sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Revista Tempo Brasileiro Número 109

Para o bimestre abril-junho de 1992, a antiga revista Tempo Brasileiro dedicou seu número 109 para exclusivamente homenagear José Guilherme Merquior, havia pouco falecido. Organizado por João Ricardo Moderno, o volume apresenta, em 149 páginas, nove textos que, no conjunto, abordam e discutem o pensamento merquioriano, com destaque para o tema do liberalismo, além de depoimentos de ordem biográfica registrados por quem conviveu com o pensador e diplomata fluminense. Reúnem-se ainda nessa publicação, como abertura, “O renascimento da teoria política francesa”, ensaio do próprio Merquior, e um apêndice de autoria de sua esposa, Hilda Merquior.

Dadas essas breves informações, qualquer um se convencerá de que se trata de uma valiosa referência bibliográfica da hoje não mais pequena fortuna crítica a respeito do vasto legado intelectual merquioriano. E o leitor não vai encontrar, nessa revista, apenas salvas de palmas, merecidas – está claro –, ao homenageado. A ele – ou melhor, à sua obra  também se dirigem ressalvas contundentes, algumas das quais, permitam-me dizê-lo, julgo pertinentes e outras injustas.

Em “Merquior, Lévi-Strauss e a modernidade”, de Maria Heloísa Fénelon-Costa, por exemplo, o autor de Razão do poema será criticado por seu conservadorismo estético, que o teria impedido de avaliar mais sabiamente (e, por vezes, mesmo conhecer bem) a arte contemporânea. Disso convencida, Fénelon-Costa escreve:

Denuncia-se em Merquior o horror à instabilidade e à dinâmica do tempo destruidor de valores já agora contestados, representativos de um passado que deseja precursor de uma duração perfeita, continuando vivo e imutável como planta que se detivesse em seu crescimento sem mostrar o envelhecer decadente. (p.109)

O organizador do número da Tempo Brasileiro, contudo, desfecha os mais fortes golpes. João Ricardo Moderno concentra-se no segundo livro do homenageado, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), que, a propósito, adquiriu há poucas semanas sua segunda edição pela editora É Realizações. Portanto, a resenha de Moderno, intitulada “Adorno e o Kulturoptimismus de Merquior”, encontra hoje ocasião mais do que oportuna para reivindicar leitura.

O termo “Kulturoptimismus” (otimismo cultural, em alemão) faz referência a seu antônimo (Kulturpessimismus), ao qual José Guilherme Merquior frequentemente recorre para (des)qualificar a Escola de Frankfurt e outras linhas de pensamento novecentistas. Nesse caso, adivinha-se no título um tom irônico que se converterá, no avançar dos parágrafos, em contestações abertas ao livro e à ensaística merquioriana.

De fato, João Ricardo Moderno acredita que, do ponto de vista da consistência analítica, a produção de Merquior decai na década de 1980. Isso devido ao viés político-governamental por onde o membro da Academia Brasileira de Letras, mais do que nunca, se embrenhava, no intuito de propagandear os valores liberais, inclusive no campo artístico e literário. De qualquer forma, Moderno vem a apontar falhas já em Arte e sociedade..., segundo o comentarista, repetidas em outros livros, pois “[...] desde sempre sua pesquisa [de Merquior] encontrou-se diante de um impasse: a ausência de objeto.” (p.87)

Essa acusação parece-me ferir um aspecto chamativo da obra merquioriana, constituída em larga medida por coletâneas de ensaio e predominantemente escrita em forma ensaística. Talvez caiba fazer a mesma acusação a outro título notório, o Verso universo em Drummond, a famosa tese que o diplomata defendeu em 1972, pela Sorbonne. Afinal, que tese teria defendido nesse trabalho não nos fica propriamente claro, o que, aliás, tem despertado em alguns o entendimento de que não se trata aí uma contribuição original.

O espírito racionalista de Merquior também não satisfaz a João Ricardo Moderno, então professor de filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que define:

O Kulturoptimismus merquioriano é a base da sua estrutura política, econômica, psicológica e cultural. O Kulturoptimismus merquioriano não foi atingido pela dúvida cartesiana. Tendo a racionalidade merquioriana como base o otimismo-acima-de-quaisquer-suspeitas, ela se deixou conduzir no sentido da irracionalidade. O otimismo por si só não é apodicticamente verificável como o puro guardião da razão. O irracionalismo do otimismo é pretender para si uma identidade imediata com a razão, quando que a razão é pura mediatidade. (p.95)

Não sou formado em filosofia como Moderno e Merquior, mas entrevejo nas linhas acima a caricatura de um pensamento que foi otimista perante as realizações e promessas da modernidade e da sociedade burguesa, especialmente nos anos 80, mas não como se vivesse no paraíso edênico de Cândido, o célebre personagem de Voltaire. Na verdade, o Kulturoptimismus em questão partia, não de uma ingenuidade besta, e sim de uma vigorosa criticidade. E essa virtude implicava recepcionar todo e qualquer produto intelectual, por maior que fosse deste o prestígio, com independência espiritual. Não me parece ser o que exatamente acontece: tanto com João Ricardo Moderno, quem contesta o ensaísta de Arte e sociedade... em nome da validade “irrestrita” da filosofia de um “Adorno, meu amigo”, (p.97) quanto com Maria Heloísa Fénelon-Costa, que abraça com mais ingênuo otimismo os paradigmas estéticos da pós-modernidade e do culturalismo.

Antonio Gomes Penna, professor de Merquior no Instituto La-Fayette, considerado pelo ex-aluno seu pai intelectual, mescla notícias biográficas e comentários sobre a abordagem merquioriana da psicanálise e da sociologia, em “Minha convivência e meu aprendizado com Merquior”. Com isso, o psicólogo traça uma síntese do percurso da vida e obra do homenageado, o que também fazem com brevidade Francisco Rezek, em “Depoimento sobre José Guilherme Merquior”, e Joaquim Ponce Leal, em “José Guilherme Merquior”.

Sergio Paulo Rouanet assina “Merquior: obra política, filosófica e literária”. O texto é aquele que encontraremos, modificado, em As razões do iluminismo (1987), em homenagem realizada na ABL em 2001 e, mais recentemente, na edição de O liberalismo: antigo e moderno (2015) pela É Realizações, onde, aliás, também constam o texto de Joaquim Ponce Leal, “O liberalismo militante de José Guilherme Merquior”, de Celso Lafer, e “Merquior e o liberalismo”, de Hélio Jaguaribe.
   
O liberalismo, sobre cujas tradições e postulados Merquior tanto refletiu, com o engajamento de um genuíno e destemido liberal na sua última década de vida, é a tônica desses quatro textos mencionados, assim como o de Antonio Paim, “Merquior e a questão do liberalismo social”. Considerando conjuntamente os cinco, às vezes o emprego de neoliberalismo como sinônimo do novo ramo liberal – o social-liberalismo – a que o autor de O véu e a máscara se filiou pode confundir e desinformar o leitor. Pois, definitivamente, José Guilherme Merquior era um crítico firme da doutrina econômica de Friedrich Hayek.

Também deve incomodar o leitor o motivo da ausência. Em torno de O liberalismo: antigo e moderno: “É de lamentar-se, [...] que [...] não tenha contemplado o liberalismo brasileiro [...] nem o pensamento e a atuação chilenos”; (p.74) em torno da obra como todo de Merquior: “É de notar-se [...] a ausência de menções a artistas ou teóricos de arte latino-americanos (até mesmo brasileiros) [...]”; (p.110) Nada mais fácil do que apontar ausências em trabalhos alheios.

Com “O renascimento da teoria política francesa”, ensaio-resenha de abertura da revista, o próprio José Guilherme Merquior saúda o surgimento das primeiras intervenções de Luc Ferry e de Alain Renaut, pensadores que se desviaram dos caminhos percorridos pelos estruturalistas e pós-estruturalistas, para resgatar a legitimidade da razão como instrumento cognitivo fundamental e do liberalismo como orientação das sociedades rumo à consumação dos valores de progresso e liberdade. Trata-se de um dos últimos textos que Merquior escreveu.


O apêndice de Hilda Merquior é uma singela participação no fórum batizado com o nome de seu marido e promovido pelo Instituto Tancredo Neves. O evento ocorreu em novembro de 1991, menos de um ano após o falecimento do grande crítico de literatura, de arte e de ideias.   

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