A
voga do neoliberalismo nos anos 80, sendo seu mentor teórico maior o economista
austríaco Friedrich Hayek e seus mais ilustres praticantes o presidente
norte-americano Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret
Thatcher, parece ter sido um dos grandes estímulos para que a confusão entre
uma parte, o ideário neoliberal, e o todo, a tradição longeva e multifacetada
do liberalismo, prosperasse e permanecesse durante tão longo tempo, até hoje.
Talvez
por isso, além do fato de ter contribuído na campanha eleitoral à presidência e
se envolvido com o governo de Fernando Collor de Mello, vira e mexe se
considere José Guilherme Merquior um entusiasta garoto-propaganda do neoliberalismo.
Com a palavra, o próprio autor de O
argumento liberal:
O
neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos
que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário para a
criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de
gerar, por si só, toda uma série de
requisitos e oportunidades para o
exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se
suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades
modernas, deixar tudo entregue a seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a
minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só
pelo mérito. (1983, p.94-95)
Uma
das primeiras páginas de As ideias e as
formas também distingue a espécie de liberalismo em nome da qual o
diplomata e membro da ABL militou na última década de sua vida:
Qualquer que seja o sentido da voga
neoliberal em outros quadrantes, entre nós [brasileiros] não pode haver liberalismo autêntico que não seja, essencialmente, um social-liberalismo.
E isso já impõe a serena ultrapassagem da antiga querela contra o estado. Num
país com as nossas carências de capitalização e de serviços sociais, o
antiestatismo sistemático não tem como ser um combate liberal, pelo simples
motivo de que sua aplicação atrofiaria ou imobilizaria no Estado um dos
princípios, senão o principal instrumento de criação efetiva de liberdades – de
oportunidades de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população. A crítica “liberal” que não tem olhos de
ver isso não é crítica – é preconceito; não visa a promover a liberdade – visa
a preservar o privilégio. (1981, p.28-29)
Não
terá passado despercebido ao leitor que as duas passagens acima revelam um
posicionamento que chega a surpreender tamanha sua atualidade na conjuntura
nacional. De fato, se esse social-liberalismo, na verdade, não se viu em quase
nada correspondido na gestão collorida,
pode-se ao menos verificá-lo como orientação geral dos governos de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002) e de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Afinal,
pontuo, sem grandes pretensões, que: a) o enxugamento da máquina pública e o
equilíbrio fiscal do presidente tucano consistiriam na tentativa de reduzir a
dimensão do Estado, conjugada com um assistencialismo que se efetivou, p. ex.,
no projeto Bolsa Escola e no assentamento de número razoável de trabalhadores
rurais; b) o presidente petista, por sua vez, ampliou e consolidou a política
assistencialista, conquanto voltasse a hipertrofiar a máquina estatal; c) fosse
como fosse, ambos os administradores federais mantiveram e até mesmo fomentaram
a economia brasileira no eixo do mercado capitalista globalizado.
Essa
mesma articulação, que procura resultar no equilíbrio entre um Estado de
bem-estar social, de matriz keynesiana, e condições as mais favoráveis possível
à iniciativa privada, agravou a confusão conceitual. Para Ricardo Antunes,
autor de A desertificação neoliberal no
Brasil (2005; a 1ª edição desse livro é de 2004), o social-liberalismo não
passaria de um “eufemismo designado aos socialistas e social-democratas que praticam o neoliberalismo”. (2005,
p.165) Opinião idêntica à que lemos em O
social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal (2013),
de Rodrigo Castelo, segundo o qual o social-liberalismo consistiria numa “variante ideológica” do neoliberalismo.
(2013, p.376)
Saliente-se
que ambos os autores citados acima declaram-se marxistas. Nesse mesmo
posicionamento político-intelectual, Gilberto Felisberto Vasconcellos rotulou,
com ironia, o pensamento merquioriano de “neoliberalismo iluminista”, (2004,
p.29) no livro O Brazil no prego
(2004).
Talvez
devamos reconhecer que muitos empreendimentos social-liberais, seja no Brasil,
seja no mundo, avancem, de fato, para dentro das fronteiras do neoliberalismo. Isso
não implica, todavia, que se trate necessariamente do disfarce de um lobo (o
neoliberalismo) sob pele de cordeiro (o socialismo). É que a própria teoria do
social-liberalismo prevê uma margem de manobra que permite ao poder público, em
vista das conjunturas diversas, pender seja mais para este lado, seja mais para
aquele, seja mais para um outro.
O
filósofo político italiano Norberto Bobbio, notório defensor do
social-liberalismo, tinha consciência dessa mobilidade e o que dela decorria: “Deve-se
saber quanto de liberalismo e quanto de socialismo, na prática, pode-se pactuar
em uma determinada situação. A
dificuldade está, justamente, em determinar a dosagem.” (em entrevista
concedida em 1994 a Luiz Carlos Bresser-Pereira; link nas referências
bibliográficas)
A
veemência, muito mais retórica e sloganesca do que propriamente crítica, com
que os marxistas atacam o social-liberalismo parece advir do que José Guilherme
Merquior os acusava, por sua vez, de índole dogmática e autoritária. Nesse
caso, a teoria política transmutou-se em fôrma,
na qual a realidade, à revelia de toda e qualquer contingência, deve ser
encaixada, ainda que a golpes de foice e martelo.
O
pensamento merquioriano, de índole iluminista (mas será mesmo que também neoliberal?),
se valeu do que muito bem definiu o célebre jurista Miguel Reale – de uma
racionalidade concreta. Quer dizer, Merquior não se aferrou ou procurou não se aferrar
a uma ideologia, engessada por princípios de ordem idealista. O intelectual,
que se lançou ao público como teórico e crítico literário ligado a certa
tradição marxista nos anos 60, não se permitiu fingir desconhecer os insucessos
econômicos, os cabrestos culturais e as atrocidades sociais que todos os
exemplos socialistas-comunistas reais (União Soviética, China, Camboja, Cuba,
Romênia etc, etc, etc) apresentaram ao longo do século XX. Contudo, a cartilha
do neoliberalismo não lhe parecia ser a via de solução para países como o
Brasil, povoado de discrepâncias sócio-econômicas.
Um
socialista-comunista pensa, no limite, que o mundo deve tornar-se inteiro
socialista-comunista. Um neoliberal, que o mundo deve tornar-se inteiro
neoliberal. O social-liberalismo pressupõe um leque maior de opções e
adaptações por que cada contexto nacional ou mesmo regional clama. Tanto a
ambição de remodelar a natureza humana, como o quer o socialismo-comunismo,
quanto a permissividade concedida à natureza humana pelo neoliberalismo, seriam
caminhos de contornos antidemocráticos.
O
social-liberal José Guilherme Merquior sabia que não há nem pode haver soluções
simplistas e apriorísticas neste mundo tão complexo e contraditório.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil
(Collor, FHC e Lula). 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 2005.
CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo: auge e crise da
supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
MERQUIOR, José
Guilherme. As ideias e as formas. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. O argumento liberal. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
VASCONCELLOS, Gilberto
Felisberto. O Brazil no prego. Rio de
Janeiro: Revan, 2004.
Link da entrevista de Norberto Bobbio: http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/NorbertoBobbio.htm