O
jornalista, crítico literário, poeta e tradutor carioca Ivan Junqueira, falecido em 2014 aos quase 80 anos de idade,
considerava José Guilherme Merquior um dos maiores analistas de literatura no
Brasil. Sua apreciação altamente positiva sobre a obra merquioriana está
registrada em, pelo menos, três prefácios: à segunda edição de Razão do poema (1996) e de A astúcia da mímese (1997) e à terceira edição de De Anchieta a Euclides (1996),
todas pela editora Topbooks. O material foi coligido em O fio de Dédalo (1998), reunião de ensaios do célebre tradutor de
Baudelaire e T. S. Eliot, sob o título “A astúcia de Merquior”, que consta na
sessão “Do ensaísmo e da crítica”.
A
sequência principia com o prefácio a De
Anchieta a Euclides (primeiramente publicado em 1977). Para Ivan Junqueira,
essa “breve [e parcial] história da literatura brasileira” contribui
especialmente pelo fato de que, nela,
Merquior,
mais do que qualquer outro historiador
de nossas letras, faz com que a literatura brasileira dialogue não apenas
com as literaturas de outras línguas, mas também com o substrato das ideias que
as informam e iluminam ao longo das etapas de sua evolução estética e
doutrinária. (1998, p.214)
Com
isso, o autor falecido em 1991 teria atendido plenamente ao preceito do “senso
da forma” que ele mesmo estabelece em “Ao leitor”, texto introdutório do livro.
Mas a obediência merquioriana aos outros dois preceitos, o da “seletividade” e
da “acessibilidade”, também recebe aplauso de Ivan Junqueira. Pois este, frente à tentação de abordar o maior número possível de escritores brasileiros
do período entre o início de nossa colonização e o início do século XX, assim
avalia o reduzido grupo que encontramos em De
Anchieta a Euclides: “E para que mais, quando se sabe que, até o fim dos
Oitocentos, nossa literatura está vincada de mediocridade ou de embriões que,
na imensa maioria das vezes, não chegam a vingar?” (1998, p.215)
O também imortal da ABL, antigo ocupante
da cadeira 37, chega a comparar a linguagem de Merquior, empregada numa obra, para
todos os efeitos, didática, com a de outros historiadores da literatura, supostamente
menos acessíveis ao grande público. A esse propósito, evoca os nomes de Sílvio
Romero e José Veríssimo. Não me parece, verdade seja dita, um bom parâmetro.
Trata-se de dois críticos do século XIX, cuja concepção de crítica e de escrita
não permite a devida comparação. Ivan Junqueira convence mais no cotejo entre
Merquior e – aí sim – comentaristas contemporâneos ou mais próximos no tempo do
autor de O véu e a máscara, dentre os
quais cita Afrânio Coutinho, Astrojildo Pereira, Dirce Cortes Riedel. Pelo
menos no tocante a Machado de Assis,
[...]
Merquior os supera a todos.
Supera-os, de início, quando observa que “a grandeza de Machado de Assis foi ter
posto os instrumentos forjados no primeiro Oitocentos [...] a serviço do
aprofundamento filosófico de nossa visão poética, em sintonia com a vocação
mais íntima de toda a literatura do Ocidente”. E excede-os, ao fim e ao cabo, quando decifra o enigma talvez mais
fundo do gênio machadiano: “Deste modo, Machado de Assis, que desprezou até
o fim a literatura localista e folclórica, que universalizou mais que ninguém a nossa arte literária, permaneceu
fiel a uma componente medular da alma brasileira”. (1998, p.217-218)
Sobre
o livro de estreia de Merquior, Razão do
poema (1965), conquanto passados mais de 30 anos até a reedição pela Topbooks, o resenhista verifica no
volume “uma surpreendente aura de louçania exegética, de atualidade
crítico-literária e de coerência estético-doutrinária”. (1998, p.218) Também
sublinha os “estreitos vínculos com o pensamento marxista” (1998, p.219) de um
jovem autor que, duas décadas depois, publicaria O marxismo ocidental, deste autodecretando-se figadal adversário.
Considerado Razão do poema “um dos
mais altos momentos a que chegou a crítica literária entre nós”, (1998, p.221)
o livro ainda exemplificaria um ensaísmo marcado por “invejável robustez
literária, essa mesma robustez que vimos no passado em Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux,
Augusto Meyer ou Sérgio Buarque de Holanda, e que hoje vemos em Wilson Martins,
Benedito Nunes, José Paulo Paes, Davi Arrigucci e nesse jovem crítico Antônio
Carlos Secchin”. (1998, p.220-221)
É
curiosa a menção a Wilson Martins em torno da linguagem merquioriana. Isso
porque, no segundo volume de A crítica
literária no Brasil, Wilson Martins lançou farpinhas como esta, justamente
alvejando Razão do poema: “Escrevendo
melhor ou com mais clareza do que José Guilherme Merquior [...]” (1983, p.713) Adelante:
Por
fim, acerca do livro que inspirou o título a essa série de resenhas, Junqueira
observa que A astúcia da mímese
(1972) esclarece a contento a reflexão em torno da mímese na contemporaneidade
(opinião, diga-se de passagem, não
compartilhada por Luiz Costa Lima, o teórico brasileiro que mais tem se
debruçado sobre o assunto). Também elogia a análise de poemas dos diversos
autores, estrangeiros (como Rainer Maria Rilke) e nacionais, especialmente o
mais longo ensaio sobre João Cabral de Melo Neto, intitulado “Nuvem civil
sonhada”. Todavia, Ivan Junqueira não cala uma ressalva contundente:
A
astúcia de Merquior só tropeça quando, no final do volume, de volta a mobilizar
todo o seu opulento aparato para avalizar a qualidade dos versos de Capinan e
de Francisco Alvim. Concordamos com Merquior quando diz que ambos fogem “a essa
discurseira, a esse lamentável alto-falante de coisas óbvias, de clichês
demagógicos e de platitudes esquerdeiras” que deitaram a perder considerável
parte da messe de nossa poesia de participação social. Mas o exemplário que nos
oferece o autor no afã de atestar que Capinan e Alvim se alçaram um pouco além
dessa aluvião palavrosa não passa, na maioria das vezes, de um acervo de
banalidades, de uma poesia que, transcorrida apenas uma década, envelheceu de
forma irremediável. (1998, p.226)
Vinte
anos depois de publicado O fio de Dédalo,
quem estaria com a razão: Ivan Junqueira ou José Guilherme Merquior?
Fica a pergunta.
Referências bibliográficas
JUNQUEIRA, Ivan.
“A astúcia de Merquior” in O fio de
Dédalo: ensaios. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1998. pp.214-226.
MARTINS, Wilson.
A crítica literária no Brasil:
1940-1981. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2º vol.
Nenhum comentário:
Postar um comentário