Tomara
que a nova Constituição [de 1988], quiçá revista e melhorada, possa fugir ao
destino das cartas latino-americanas, tantas delas condenadas a ser o que
Lowenthal batizou de “constituições pedagógicas”: um feixe bacharelesco de
idealidades inviáveis, cruelmente desmentidas pela prática político-social,
embora dotadas de módicos efeitos civilizatórios. Oxalá possa ela, aprofundando
seus componentes liberais, dispensar o recurso ao reformismo von oben [de cima] – e ao liberalismo de
estado – enraizando nos nossos mores
a energia plural da liberdade, neste nosso fim de século [XX] cada dia mais
digno de ser chamado Era da Liberalização.
José
Guilherme Merquior (in “Liberalismo e Constituição”)
Neste ano de 2018, nossa Constituição Federal
completou três décadas. A data ensejou uma farta safra de novas discussões
sobre esse marco do Brasil redemocratizado, destacando-se as numerosas críticas
a seus excessos: a começar, o excesso de páginas, o excesso de regulamentação
da vida pessoal, familiar e empresarial, o excesso de direitos que o Estado, desde
a promulgação da Carta, nunca pôde, e nunca poderá, realmente promover.
Já em 1989 foi publicado, sob coordenação de Paulo
Mercadante, o livro Constituição de 1988:
o avanço do retrocesso. Dentre as contribuições dos diversos autores, do
quilate de um Miguel Reale e de um Roberto Campos, o leitor encontra no volume
o texto “Liberalismo e Constituição”, de José Guilherme Merquior.
O título é daqueles nos quais os familiarizados com
a obra merquioriana, e sabendo tratar-se de uma publicação da década de 80, farejam
facilmente a autoria. De fato, nesse período Merquior se entusiasma, todo
entregue, ao liberalismo como ideário cultural, sócio-político e econômico.
Diga-se de passagem, essa sua atitude apologética coincidia, no plano mundial,
com o desmoronamento do socialismo-comunismo no contexto da Guerra Fria, e a consequente
vitória do capitalismo liberal, e, no plano nacional, com a progressiva
abertura democrática do regime civil-militar até seu fim definitivo em 1985.
“Liberalismo e Constituição” não ultrapassa cinco
páginas, e divide-se em duas partes. Na primeira, o diplomata graduado em
Direito traça uma brevíssima história das constituições, que já vinham
aparecendo desde a Idade Média, dentro de um percurso que se confundiria, em
larga medida, com a história do liberalismo. O pequeno texto de Merquior
principia nestes termos: “Sob certo aspecto, o próprio conceito de constituição
é uma noção liberal.” (p.13)
É na segunda parte que José Guilherme Merquior se
detém propriamente sobre a Constituição Federal de 1988, salientando a
necessidade de uma “reforma constitucional” após o período 1964-1985, visto que
então a política brasileira se depararia com uma “carência de legitimidade”, o que
“a reconceituação dos direitos”, “a redefinição do papel do Congresso” e “a
posição dos Estados frente à federação” haveriam de ser sanar, (p.15) pelo
menos no que se referia à esfera política.
Quanto ao resultado da reforma constitucional, Merquior aponta alguns problemas. Um dos
quais a incoerência de “certa dose de Parlamentarismo de facto ter desfigurado a opção presidencialista da nova Carta”,
embora para o comentarista tal descaracterização “só poderia exprimir a vontade
de evitar o arbítrio – velho leitmotiv liberal”.
(p.16) Também Merquior lamenta a perda da oportunidade de consolidar “um bom
conceito social de democracia”, visto que no Brasil “[t]emos praticado com
grande indulgência o democratismo, caricatura daninha da democracia”. (p.16)
Isto é, a Constituição de 88 não lhe parecia preocupar-se em fomentar na
sociedade como um todo a participação vigilante dos verdadeiros cidadãos, principais
responsáveis – ao fim e ao cabo – pelo funcionamento eficiente da democracia.
Fosse como fosse, dentre os pontos positivos,
estariam os “vários elementos liberais e libertários” e “uma justa e necessária
dose de restauração liberista – de recuperação
da enorme importância da descrentalização econômica”, conquanto ao lado de “traços
estatizantes e protecionistas”. (p.16)
Por fim, José Guilherme Merquior torcia, naqueles
primeiros meses de redemocratização do Brasil, para que a nossa Constituição
não se tornasse no que, em grande medida, veio a se tornar... Releia meu leitor,
por gentileza, a epígrafe deste post.