Mas o importante é que,
nele [Henrich Heine], o receio do barbarismo nunca virava antiplebeísmo histérico,
elitismo perverso.
José Guilherme Merquior
“Heinrich Heine (1797-1856) talvez tenha sido o último
grande poeta europeu em cuja obra se
casaram crítica da cultura e progressismo político-social.” (1981, p.5) Não
deveremos estar longe da verdade, se dissermos que o autor dessa frase talvez
tenha sido ele mesmo o último grande crítico literário brasileiro em cuja obra
se casaram o mesmíssimo par: crítica da cultura e progressismo político-social.
A citação do parágrafo acima pertence às linhas
introdutórias de mais um dos textos que José Guilherme Merquior publicou na
prestigiada revista literária portuguesa Colóquio/Letras,
no caso o número 59 de janeiro de 1981. Em
tempos de uma crítica que, em nome da objetividade e da cientificidade,
menosprezou a função de julgar, postura incentivada pelo estruturalismo dos
anos de 1960 e 70... em seguida, em tempos de uma crítica que, em nome da
crítica à objetividade e à cientificidade, compreendeu que o julgamento não era
uma questão de razão, mas de poder, mentalidade que o pós-estruturalismo
ajudava a moldar ao longo do último quartel do século passado... Merquior, nesses
dois períodos, nunca abriu mão das credenciais de cobrar à literatura um pendor
ideológico afinado com tradições liberais.
E crítica da cultura e progressismo político-social seriam,
de fato, as mais valiosas contribuições, segundo o autor de As ideias e as formas, que a literatura
e as artes em geral teriam a oferecer, com o que, aliás, estas ainda se
autojustificariam na contemporaneidade. Pois o ensaísta brasileiro conservou
sempre para si um lema repetido em artigo sobre o italiano Elias Canetti, o
qual “se deixa compreender melhor à luz da sua concepção do papel do escritor,
definida numa homenagem aos cinquenta anos de Hermann Broch: o grande escritor
é a um só tempo uma exalação da sua época, e seu adversário crítico”. (1983,
p.44-45)
Numa interpretação merquioriana dessa máxima, ser uma
“exalação da sua época” e, ao mesmo tempo, “adversário crítico da sua época”
significa que o escritor deve atentar-se ao mundo em redor, compreendendo que a
literatura, embora autônoma em
relação à realidade externa, precisa estar com ela em consistente diálogo, e
não se fechar nos caprichos de uma criação autoritária.
Em outras palavras, cabe à literatura tanto comunicar o mundo quanto se comunicar
com o mundo. Nesse processo criativo, a visão crítica seria ingrediente
insubstituível, para que se evite produzir um cômodo e mero reflexo da
realidade e para que a obra literária contribua, efetivamente, para o progresso
político-social.
O ensaio publicado na Colóquio/Letras,
intitulado eruditamente “Os ciprestes do Aquileion ou pão e petit-pois”, objetiva
mais do que elucidar a condição cosmopolita e iluminista do poeta de língua alemã
de ascendência judaica na cultura europeia do século XIX: o ensaio afirma o exemplo
de Henrich Heine e sua “literatura como ‘crítica da vida’, que ainda não odiava
o curso da história, [e] ia de par com a luta pelo progresso social”, contra os
“nossos dias de permissividade oficial e autoculpabilização burguesa”. (1980, p.11)
E esses dias, verdade seja dita sem qualquer tom de novidade, ainda não acabaram.
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