Consta em Razão do
poema (1965) um dos textos mais virulentos de José Guilherme Merquior.
Trata-se do “Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas
de 45”, datado de 1962.
Como se vê, o título não adia nem disfarça a reprovação agressiva
ao grupo, cujo programa e realizações o então jovem crítico contrasta com os
feitos do modernismo de 1922, o de 1930 e com a obra de João Cabral de Melo
Neto. O propósito dessa crítica-manifesto não era apenas de descer a lenha na
poesia que, no seu conjunto, parecia a Merquior afirmar-se como alternativa e
esgotamento do modernismo, mas também de proclamar a perenidade do legado
modernista e, por fim, de salientar as diferenças poéticas e qualitativas de
João Cabral, segundo alguns, integrante daquela mesma geração de 45.
As convicções expostas em “Falência da poesia...” replicam
as primeiras linhas do ensaio imediatamente anterior de Razão do poema, no qual se brada “a certeza de que o espírito de 22
se conserva absolutamente vivo, e ainda mais vivo, porque depois dessa data
[1922] e da fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou
verticalmente a poesia brasileira”. (2013, p.40)
Nesse princípio da década de 1960, Merquior enxergava na
“saudável penetração brasileira”, na “proximidade da terra e vizinhança do
povo” uma das mais importantes conquistas do modernismo de Mário de Andrade,
Cassiano Ricardo, Oswald de Andrade & Cia. (2013, p.40) Em parte essa
perspectiva de critério acompanharia José Guilherme Merquior por toda a vida: afinal,
para ele, o melhor caminho da poesia sempre será o “da intimidade com o social”,
“na direção dos grandes temas objetivos, sociais e filosóficos que a preparação
da linguagem dos mestres do modernismo tornou possível e imperiosa”. (2013,
p.50) Por outro lado, arrefecerá a associação desse caminho e dessa direção
prescritos com uma “urgente precisão de nacionalidade”. (2013, p.53)
Em “O Brasil no limiar do século 21”, conferência que proferiu
em Paris pouco antes de sua morte, Merquior ponderava que, durante a primeira
metade do século passado,
[a] problemática da identidade nacional [...] era
inteiramente normal e legítima [...] e que era mesmo necessária para nos
proporcionar a consciência de nossa realidade étnica, cultural, religiosa,
filosófica... [...] E agora, digamos um meio século mais tarde, [...] estamos
em via de deixar essa problemática, de deslocá-la simplesmente para uma nova
problemática, que já não é mais a problemática da identidade, mas a da integração
[tanto das camadas mais pobres a um melhor padrão de vida quanto do Brasil à
América Latina e à “economia internacional”]. (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1507200107.htm)
Pois bem. Na visão de muitos críticos de meados do século
XX, o fato de João Cabral ter começado a publicar sua obra amadurecida, cujo
marco inicial foi O engenheiro,
precisamente em 1945, evidenciando nela especial preocupação formal,
justificou, conforme critérios cronológico e estético, sua inserção na geração
de 45, que em linhas gerais se opunha ao acusado provincianismo nacionalista e
ao suposto desleixo formal dos modernistas dos anos 20. Na Antologia da nova poesia brasileira, organizada por Fernando
Ferreira de Loanda, na qual se coligem versos dos poetas de 45, vistos estes
com iguais ou semelhantes concepções e propósitos, encontramos poemas de João
Cabral de Melo Neto. E o quarto capítulo, dedicado à “poesia modernista na
década de 40”, da História da poesia modernista
(1991), de Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, ensina que o autor de A educação pela pedra integra a geração
de 45, ao lado de André Carneiro, Ledo Ivo, Bueno de Rivera e Domingos Carvalho
da Silva. A autora fundamenta essa inclusão, entendendo que “45 foi uma geração
que nasceu oprimida pelo estado novo [sic], pelas ameaças de prisão, exílio e
tortura, desesperançada com a falta de perspectiva do presente”. (1991, 76) Sendo
assim:
Só um contexto histórico tão tenso e opressor e um grupo de
poetas tão preocupados com a forma poderia ter gerado um poeta como João
Cabral, sério, preocupado, obsessivo, torturado que radicaliza a plataforma
estética de sua geração. Sua poesia se endureceu tanto que se transformou em
arma para lutar contra a opressão e a ditadura. (1991, p.76)
Todavia, esse enquadramento geracional da poética cabralina
parece ter sido, desde cedo, controverso. Anazildo Vasconcelos da Silva, em
tese defendida a 1977 logo convertida em livro (1978), manifestando ressalvas
relativas à geração de 45, informa, pelo contrário, que “de imediato
identificado com a poética de 22, João Cabral de Melo Neto tem sido invariavelmente
excluído do grupo de 45”. (1978, p.55)
Conquanto, em comentário de 1982 coligido em O elixir do apocalipse (1983), tenha
procurado se retratar de certas generalizações e juízos apresentados vinte anos
antes naquele ensaio de Razão do poema,
José Guilherme Merquior angariou para toda a vida e depois desta uma “fama –
justificada – de detrator da geração de 45”. (1983, p.172) Até porque o
“Falência da poesia...” converteu-se, logo, num daqueles textos incontornáveis
da fortuna crítica acumulada em torno dos poetas dessa geração.
Diante desse ensaio de juventude, cabe a pergunta: por que
tamanha virulência? Na ensaística merquioriana, é patente o disseminado caráter
assertivo a ponto, por muitas vezes, da agressividade, postura decorrente da
criticidade e da autonomia de pensamento do autor e de seu habitat discursivo, que foi a polêmica. Mas de fato esse ensaio
republicado em Razão do poema figura,
ao lado, por exemplo, de “O estruturalismo dos pobres”, como uma das mais crispadas
passagens merquiorianas. Por que tamanha birra da geração de 45, expressa de
novo, em dose menos concentrada, em texto que integrará O fantasma romântico e outros ensaios, de 1980?
Uma primeira motivação para tal reação do autor poderia
residir na quase contemporaneidade da poesia dessa “dege(ne)ração”, quando José
Guilherme Merquior escreve sua – acho que posso chamá-la assim – crítica-manifesto.
Naturalmente, um incômodo próximo a nós incomoda-nos mais do que um incômodo
distante no tempo. Acresceria que parcela da geração de 45 decretara a
necessidade da retomada de uma concepção criativa classicizante –
neoparnasiana, segundo Merquior e outros autores –, tendo vozes importantes do
grupo refutado o legado modernista especialmente da década de 1920.
Ao longo de sua vida intelectual, José Guilherme Merquior cada
vez mais se orgulharia em se identificar como um herdeiro de Voltaire, na
condição de liberal neoiluminista, e, sobretudo quando jovem, de ter se
instruído, em matéria de linguagem, pela iconoclastia de Mário de Andrade e
outras proeminências das primeiras gerações de nosso modernismo. Convicto da
importância e da validade do legado desses poetas, Merquior devia decodificar
nas rejeições de 45 uma espécie de ataque à sua linhagem de crítico de
literatura e de ideias.
Outra justificativa da bronca deve referir-se à qualidade
poética da geração de 45, significativa e sinteticamente descrita na citação do
verso famoso de Manuel Bandeira, que lemos nos últimos parágrafos do ensaio de
Merquior: “a poesia que poderia ter sido e não foi”. (2013, p.58) Adonias
Filho, no prefácio à Antologia da nova
poesia brasileira, destaca que os versos da geração de 45 ansiaram por
classicizar o modernismo, donde, em muitos casos, o retorno sistemático à
regularidade métrica, à rima, ao léxico e à sintaxe solenes, em contraste com o
suposto desleixo dos modernistas de 1920. Também Fernando Ferreira Loanda
situou-se entre os que enxergavam uma “vizinhança” entre os poetas de 45,
marcados pelo “rigor formal em proveito de uma temática que se interioriza,
[...] em busca dos extremos valores humanos”, (1970, p.15) e “o clássico
modernista” de um Cassiano Ricardo e de um Carlos Drummond de Andrade, os quais
“não cedem o mínimo à estrutura e à expressão na tessitura de um verso
incensurável”. (1970, p.15)
Ora, José Guilherme Merquior saudou, no próprio Razão do poema e em textos posteriores, o
modernismo classicizado de Claro enigma
e de muitos versos de Murilo Mendes. Contudo, a sintonia de propostas daria
frutos de sabores distintos: para Merquior, a classicização do modernismo de
Drummond, de Murilo e de Cabral “foi”; o de 45 “poderia ter sido, mas não foi”.
Ou, palavras do próprio Merquior, “o lirismo bem Kitsch da maior parte da geração de 45” teria, na verdade,
efetivado uma “desmodernização da poesia”.
(1983, p.146)
Há quem, mais recentemente, conteste julgamentos e
compreensões como a de Merquior em torno da geração de 45, alegando a
heterogeneidade de um grupo que, por isso mesmo, sequer deveria ser denominado
de “geração”. No caso específico de “A falência da poesia...”, não se pode
acusar seu autor de ignorar as distinções poéticas, mesmo qualitativas, entre
um e outro poeta aí comentado. Concordando-se ou não com a aplicabilidade
conceitual ou a validade ontológica do termo geração para agrupar Ledo Ivo,
Domingos Carvalho da Silva, Bruno Rivera & Cia., o fato principal é que
José Guilherme Merquior alveja determinada postura que ele verificou no
comportamento literário de alguns desses nomes que estrearam na década de 1940.
Inicialmente, a referência de avaliação adotada não apenas
por Merquior, mas por quase todos os críticos que emitiram opinião, favorável
ou desfavorável, acerca da geração era o modernismo. Dentre os primeiros a
recepcionarem os então novos poetas, Alceu Amoroso Lima classificava-os em 1947
como neomodernistas, dada a continuidade, segundo o crítico, que pareciam estabelecer
em relação à literatura de entre 1920 e 1930. No mesmo ano, Sérgio Milliet assinalava
em contrapartida o antimodernismo de 45, diagnóstico endossado por José
Guilherme Merquior.
Antonio Candido dará depoimento muito interessante a
respeito do tema. Confessando ter acompanhado aqueles leitores e críticos que,
nos anos 30 e 40, se animavam “mais com o modernismo como crítica do que com o
modernismo como invenção”, Candido aponta na geração de 45 mudança do acento
político dessa recepção do legado dos primeiros modernistas, os quais teriam
sido atacados pelos então novos poetas, sobretudo, “por motivos estéticos”. (2004,
p.74)
Fosse como fosse, também João Cabral de Melo Neto interveio
ele mesmo no debate, no qual se tocava, tantas vezes, no seu nome. Em quatro
artigos veiculados pelo Diário carioca,
em 1952, conjunto intitulado “A geração de 45”, o poeta avaliou o grupo, de
modo a não se identificar, pelo menos explicitamente, como um de seus
integrantes, cujo “denominador comum”, aliás, ainda não havia sido
“estabelecido com a desejada precisão”. (1999, p.741)
No primeiro dessa série de textos, Cabral destaca a
“capacidade polêmica de muitos desses poetas novos”, “gosto pelos bate-bocas da
vida literária” (1999, p.741) que provavelmente poderá ter incentivado as
reações merquiorianas no mesmo diapasão discursivo. Contudo, o foco da
avaliação se volta para a acusada “importância limitada” da geração de 45,
“pelo fato de não se haver voltado violentamente contra a poesia que a
precedeu”, desse modo, “[deixando de criar] uma nova direção estética para a
Literatura Brasileira”. (1999, p.742) Defensor de outra cobrança crítica, e
mantendo a referência do modernismo da década de 1920, João Cabral aproxima os
poetas de 45 aos de 30, dos quais “não me consta que alguém, em nome da
necessidade de renovação pela revolta, houvesse exigido [...] o retorno ao que
existia antes de 1922”. (1999, p.742) Sendo assim:
A atitude dos
poetas da geração de 1945 também não podia ser uma atitude de revolta. Na
verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo modernismo longe estão de
esgotadas. Os poetas dos anos 30, juntamente com os poetas de 1922 que puderam
superar o combate pelo combate, estabeleceram dentro desse território, núcleos
de exploração importantes. Mas se alguns desses núcleos mostram-se agora de
fogo morto, se alguns dos exploradores mostram-se cansados ou dispostos a
abandonar o terreno, nada disso é prova contra a riqueza que ali ainda existe. (1999,
p.743)
João Cabral identifica os poetas de 45 mais como “uma
geração de extensão de conquistas” do que “uma geração de invenção de
caminhos”, (1999, p.744) não se tratando aí, necessariamente, de uma atribuição
de importância menor em relação a 22. Para Cabral, aliás, o pós-guerra parece
ter instaurado uma novidade na história da literatura: já não poderia haver
“uma definição geral de poesia, válida para nossa época”, mas apenas
“definições particulares, individualistas”, (1999, p.746) de modo a acentuar-se
a relatividade de qualquer decreto poético com pretensão a aquiescência
coletiva, a partir de então. Donde ainda, segundo o poeta nordestino,
mostrar-se impraticável, nessa matéria, qualquer “atitude radical de revolta”. (1999,
p.747) Em tais circunstâncias, à crítica não caberia cobrar “desses poetas de
1945, desde o primeiro momento da luta, uma completa vitória”. (1999, p.747)
Ao que parece, se o poeta-engenheiro se sentia identificado
com a chamada poesia de 45, com esta ele não se identificava plenamente. E José
Guilherme Merquior prepara a conclusão de “Falência da poesia”, protestando nestes
termos:
Não sabemos se é
por ingenuidade ou malícia que se situa João Cabral de Melo Neto entre os
autores dessa geração. Deve ser por uma tola mistura de ambas as coisas. Mas a
sua subtração do grupo é obrigatória. Sua atitude de rigor, de concentração é
toda consequente e penetrante: nada tem que ver com as camisas de força
parnasianas desses senhores. Seu verso curto é também único. Seu realismo está
a quilômetros de distância das pobres fantasias dessa versalhada; e a coragem
singular, grandiosa e áspera na sua virilidade, com que enfrentou e venceu a
tarefa da poesia social brasileira faz dele um cavaleiro solitário entre esses
ilustres conformistas. Há, portanto, entre um e outros, apenas uma incômoda
convergência cronológica. (2013, p.58)
Referências
bibliográficas:
CANDIDO,
Antonio. Recortes. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.
LOANDA,
Fernando Ferreira de (org.). Antologia da
nova poesia brasilera. 2ª ed. Rio de Janeiro: Orfeu, 1970.
MELO
NETO, João Cabral. “A geração de 45” in Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1999. pp.741-752.
MERQUIOR,
José Guilherme. O elixir do apocalipse.
Coleção Logos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______.
Razão do poema: ensaios de crítica e
de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. História da poesia modernista. São Paulo: João Scortecci, 1991.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Lírica modernista e percurso literário brasileiro. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 1978.
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