Para o bimestre abril-junho de 1992, a antiga revista Tempo Brasileiro dedicou seu número 109
para exclusivamente homenagear José Guilherme Merquior, havia pouco falecido.
Organizado por João Ricardo Moderno, o volume apresenta, em 149 páginas, nove
textos que, no conjunto, abordam e discutem o pensamento merquioriano, com
destaque para o tema do liberalismo, além de depoimentos de ordem biográfica
registrados por quem conviveu com o pensador e diplomata fluminense. Reúnem-se
ainda nessa publicação, como abertura, “O renascimento da teoria política
francesa”, ensaio do próprio Merquior, e um apêndice de autoria de sua esposa,
Hilda Merquior.
Dadas essas breves informações, qualquer um se convencerá
de que se trata de uma valiosa referência bibliográfica da hoje não mais
pequena fortuna crítica a respeito do vasto legado intelectual merquioriano. E
o leitor não vai encontrar, nessa revista, apenas salvas de palmas, merecidas –
está claro –, ao homenageado. A ele – ou melhor, à sua obra – também se dirigem
ressalvas contundentes, algumas das quais, permitam-me dizê-lo, julgo pertinentes
e outras injustas.
Em “Merquior, Lévi-Strauss e a modernidade”, de Maria
Heloísa Fénelon-Costa, por exemplo, o autor de Razão do poema será criticado por seu conservadorismo estético, que
o teria impedido de avaliar mais sabiamente (e, por vezes, mesmo conhecer bem) a
arte contemporânea. Disso convencida, Fénelon-Costa escreve:
Denuncia-se em Merquior o horror à instabilidade e à
dinâmica do tempo destruidor de valores já agora contestados, representativos
de um passado que deseja precursor de uma duração perfeita, continuando vivo e
imutável como planta que se detivesse em seu crescimento sem mostrar o
envelhecer decadente. (p.109)
O organizador do número da Tempo Brasileiro, contudo, desfecha os mais fortes golpes. João
Ricardo Moderno concentra-se no segundo livro do homenageado, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e
Benjamin (1969), que, a propósito, adquiriu há poucas semanas sua segunda
edição pela editora É Realizações. Portanto, a resenha de Moderno, intitulada
“Adorno e o Kulturoptimismus de
Merquior”, encontra hoje ocasião mais do que oportuna para reivindicar leitura.
O termo “Kulturoptimismus” (otimismo
cultural, em alemão) faz referência a seu antônimo (Kulturpessimismus), ao qual José Guilherme Merquior frequentemente
recorre para (des)qualificar a Escola de Frankfurt e outras linhas de
pensamento novecentistas. Nesse caso, adivinha-se no título um tom irônico que
se converterá, no avançar dos parágrafos, em contestações abertas ao livro e à
ensaística merquioriana.
De fato, João Ricardo Moderno acredita que, do ponto de
vista da consistência analítica, a produção de Merquior decai na década de 1980.
Isso devido ao viés político-governamental por onde o membro da Academia
Brasileira de Letras, mais do que nunca, se embrenhava, no intuito de
propagandear os valores liberais, inclusive no campo artístico e literário. De
qualquer forma, Moderno vem a apontar falhas já em Arte e sociedade..., segundo o comentarista, repetidas em outros
livros, pois “[...] desde sempre sua pesquisa [de Merquior] encontrou-se diante
de um impasse: a ausência de objeto.” (p.87)
Essa acusação parece-me ferir um aspecto
chamativo da obra merquioriana, constituída em larga medida por coletâneas de
ensaio e predominantemente escrita em forma ensaística. Talvez caiba fazer a
mesma acusação a outro título notório, o Verso
universo em Drummond, a famosa tese que o diplomata defendeu em 1972, pela
Sorbonne. Afinal, que tese teria defendido nesse trabalho não nos fica
propriamente claro, o que, aliás, tem despertado em alguns o entendimento de
que não se trata aí uma contribuição original.
O espírito racionalista de Merquior também não satisfaz a
João Ricardo Moderno, então professor de filosofia da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), que define:
O Kulturoptimismus
merquioriano é a base da sua estrutura política, econômica, psicológica e
cultural. O Kulturoptimismus
merquioriano não foi atingido pela dúvida cartesiana. Tendo a racionalidade
merquioriana como base o otimismo-acima-de-quaisquer-suspeitas, ela se deixou
conduzir no sentido da irracionalidade. O otimismo por si só não é
apodicticamente verificável como o puro guardião da razão. O irracionalismo do
otimismo é pretender para si uma identidade imediata com a razão, quando que a
razão é pura mediatidade. (p.95)
Não sou formado em filosofia como Moderno e Merquior, mas
entrevejo nas linhas acima a caricatura de um pensamento que foi
otimista perante as realizações e promessas da modernidade e da sociedade
burguesa, especialmente nos anos 80, mas não como se vivesse no paraíso edênico
de Cândido, o célebre personagem de Voltaire. Na verdade, o Kulturoptimismus em questão partia, não de uma
ingenuidade besta, e sim de uma vigorosa criticidade. E essa virtude implicava recepcionar
todo e qualquer produto intelectual, por maior que fosse deste o prestígio, com
independência espiritual. Não me parece ser o que exatamente acontece: tanto com
João Ricardo Moderno, quem contesta o ensaísta de Arte e sociedade... em nome da validade “irrestrita” da filosofia de
um “Adorno, meu amigo”, (p.97) quanto com Maria Heloísa Fénelon-Costa, que abraça
com mais ingênuo otimismo os paradigmas estéticos da pós-modernidade e do culturalismo.
Antonio Gomes Penna, professor de Merquior no Instituto La-Fayette,
considerado pelo ex-aluno seu pai intelectual, mescla notícias biográficas e comentários
sobre a abordagem merquioriana da psicanálise e da sociologia, em “Minha convivência
e meu aprendizado com Merquior”. Com isso, o psicólogo traça uma síntese do percurso
da vida e obra do homenageado, o que também fazem com brevidade Francisco Rezek,
em “Depoimento sobre José Guilherme Merquior”, e Joaquim Ponce Leal, em “José Guilherme
Merquior”.
Sergio Paulo Rouanet assina “Merquior: obra política, filosófica
e literária”. O texto é aquele que encontraremos, modificado, em As razões do iluminismo (1987), em homenagem
realizada na ABL em 2001 e, mais recentemente, na edição de O liberalismo: antigo e moderno (2015) pela
É Realizações, onde, aliás, também constam o texto de Joaquim Ponce Leal, “O
liberalismo militante de José Guilherme Merquior”, de Celso Lafer, e “Merquior
e o liberalismo”, de Hélio Jaguaribe.
O liberalismo, sobre cujas tradições e postulados Merquior
tanto refletiu, com o engajamento de um genuíno e destemido liberal na sua última
década de vida, é a tônica desses quatro textos mencionados, assim como o de Antonio
Paim, “Merquior e a questão do liberalismo social”. Considerando conjuntamente
os cinco, às vezes o emprego de neoliberalismo como sinônimo do novo ramo liberal
– o social-liberalismo – a que o autor de O
véu e a máscara se filiou pode confundir e desinformar o leitor. Pois, definitivamente,
José Guilherme Merquior era um crítico firme da doutrina econômica de Friedrich
Hayek.
Também deve incomodar o leitor o motivo da ausência. Em torno de O liberalismo: antigo e moderno: “É de lamentar-se, [...] que [...]
não tenha contemplado o liberalismo brasileiro [...] nem o pensamento e a atuação
chilenos”; (p.74) em torno da obra como todo de Merquior: “É de notar-se [...] a
ausência de menções a artistas ou teóricos de arte latino-americanos (até mesmo
brasileiros) [...]”; (p.110) Nada mais fácil do que apontar ausências em trabalhos
alheios.
Com “O renascimento da teoria política francesa”, ensaio-resenha
de abertura da revista, o próprio José Guilherme Merquior saúda o surgimento das
primeiras intervenções de Luc Ferry e de Alain Renaut, pensadores que se desviaram
dos caminhos percorridos pelos estruturalistas e pós-estruturalistas, para resgatar
a legitimidade da razão como instrumento cognitivo fundamental e do liberalismo
como orientação das sociedades rumo à consumação dos valores de progresso e liberdade. Trata-se
de um dos últimos textos que Merquior escreveu.
O apêndice de Hilda Merquior é uma singela participação no fórum
batizado com o nome de seu marido e promovido pelo Instituto Tancredo Neves. O evento
ocorreu em novembro de 1991, menos de um ano após o falecimento do grande crítico
de literatura, de arte e de ideias.