“Crítica literária no Brasil, ontem e hoje” in: MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da crítica. 2ª ed. São Paulo:
Senac; Itaú Cultural, 2007. pp.51-79.