O
modernismo foi assunto de enorme interesse de José Guilherme Merquior. Páginas
numerosas de Razão do poema (1965), A astúcia da mímese (1972), Formalismo & tradição moderna
(1974), O fantasma romântico e outros
ensaios (1980) dedicam-se ao movimento como um todo, no Brasil e lá fora, a
autores e obras específicas. O autor chegou a planejar escrever um livro
inteiro sobre o modernismo, projeto que infelizmente não se concretizou.
Na
compreensão merquioriana da literatura modernista, podemos destacar, pelo
menos, três conceitos: o de grotesco,
sob a referência central de Wolfgang Kayser; o de alegoria, no sentido específico que dele recortou Walter Benjamin; e
finalmente o de surrealismo, para o
qual as fontes de discussão na obra do ensaísta brasileiro são mais diversificadas.
Neste
post, vamos nos deter (sem nos estender) sobre o significado do surrealismo
dentro do pensamento crítico de Merquior.
Como
se sabe, o surrealismo foi uma das mais importantes correntes da vanguarda
modernista europeia das primeiras décadas do século XX. Expressou-se em
praticamente todas as linguagens artísticas, especialmente nas artes visuais.
Na pintura, é fácil nos lembrarmos dos nomes de Salvador Dalí e de René
Magritte, dos quais várias telas tornaram-se icônicas e reconhecidas de um
público muito amplo. O cinema, a nova arte cujas técnicas se aprimoraram muito
graças às experiências vanguardistas do modernismo, a exemplo do expressionismo
alemão, também teve no surrealismo um nome de projeção: Luis Buñuel, diretor
dos clássicos O cão andaluz e a A idade do ouro.
Todavia,
a responsabilidade inicial e maior pela consolidação desse ismo coube, sem
dúvida, ao campo literário, com os manifestos e outros textos de André Breton,
um dos seus fundadores. A certidão de nascimento dessa vanguarda é “Le
manifeste du surréalisme”, publicada por Breton em 1924. A data revela que se
trata de um dos mais tardios produtos do modernismo europeu, uma vez que o
expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo já haviam aparecido ou antes
ou durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918). Fosse como fosse, o
surrealismo tornou-se uma força criativa poderosa, que se disseminou amplamente
pelas literaturas ocidentais. Isso a tal ponto que Carlos Drummond de Andrade,
em entrevista concedida em setembro de 1946, se dispôs a profetizar: “[...]
acho que a literatura de amanhã deverá muito à influência desse nosso prezado
cadáver do surrealismo. Digo ‘cadáver’, porque o atestado de óbito é antigo,
mas a verdade é que o surrealismo está tão vivo como há dez anos ou quinze anos
atrás.” (1978, p.34)
Não
obstante a complexidade e a diversidade do surrealismo, este caracteriza-se pela
hegemonia concedida ao inconsciente do artista como plataforma de criação. Donde
a recorrência das imagens oníricas, o frequente apelo desabridamente erótico, a
linguagem desconexa e ilógica. Está claro, pois, que uma influência decisiva aí
em questão foi a psicanálise freudiana, assim como, posteriormente, houve de ser
o marxismo.
É,
de fato, com entusiasmo marxista que o alemão Walter Benjamin assim apreciará
essa mudança de rumos do surrealismo, que “de uma atitude extremamente
contemplativa” passaria a assumir “uma oposição revolucionária”. (1996, p.28)
Enfocando
aspecto similar, o mexicano Octavio Paz, no ensaio “O verbo desencarnado”, aponta
semelhanças entre o surrealismo e o romantismo alemão porque ambos teriam
encampado o programa de “transformar a vida em poesia e operar assim uma
revolução decisiva nos espíritos, nos costumes e na vida social”, (2009, p.86)
e também porque “constituem tentativas de transcender razão e religião e fundar
assim um novo sagrado”. (2009, p.87) Por outro lado, os românticos alemães e os
surrealistas se contrastariam, na medida em que entre os últimos “é menos aguda
e ampla a visada metafísica”, (2009, p.87) mas sua “consciência histórica [...]
é mais clara e profunda e sua relação com o mundo mais direta e arrojada”. (2009,
p.87) Ainda Paz salienta a intenção surrealista de “submeter a palavra às
necessidades da ação”, (2009, p.87) e por consequência: “Não é tanto a criação
de poemas que o surrealismo se propõe, mas a transformação dos homens em poemas
viventes.” (2009, p.88)
Essa
convergência entre palavra e ação foi o que mais conquistou a admiração de José
Guilherme Merquior pelo surrealismo. O autor jamais abandonou sua convicção na
capacidade e no dever da literatura em intervir no mundo, pela perspectiva
crítica. Acresce que, na contracorrente da fácil associação entre surrealismo e
evasionismo, o ensaísta brasileiro igualmente realça essa vanguarda como “poesia
da ação”, que “se destina a uma luta social, concretizando e materializando a
esperança do acesso ao Ser.” (2013, p.73) Por fim, destaca, em “Notas para uma
Muriloscopia”, com base na lição de David Sylvester: “[...] o projeto surreal
não era, em substância, estético, mas sim de cunho, antes de tudo, existencial. Por isso, seu espírito se
deixa entender melhor quando cotejado com as manifestações simbólicas das
grandes religiões, não com estilos artísticos no sentido formal”. (1994, p.12)
Todavia,
cumpre assinalar o endosso seletivo do julgamento merquioriano a respeito do
surrealismo. A técnica da escrita automática, por exemplo, conforme a qual o
escritor ambiciona registrar no papel a pura voz do inconsciente, pretensiosamente
sem permitir interferências de normas gramaticais, estéticas e mesmo éticas,
não empolgou o crítico brasileiro. Desde seus primeiros trabalhos, que
culminarão com a publicação de Razão do
poema, José Guilherme Merquior
prescreveria, com efeito, que a razão deveria prevalecer sobre qualquer outra dimensão
criativa, como sentimentos e sensações.
O
caráter visionário do surrealismo, sim, contou para Merquior como uma das suas melhores
contribuições para a literatura, na medida em que se trataria de um anseio não
de fugir, e sim de enfrentar o mundo
concreto, com o expediente das “aproximações insólitas” e do “choque do
super-real”. (1980, p.151) Em outras palavras, talvez se possa afirmar que ao
autor de O véu e a máscara interessava
menos o aspecto do surrealismo como escola e doutrina poética do que a
construção de imagens que permitissem ou fomentassem uma visão crítica e
transformadora da realidade.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. in: BRAYNER, Sônia Brayner (sel.). Carlos Drummond de Andrade. Coleção Fortuna Crítica 1. Direção de
Afrânio Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
BENJAMIN,
Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”. in: Magia e técnica, arte e política. Obras
escolhidas. 7ª ed. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. pp.21-35.
PAZ, Octavio. “O
verbo desencarnado”. in: Signos em
rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org. e rev. Celso Lafer e Haroldo de
Campos. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. pp.75-91.
MERQUIOR, José
Guilherme. “À beira do antiuniverso debruçado, ou introdução livre à poesia de
Murilo Mendes”. in: O fantasma romântico
e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. pp.151-160.
______. “Notas
para uma Muriloscopia”. in: MENDES, Murilo. Poesia
completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.11-21.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de
estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
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