quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Merquior comenta a Constituição de 1988


Tomara que a nova Constituição [de 1988], quiçá revista e melhorada, possa fugir ao destino das cartas latino-americanas, tantas delas condenadas a ser o que Lowenthal batizou de “constituições pedagógicas”: um feixe bacharelesco de idealidades inviáveis, cruelmente desmentidas pela prática político-social, embora dotadas de módicos efeitos civilizatórios. Oxalá possa ela, aprofundando seus componentes liberais, dispensar o recurso ao reformismo von oben [de cima] – e ao liberalismo de estado – enraizando nos nossos mores a energia plural da liberdade, neste nosso fim de século [XX] cada dia mais digno de ser chamado Era da Liberalização.
José Guilherme Merquior (in “Liberalismo e Constituição”)

Neste ano de 2018, nossa Constituição Federal completou três décadas. A data ensejou uma farta safra de novas discussões sobre esse marco do Brasil redemocratizado, destacando-se as numerosas críticas a seus excessos: a começar, o excesso de páginas, o excesso de regulamentação da vida pessoal, familiar e empresarial, o excesso de direitos que o Estado, desde a promulgação da Carta, nunca pôde, e nunca poderá, realmente promover.
Já em 1989 foi publicado, sob coordenação de Paulo Mercadante, o livro Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Dentre as contribuições dos diversos autores, do quilate de um Miguel Reale e de um Roberto Campos, o leitor encontra no volume o texto “Liberalismo e Constituição”, de José Guilherme Merquior.
O título é daqueles nos quais os familiarizados com a obra merquioriana, e sabendo tratar-se de uma publicação da década de 80, farejam facilmente a autoria. De fato, nesse período Merquior se entusiasma, todo entregue, ao liberalismo como ideário cultural, sócio-político e econômico. Diga-se de passagem, essa sua atitude apologética coincidia, no plano mundial, com o desmoronamento do socialismo-comunismo no contexto da Guerra Fria, e a consequente vitória do capitalismo liberal, e, no plano nacional, com a progressiva abertura democrática do regime civil-militar até seu fim definitivo em 1985.
“Liberalismo e Constituição” não ultrapassa cinco páginas, e divide-se em duas partes. Na primeira, o diplomata graduado em Direito traça uma brevíssima história das constituições, que já vinham aparecendo desde a Idade Média, dentro de um percurso que se confundiria, em larga medida, com a história do liberalismo. O pequeno texto de Merquior principia nestes termos: “Sob certo aspecto, o próprio conceito de constituição é uma noção liberal.” (p.13)
É na segunda parte que José Guilherme Merquior se detém propriamente sobre a Constituição Federal de 1988, salientando a necessidade de uma “reforma constitucional” após o período 1964-1985, visto que então a política brasileira se depararia com uma “carência de legitimidade”, o que “a reconceituação dos direitos”, “a redefinição do papel do Congresso” e “a posição dos Estados frente à federação” haveriam de ser sanar, (p.15) pelo menos no que se referia à esfera política.
Quanto ao resultado da reforma constitucional, Merquior aponta alguns problemas. Um dos quais a incoerência de “certa dose de Parlamentarismo de facto ter desfigurado a opção presidencialista da nova Carta”, embora para o comentarista tal descaracterização “só poderia exprimir a vontade de evitar o arbítrio – velho leitmotiv liberal”. (p.16) Também Merquior lamenta a perda da oportunidade de consolidar “um bom conceito social de democracia”, visto que no Brasil “[t]emos praticado com grande indulgência o democratismo, caricatura daninha da democracia”. (p.16) Isto é, a Constituição de 88 não lhe parecia preocupar-se em fomentar na sociedade como um todo a participação vigilante dos verdadeiros cidadãos, principais responsáveis – ao fim e ao cabo – pelo funcionamento eficiente da democracia.
Fosse como fosse, dentre os pontos positivos, estariam os “vários elementos liberais e libertários” e “uma justa e necessária dose de restauração liberista – de recuperação da enorme importância da descrentalização econômica”, conquanto ao lado de “traços estatizantes e protecionistas”. (p.16)
Por fim, José Guilherme Merquior torcia, naqueles primeiros meses de redemocratização do Brasil, para que a nossa Constituição não se tornasse no que, em grande medida, veio a se tornar... Releia meu leitor, por gentileza, a epígrafe deste post.

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