segunda-feira, 17 de abril de 2017

O conceito de mímese em Merquior

Ao eleger a mímese centro de suas reflexões poéticas, José Guilherme Merquior singuralizou-se no quadro da crítica literária brasileira da segunda metade do século XX. O fato não escapou a Benedito Nunes, que, por isso mesmo, o situa ao lado, conquanto com viés distinto, de Luiz Costa Lima, (cf. 2007, p.69) autor este de Mímesis e modernidade (1980), Vida e mímesis (1995), Mímesis: desafio ao pensamento (2000), Mímesis e a reflexão contemporânea (2010) e outros títulos que tratam do assunto.

É verdade que Merquior não se dedicou à mímese (conforme sua preferência gráfica) na mesma proporção do grande teórico nascido no Maranhão. Aliás, Costa Lima lamentou que o amigo, justamente em A astúcia da mímese (1972), tenha discutido a questão que remonta à Grécia Antiga de modo “convencional” e “hoje [...] bem insuficiente”, (2000, p.401) citando as seguintes passagens: “A mímese é um espelho: não reflete nada a priori; por isso, é capaz de reproduzir tudo” (1972, p.13) e “o poeta imita a natura naturans, não a natura naturata”. Contudo, tal pequena amostra está longe de nos oferecer uma noção confiável do que José Guilherme Merquior expõe nesse seu terceiro livro.

O enfoque sobre o assunto se dá no ensaio de abertura do volume, texto intitulado “Natureza da lírica”. A linha de raciocínio aí perseguida recorda bastante a de Platão na República e mais ainda a de Aristóteles na Poética: assim como os filósofos gregos, o pensador brasileiro define a natureza da lírica como mímese; desse modo, na mesma medida em que se lança a pensar a mímese, pensa, por conseguinte, a poesia. Além disso, à semelhança dos dois sábios da Antiguidade, Merquior nem mesmo se esquece de discutir, no seu ensaio, a questão dos gêneros poéticos (os três consagrados pela filosofia grega: épico, dramático e lírico).

Para os propósitos deste nosso breve comentário, gostaria de inverter o percurso do texto, adiantando o que seu autor reserva para o fim. De fato, nas últimas páginas de “Natureza da lírica”, José Guilherme Merquior declara seu “carinho pelo conceito de mímese”, (1972, p.15) esta que seria “a mais útil das ideias em poética”, (1972, p.12) dado tratar-se de um “conceito entre todos plástico e flexível”, (1972, p.13) “um conceito apto a colher, no terreno estético, os benefícios da tendência à superação da metafísica que caracteriza o espírito da cultura moderna”. (1972, p.13) Considere o leitor ainda a seguinte passagem, constante do mesmo parágrafo das anteriores:

Numa época [a atual] que não só perdeu seu “centro” ontológico, sua imagem fechada do mundo, como se dispõe a abandonar as últimas nostalgias de um ponto fixo do ser, as ofertas tão obstinadas quanto anacrônicas de “centros” sobressalentes, enfim todos os derradeiros obstáculos a uma visão aberta, não substancialista, do universo – o papel de um conceito [o de mímese] que já traz a abertura inscrita em si só pode crescer. (1972, p.13)

Essas linhas transcritas acima atestam, pelo menos, três fatos importantes: a) que José Guilherme Merquior procurou captar algo semelhante ao que Luiz Costa Lima ainda se disporá a desvendar em suas últimas reflexões sobre o assunto, isto é, “como a questão da mímesis adere ao próprio questionamento epistemológico contemporâneo”; (2010, p.10-11) b) que o autor de A astúcia da mímese tinha plena consciência da contemporaneidade como uma época destinada a ser compreendida por uma visão aberta, não substancialista, do universo; e, finalmente, c) que o ensaísta carioca requeria uma específica legitimação de seu aparato crítico-teórico, pela via de uma espécie de demanda não apenas do objeto e ser literários, mas também das condições sócio-culturais da realidade presente.

E, afinal, o que é mímese para Merquior, segundo consta em “Natureza da lírica”? Antes de propriamente responder a essa pergunta, convém esclarecer que o ensaísta preferia escrever “mímese” com a justificativa de “salientar a diferença entre mimese, figura de retórica, e o conceito de poética e de estética homônimo”. Mimese se referiria a algo mais específico, portanto, ao “emprego do discurso direto, ‘imitando’ a fala dos personagens”. Isto é, a nota na “Memoranda” do livro ignora a grafia mímesis, como prefere Luiz Costa Lima, e ainda mimesis, como costumava escrever Benedito Nunes.

A conceituação merquioriana de mímese é fundamentalmente dialética. E o autor, com perspicaz pertinência, já a sugere em epígrafe, colhida de Johann Wolfgang von Goethe: “Não se pode fugir ao mundo de modo mais seguro do que pela arte; nenhuma forma de prender-se a ele é mais segura do que ela.” (1972, p.2) Em outras palavras, para Merquior, a mímese configura, ao mesmo tempo, a autonomia formal da arte, com sua lógica e significados próprios, o que não implicaria que a obra artística ignore a forma nem o sentido da realidade que nos circunda – pelo contrário: a mímese merquioriana, pró-aristotélica e antiplatônica, ostenta um poderoso caráter cognitivo, ou seja, a arte constitui uma contribuição à compreensão do mundo.

Ao traduzir mímese por imitação, o ensaísta explica algo que é mesmo introdutório sobre o tema, e, não obstante, muitas vezes difícil de ensinar/aprender em sala de aula: “A imitação não é fotográfica. Ela configura o concreto, mas exibe o universal.” (1972, p.7) Comento as duas frases em três enfoques.

Primeiro: observe meu leitor o quanto essa lição deve a Aristóteles, que concluía em sua Poética que a poesia, por ser mímese e, desse modo, tratar não do que aconteceu, mas do que poderia ter acontecido, mostra-se mais universal do que a história, registro de fatos particulares.

Segundo: Ouso afirmar que a assertiva “A imitação não é fotográfica” requer alguns ajustes, não tendo sido, a meu ver, uma frase conceitualmente feliz. Isso porque também a fotografia poderia ser considerada uma mímese, configurando o concreto e exibindo o universal. Por exemplo, a imagem icônica abaixo significa muito mais do que um homem diante de tanques de guerra numa praça chinesa:


Podemos também mencionar, a propósito, o célebre quadro de René Magritte, no qual a reprodução (ou a imitação) de um cachimbo apresenta-se como quase fotográfica. Porém o pintor, numa tirada teórica bem humorada, alerta o observador: “Ceci n’est pas une pipe” (“isto não é um cachimbo”), são formas, perspectivas e cores que iludem seus olhos humanos, dando-lhe a sensação de enxergar na tela esse objeto.


Para José Guilherme Merquior, à revelia de sua frase em “Natureza da lírica”, a imitação/mímese não necessariamente precisa ser fotográfica, e, embora não o seja, configura o concreto e exibe o universal.

Terceiro: o conceito sobre o qual nosso autor se debruça nesse ensaio também lhe permite, digamos, vislumbrar uma das razões da universalidade da literatura. Por que, em pleno século XXI, ainda lemos e gostamos de ler Cervantes, Shakespeare, Homero, autores que abordaram episódios, comportamentos, ambientes para nós, hoje, aparentemente tão remotos no tempo? A equação que nos parece responder a isso se propõe nestes termos: “O mundo ‘concreto’ aberto pela obra [literária] resulta de um jogo complexo entre os universais do médium (linguagem), a particularidade a que a imitação aspira, e, finalmente, o sentido de universalidade que ressuma dessa mesma imitação.” (1972, p.8) Ou ainda, de forma lapidar: “Por uma espécie de astúcia da mímese, a representação do singular logra significação universal.” (1972, p.8)

Essa significação universal, tomada no ensaio como finalidade da poesia e da literatura, constitui o valor literário maior para o pensamento crítico merquioriano. Pois o autor de O marxismo ocidental, via de regra, cobrou dos escritores o acento da dimensão ética dentro da dimensão estética, a partir da “obtenção de um conhecimento especial sobre aspectos ‘universais’ da vida humana”. (1972, p.12) E esclarece: “Ora, a astúcia da mímese indica a causa final do literário, que guarda o segredo da universalidade das suas obras: essa capacidade de interessar aos homens em qualquer tempo e lugar.” (1972, p.12)


Referências bibliográficas

LIMA, Luiz Costa. “Introdução geral” in: LIMA, Luiz Costa (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. pp.7-49.

MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese: ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.


NUNES, Benedito. “Crítica literária no Brasil, ontem e hoje” in: MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da crítica. 2ª ed. São Paulo: Senac; Itaú Cultural, 2007. pp.51-79.

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