Publicado
em 1965, reúne ensaios uns inéditos e outros anteriormente publicados em
jornais, produção que abarca um período de cerca de quatro anos (1962-65). O
jovem autor, antes mesmo dessa estreia em volume, já impressionava e
conquistava a admiração da elite literária brasileira. Gente do porte de Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro o havia convidado para
selecionar poemas do simbolismo ao modernismo, os quais viriam a integrar a
antologia Poesia do Brasil, de 1963.
Já o poeta itabirano celebrara em versos (conforme muito gratamente consta na
edição de Razão do poema da É
Realizações) o casamento desse que se tornava, desde cedo, uma das personalidades
mais instigantes da história da inteligência de nosso País, com Hilda Vieira de
Castro.
A leitura do conjunto dos textos aí coligidos incute
a sensação de que temos em mãos um livro problemático. A questão é sinalizada
pelo próprio José Guilherme Merquior, em sua “Advertência”, na qual noticia que
os ensaios do volume “não representariam minhas ideias atuais, quer sobre
crítica, quer sobre estética”, conquanto tivessem sofrido alterações no sentido
de “atenuar essa distância”. (p.19) Sendo assim, surge a pergunta elementar:
por que publicá-lo, não havendo sequer concordância do próprio autor? Seja qual
for a resposta (não sou capaz aqui de apresentar a minha hipótese[i]), o livro registra a intensa inquietação intelectual do autor em um curto espaço
de tempo – o que nos parece apontar para uma procura (angustiada, talvez) de configurar pensamento crítico e estético o mais convincente e confiável possível, a seus
próprios olhos, sem nenhuma dúvida, exigentíssimos. Essa circunstância inicial,
à qual sucedem diversas modulações de ideias e mudanças de ponto de vista, ao
longo das décadas de 1960, 70 e 80, contrasta com o discurso merquioriano,
caracteristicamente assertivo e polêmico – marca, aliás, de toda sua enorme
produção de pensador.
Pensador, sobretudo, foi Merquior; mais do que um
crítico literário[ii].
E Razão do poema o atesta. O leque de interesses abanado com segurança e sedução nesse
primeiro livro (literatura e artes à frente, mas também filosofia, sociologia,
antropologia, psicanálise, em comunhão necessária para o aprofundamento da
compreensão do próprio objeto literário e artístico) vai, ao longo dos anos, se
ampliando e ganhando maior estofo em títulos como Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), A natureza
do processo (1982) e The Western
Marxism (1986). De qualquer
forma, a publicação de Razão do poema
naquela ocasião constitui um marco que ultrapassa o contexto particular
merquioriano, para dizer respeito a uma época de renovação da crítica literária
brasileira.
De fato, a ampliação e a consolidação do ensino
universitário (especialmente dos cursos de ciências humanas e, dentro destas, o
de Letras), em processo desde a década de 1930, preparavam uma maneira de lidar
com a literatura que mudaria sensivelmente a crítica literária nacional. Se um
Álvaro Lins, um dos representantes maiores dessa atividade durante a primeira
metade do século XX, se impunha pelo saber autodidata e pela análise desprovida
de prévia e consistente fundamentação teórica, metodológica e de coerência
terminológica[iii],
um Afrânio Coutinho, instruído nos Estados Unidos pelo New Criticism, envidará, a partir de
1948, todos os esforços (travando inclusive longeva polêmica com o próprio
Álvaro Lins), para que os críticos literários buscassem formação acadêmica
regulamentada, abandonado o tradicional suporte de interlocução (os rodapés dos
jornais) e passando a divulgar suas análises em gêneros textuais como o artigo
e o tratado.
A década de 1960 consuma, em termos, a vitória de
Coutinho. Ou, pelo menos, atende significativa parcela de suas reivindicações,
sendo o surgimento da primeira Faculdade de Letras, a da UFRJ, no fim daquele
decênio, uma de suas maiores conquistas. Mas acresce o fato de a disciplina Teoria da
Literatura entrar na grade curricular dos cursos de Letras (via de regra,
adotou-se o manual de René Welleck e Austin Warren na bibliografia fundamental
da disciplina). E é quando também a pós-graduação se torna oferta e demanda das novas gerações que se interessam pelo saber literário. Estavam
criadas, portanto, as condições necessárias para se renovar o exercício crítico
no Brasil.
Razão do poema
se situa em tal contexto de transição[iv],
no qual se viam convivendo o ensaísmo aparelhado pelos novos saberes teóricos e
analíticos e a constituição da linguagem acadêmico-científica. A década de 60 também
dá continuidade à canonização do modernismo brasileiro, para o que o primeiro
livro de José Guilherme Merquior contribuiu significativamente. Trata-se, com
efeito, de preocupação central de Razão
do poema. Dos treze ensaios que integram a parte inicial do volume, oito detêm-se sobre poemas específicos (“Uma canção de Cardozo”, “‘A
máquina do mundo’ de Drummond”, “Onda mulher, onde a mulher”); poéticas de
autores (“Murilo Mendes ou a poética do visionário”, “Perfil de Cassiano”,
“Serial”) enquadrados em nosso modernismo, louvado nessa espécie de ensaio-manifesto que são a “A poesia modernista” e o agressivo “Falência da
poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45”. Cumpre assinalar, a respeito desse conjunto, a contribuição com textos que pertenceriam a uma das primeiras safras da fortuna crítica acerca da obra de João Cabral de Melo Neto; este, segundo Merquior, realizador de uma “evolução que é de longe a mais
significativa dos dois últimos decênios da poesia nacional”. (p.113)
Não obstante o próprio autor expressar consciência
de que suas ideias sobre crítica literária e estética se diferenciem, em 1965,
da maioria dos textos coligidos nesse volume, aí o leitor já tem a oportunidade
de se deparar com marcas estilísticas e ideológicas que acompanharão Merquior
por toda sua obra. Uma dessas marcas é a do discurso que se estrutura,
predominantemente, no propósito da polêmica. No caso de Razão do poema, “Falência da poesia...” consiste no texto que
melhor representa esse veio discursivo, aprendido, informa a “Nota
antipática” de Poesia do Brasil, da “atitude artística e crítica de [19]22”.[v]
Isso, aliás, explica de Merquior não só o apego à polêmica (versão em linguagem
crítica do espírito iconoclasta da primeira geração modernista), assim como o
interesse permanente pelo próprio modernismo brasileiro. Todavia, a disposição
ferina para a polêmica de Afrânio Coutinho, em defesa de quem Merquior se
manifesta no livro, no intuito de isentá-lo da acusação de formalista puro
sangue[vi],
pode ter inspirado ou servido de modelo, mais proximamente, ao jovem autor.[vii]
Na verdade, a crítica literária brasileira (e não apenas a brasileira) está
repleta de episódios polêmicos, tendo como protagonistas um Sílvio Romero, no
século XIX, e, no século passado, um Agripino Grieco, a quem João Luiz Lafetá
denomina, por antonomásia, o “boca-do-inferno da crítica”. (p.43) Aliás, o eventual recurso ao anedótico e o humor trocadilhesco – que temperou o debate com Ricardo Musse (o texto “Musse
ou chocolate”) e no comentário impagável em Saudades
do carnaval sobre o gravador Caraglio “(a quem a crítica luso-brasileira
atribui tradicionalmente a ereção de um das obras mais penetrantes do
século...)” (p.121) – recordam bastante Grieco. Também podemos mencionar a
verve de Mário Faustino e mesmo boa parte da geração de 45, da qual João Cabral
de Melo Neto, em artigos de 1952, destacou “a capacidade polêmica” e o “gosto
pelos bate-bocas da vida literária”. (p.741)[viii]
Outra marca de todo o pensamento merquioriano reside
no racionalismo, anunciado e defendido em Razão
do poema, com a veemência militante característica do autor, nas linhas
finais da “Advertência”. A razão – palavra significativamente presente no
título do livro – demarca as concepções críticas do autor em dois âmbitos
primários: criativo e analítico. Para Merquior, tanto a produção literária
(seja em verso, seja em prosa) quanto a recepção da literatura (especialmente
no tocante à análise da obra) deveriam se constituir racionalmente. Em outros
termos, na querela entre razão e emoção como motivação precípua para a escrita
literária, José Guilherme Merquior compreende que a primeira controla ou
disciplina a segunda.[ix]
Do contrário, não só a fantasia interditaria a comunicabilidade (elemento
fundamental para a poesia, segundo o autor), mas também a emoção recairia na
inefabilidade da experiência subjetiva do poeta. Isso implica a necessidade de
se estar atento, na leitura crítica, a todos os detalhes formais e temáticos do
texto. De fato, as análises desenvolvidas em Razão do poema, à maneira do close-reading
do New Criticism, observam o poema
verso a verso, salientando o papel expressivo da repetição de fonemas, da
escolha de vocábulos, da configuração sintática e imagética (metáforas,
símbolos) na sua constituição semântica total.
Sendo assim, José Guilherme Merquior subscreve a
validade da metodologia formalista e, ao
mesmo tempo, mantém o cunho judicativo da crítica literária tradicional, cada
vez mais abandonado pelas propostas ditas científicas, a exemplo do que vinha a
postular, nessa área, o estruturalismo (destaco que o auge do estruturalismo na
França se deu exatamente em meados da década de 1960). Para avançarmos mais um
pouco na compreensão de Razão do poema,
vale dizer que, para Merquior, crítica literária é atualização – atualização no
sentido de resgatar os valores poéticos da tradição, ou seja, alertar as novas
gerações dos malefícios de se fechar os olhos às conquistas dos autores
precedentes; e atualização também no sentido de avaliar a literatura
contemporânea, sem mesmo privilegiar a literatura anterior, como era
procedimento usual na época entre professores dos cursos de Letras e alguns
críticos, resistentes a discutir, de alma isenta de preconceitos, a produção
modernista brasileira.
Não é casual, portanto, que Merquior analise textos
e autores do passado (Gonçalves Dias, Bocage, Ronsard, Hoffmann) e do presente
(do modernismo de 22 a Fernando Mendes Vianna e Mário Chamie), sempre na
articulação comparativa entre o que se escreveu outrora e o que então ou mais
recentemente se escrevia. Donde, a título de exemplo, o romantismo da “Canção
do exílio” de Gonçalves Dias ser cotejada com o sentimento de exílio
modernista, em “O poema do lá”; e o significado da morte da amada, em “Uma
canção de Cardozo”, ser captado a partir do paralelo com a lírica petrarquiana.
Ao racionalismo e ao caráter judicativo, na defesa
da literatura como crítica e da crítica como razão, e no louvor da capacidade
de se “instaurar uma poesia do pensamento” (p.180), acrescenta-se, como
arcabouço metodológico e teórico, um competente diálogo com a fenomenologia
(uma das epígrafes de Razão do poema
foi extraída da obra de Husserl), com o marxismo (Lukács é uma das referências
constantes do livro), com a sociologia (cuja perspectiva nos estudos literários
Merquior adota; nisso acompanhando, de boníssimo grado, Antonio Candido), com a
antropologia (o jovem autor já estava informado da obra de Lévi-Strauss, e o
último ensaio de Razão do poema, em
certa medida, preparam as futuras reflexões publicadas no volume A estética de Lévi-Strauss, em 1974,
originalmente escrito em francês), com a estilística de Auerbach e Curtius
(outra corrente da crítica moderna, ao lado da sociológica, muito importante
para a concepção merquioriana de análise literária), com o New Criticism (cuja índole formalista, ao contrário de autores como
Wilson Martins, em Crítica literária no
Brasil, e Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, em História da poesia modernista, Merquior quer desvincular, embora
fossem contemporâneas, da poética neoparnasiana da geração de 45).
Esse repertório, – como resistir à tentação do
clichê? – assombroso para um autor de vinte e poucos anos dominá-lo com tamanha
segurança e propriedade, garante a não aplicação subserviente de uma teoria
específica, como já acontecia e ainda acontece no universo acadêmico nacional,
dislumbrado diante das novidades intelectuais dos grandes centros pensantes.
Por causa dessa postura, Flora Süssekind, no texto “Rodapés, tratados e
ensaios”, publicado no livro Papéis
colados, não classifica José Guilherme Merquior nem como crítico de rodapé
(“ora mais próximo do noticiarista, ora do cronista”), nem como “o
universitário de modo geral”, mas como “teórico, desdobramento do personagem
anterior e tendo como marca distintiva indescartável a autorreflexão”. Todavia,
Süssekind observa que esse terceiro tipo de crítico se subdivide, numa vertente
da qual se situam aqueles que “jamais abandonaram uma dicção ensaística”.
(p.34) E aí parece termos, a princípio, reino, filo, classe, ordem, família,
gênero e espécie da crítica merquioriana.
A linguagem ensaística de José Guilherme Merquior
(já o frisamos acima) caracteriza-se ou estrutura-se, frequentemente, no
propósito da polêmica. Esse fato, aliás, no último capítulo de Figuras da inteligência brasileira, Miguel Reale atribui à “intensa e viva
angústia de comunicação e participação” por parte de Merquior, aí entendido
como “paladino da racionalidade concreta”. (p.165) Deixemos para adiante breve comentário acerca desse qualificativo, “concreta”, e nos detenhamos logo noutro
fato, a nosso ver, curioso. O de que, conquanto, no mais das vezes, a polêmica
se nutra de extremismos de opinião, Razão
do poema nos parece apresentar um autor em busca de conciliações...
Conciliação do nacionalismo com o universalismo, por
exemplo, um dilema marcante do cenário cultural brasileiro de antes mesmo do
romantismo, mas ainda bem presente no decorrer das décadas novecentistas.
Dentro desse contexto, a geração de 45, querendo-se restauradora dos valores
universais da poesia, renegava o legado dos modernistas de 22, considerados
limitadores do alcance poético ao nível nacional. A crítica combativa de
Afrânio Coutinho, na época, também punha lenha na fogueira, ao asseverar, em Conceito de literatura brasileira,
ensaio publicado em 1960, que a produção literária realizada no Brasil já
apresentava características de nacionalidade na fase colonial. Assim
pensando, Coutinho acusava Antonio Candido de se perfilar na historiografia
lusa, em Formação da literatura
brasileira, porque seu autor ali ensinava que o arcadismo e o romantismo
ainda eram fases formadoras da nossa identidade nacional literária. Vale também
lembrar que, em 1965, Afrânio Coutinho publica A polêmica Alencar-Nabuco. Na apresentação desse volume,
manifestava compreender o embate de 1875 nos seguintes termos: “Ao
ocidentalismo de Nabuco opunha-se o nacionalismo de Alencar; ao universalismo
do primeiro, a tendência nacionalizante do segundo.” (p.7)
Segundo Merquior, em Razão do poema¸ é um imperativo categórico para os poetas
contemporâneos espelhar-se no exemplo dos modernistas de 22,[x]
uma vez que estes teriam alcançado o valor universal e humano, a partir de uma
preocupação em conhecer e fazer conhecer a sociedade brasileira. Contudo, José
Guilherme Merquior não se esquece de salientar que não se trata de recorrer às
facilidades de uma imagem exótica do Brasil ou se ater a supostos temas
regionalistas. Temas não solucionariam o problema, mas sim a sintonia entre
tema (conteúdo) e forma, na verdade enlaçados de maneira indissociável na construção
literária competente. Leiamos o trecho abaixo de “‘A máquina do mundo’ de
Drummond”, ensaio no qual refuta as reservas relativas às formas classicizantes
e ao conteúdo valeryanamente entediado de Claro
enigma:
As formas artísticas não são, é
verdade, inteiramente congruentes com o conteúdo; não é raro ver-se uma nova
mensagem “rachando” uma velha forma. Mas este é um raciocínio histórico. [...] Porém, do ponto de
vista estrito do estético, não há hipótese de a forma não corresponder,
plenamente, ao conteúdo: porque, do ponto de vista da obra realizada, da obra
em ato, da consecução artística [...] simplesmente não há dualismo
forma-e-conteúdo: existe apenas a unidade das formas significativas. (p.100)
Segundo José Guilherme Merquior, Carlos Drummond de
Andrade soube, como poucos compatriotas, conjugar o nacional e o universal. Em
“Crítica, razão e lírica”, o poeta itabirano encontra-se mencionado, ombro a
ombro, ao lado de Fernando Pessoa, Pedro Salinas e Eugenio Montale, na condição
de autor de língua românica no qual “mais se construiu em forma moderna a
grande meditação sobre a vida humana”, sendo essa constatação “um fato de
enorme valor para a nossa literatura, cuja participação no alto nível literário
do Ocidente data de muito pouco tempo”. (p.211).[xi]
Forma e conteúdo, nacionalismo e universalismo, arte
e sociedade, tradição e modernidade...[xii]
dimensões frequentemente dicotomizadas no pensamento crítico, elas
dão-se as mãos em Razão do poema e mesmo nos seus livros
seguintes. Não sabemos até que ponto seria bobagem afirmar que essa compreensão
conciliadora se deve, em alguma
medida, à índole de uma vocação diplomática. Afinal de contas, conquanto
diplomata, José Guilherme Merquior era um polemista irremediável. Seja como
for, acreditamos a diplomacia, eleita pelo autor como profissão, responder ou corresponder bem à importância da conciliação entre a dimensão nacional e a
universal requerida em sua concepção crítica. Eis a seguir passagem do discurso
que proferiu como orador da turma do Instituto Rio Branco, em dezembro de 1963:
“Suficientemente convictos de nossa força, destinamo-nos a cumprir uma vocação
universalista. Nosso amor à nacionalidade é, no fundo, a melhor forma de sermos
humanos.” (p.45) Não residiria nisto – a representação da pátria, com roupagens
cosmopolitas – a síntese perfeita (à revelia de nossa escolha talvez infeliz de
palavras) do que valorizam os textos de Razão
do poema?
Efetivamente, em matéria de arte e literatura,
Merquior foi um humanista.[xiii]
Sua argumentação em favor da universalidade das artes conduziu-o às discussões
desenvolvidas no último ensaio do livro, no qual nega ao marxismo em geral, e
ao de Lukács especificamente, validade de fundamentação nesse propósito. A resposta
melhor viria da antropologia lévi-straussiana, que chega ao conceito de significante flutuante, partindo do
entendimento de signo segundo a linguística de Ferdinand de Saussure
(significante/significado) e da distinção psicanalítica entre subconsciente e
inconsciente. O inconsciente, alheio às nossas experiências (alimento que
atravessa o estômago, sem modificar a natureza desse órgão, na metáfora
ilustrativa do antropólogo francês, pai do estruturalismo), seria o que há de
universal no homem. E, assim, lança Merquior uma conclusão inicial:
E é precisamente desse significante flutuante (Lévi-Strauss)
que a arte, a poesia, a invenção estética e mística constituem seu uso
específico da linguagem.
A morada do significante
flutuante é o inconsciente, residência das estruturas comuns a todos os homens
de todas as épocas. Enfim, deparamos com um fundo comum de humanidade sem um
“conteúdo” que, para ser definido, tornasse necessário violentar a História e
afirmar uma “natureza humana atemporal” [como o faria o marxismo]. (p.269)
Todavia, a arte, compreendida como linguagem
simbólica (noção central do pensamento estético merquioriano não apenas em Razão do poema), não resulta somente do
inconsciente, mas do entrosamento deste com o subconsciente, onde o conteúdo
histórico se plasma – por assim dizer – na experiência psíquica.
A crítica merquioriana insistirá sempre no casamento
da arte com a sociedade ou das formas com as ideias, não obstante as diferenças de perspectiva sobre a
questão de alguns textos para outros, notadamente da década de 70 para a de 80.
Em Razão do poema, esse matrimônio
sócio-artístico implica o nacionalismo-universalismo, a intervenção ou
participação da arte na realidade (em “Evtuchenko”, Literatura e revolução, de Trotski, constitui referência endossada
com entusiasmo pelo autor; lembrar o ensaio “Responsabilidade social do
artista”); implica também capacidade de comunicação com o povo (sem apelo propriamente a uma poética popular, a exemplo da literatura de cordel); implica
ainda o predomínio da linguagem discursiva (atentar-se para o trocadilho horacionalismo, em "Crítica, razão e lírica"). Trata-se de uma descrição teórica ou de uma
legislação crítica? As duas coisas se confundem, às vezes problematicamente no
livro. De qualquer modo, mais importante do que essa ambiguidade é, a nosso
ver, um ponto nevrálgico que Razão do
poema evita discutir ou não discute diretamente: a questão tão complexa
quanto controversa da mímese. A lacuna parece ter incomodado o autor, que
publicará sete anos depois outra reunião de ensaios, sob o título de A astúcia da mímese.[xiv]
Em vez de mímese propriamente, Razão do poema se volta para os termos participação e concretude
da arte. Com base nessa chave de critérios, José Guilherme Merquior enaltece os
modernistas de entre 1922 e 45, a poética amadurecida de João Cabral de Melo
Neto, a novidade de Mário Chamie, e torce o nariz para a “vacuidade do nouveau roman e da poesia ‘concreta’”
(p.152), na verdade, segundo o ensaísta,
em nada nada concreta. Parece haver aí, portanto, indício do Merquior
antivanguardista, plenamente configurado e assumido nas “Duas palavras à guisa
de prefácio” de As ideias e as formas
(1980).
No último capítulo de Figuras da
inteligência brasileira, Miguel Reale discute, com invejável
propriedade, a questão da "racionalidade concreta", sobretudo no
tocando à concepção histórica e epistemológica de Merquior. Essa razão aferrada
à concretude da história o teria impelido, em A
natureza do processo, a ratificar o valor da ideia de progresso (tão
atacada pela crítica cultural daqueles e destes tempos), assinalando os concretos avanços
tecnológicos – na medicina, quem o negará? – e a progressiva melhoria no padrão de vida de significativa parte dos
trabalhadores, em comparação entre meados do século XIX e meados do XX. Em
entrevista à revista Veja, por
ocasião da divulgação de seu livro As
ideias e as formas, recém-lançado, José Guilherme Merquior opinava acerca do que era (e
ainda é) hábito nos debates intelectuais no Brasil, pontuando:
Nessa orientação, Merquior verificava
menor aceitabilidade na estética kantiana do que na hegeliana, na medida em que
a primeira anuncia a autonomia da arte com base numa abstração formalista, ao passo que a segunda aponta
para uma efetivação do espírito da forma na concretude da história. No entanto,
conforme sublinha Miguel Reale, José Guilherme Merquior não compactuava com uma
visão historicista totalizadora, nisso afastando-se de hegelianos, marxistas e mesmo
de defensores de um progresso concebido como marcha evolucionista e teleológica.
Definitivamente atento aos dados concretos, o ensaísta carioca notava certos retrocessos
em episódios que se apresentavam como progresso.
Os problemas são sempre apresentados de maneira abstrata, principista
e apriorista. Portanto, o coeficiente de análise empírica, de exame concreto de
realidades verificáveis, é muito pequeno. O inglês Oscar Wilde dizia que os patrões
falam de coisas e os criados de pessoas. No debate político e intelectual brasileiro,
há muito pouca gente falando de coisas ou pessoas. Fala-se de noções abstratas.
Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João
Cabral de Melo Neto constituem o cânone mínimo da poesia modernista brasileira,
para José Guilherme Merquior. Se, infelizmente, não realizou o intento de
escrever o livro A pluma do cão,
estudo sobre as obras dos poetas itabirano e recifense (cf. nota da 3ª ed. de Razão do poema, p.214), dedicou-lhes
outros ensaios, assim como a Murilo Mendes, além de defender a tese Verso universo em Drummond convertida em livro. A
importância desses três poetas pode nos levar a algumas conclusões e hipóteses:
embora exaltasse os desbravadores da Semana de Arte Moderna, Merquior não
encontrou entre eles um autor que satisfizesse plenamente suas exigências
críticas. Às pirotecnias da geração de 22, portanto, preferia a maior calmaria
ou maturidade formal das obras posteriores. Donde, em Razão do poema, a revisão de seus próprios conceitos a respeito do
aspecto classicizante de Claro enigma
e o encanto com a criação disciplinada de João Cabral de Melo Neto e Joaquim
Cardozo. Esse livro de 1965 é o manifesto, em linguagem crítica, de uma poética
de conciliação do modernismo com o clássico, na procura de corrigir as
tentativas, nesse mesmo sentido, empreendidas pela geração de 45. Acreditamos
isso explicar um pouco da antipatia violenta de Merquior para com os poetas
desse período, dos quais exclui desesperadamente (mas não sem argumentos
pertinentes) João Cabral. Assim pensando, também talvez compreendamos melhor o
carinho merquioriano dirigido a Gonçalves Dias, sobre quem ensina Antonio
Candido, em Formação da literatura
brasileira: “É que sob o patético da vocação romântica, persistia nele a
necessidade da medida, legada pelo neoclassicismo [...].” (p.71)
O ensaísta de Razão
do poema assume, de fato, a função tradicional da crítica de formadora do
gosto literário, ambicionando instruir os poetas contemporâneos a se espelharem
em Petrarca, Camões, Donne, casos iniciais sobre os quais Merquior se debruça,
em “Crítica, razão e lírica”. Abramos de novo a Formação..., de Candido, volume 1, e nos recordemos de que a “busca
da comunicação”, disposição cobrada pela crítica merquioriana, é um dos traços
do neoclassicismo (cf. “Razão e imitação”).
O que acima dissemos, então, endossa a pecha de
conservador senão de reacionário dispensada, com contornos de caricatura, a José
Guilherme Merquior? Se querer aprender com a tradição e a história, delas absorvendo
muito mais do que um prazer antiquário, implica ser conservador ou reacionário,
tudo bem – estamos de acordo.
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In: Papéis colados. 2ª ed. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2002. pp.15-36.
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[i]
O prof. Wanderson Lima, em texto muito bom que integra a terceira edição de Razão do poema, considera a questão nas páginas 297-298.
[ii]
Estaríamos subestimando o alcance da crítica literária, ao afirmarmos isso?
Sobretudo porque a época – década de 60 – estimulava o conhecimento
interdisciplinar? É muito provável, assumimos. De todo modo, a obra
merquioriana não permite denominar seu autor de apenas crítico literário. O
fato é que o virtuoso domínio de diversas áreas tanto
qualifica Merquior como mais do que um crítico literário quanto lhe permitira exercer
a atividade com uma consistência diferenciada.
[iii] Sobre o "imperador da crítica", segundo Carlos Drummond, recomendamos as considerações de Adélia Bezerra de Meneses
Bolle, que esclarece introdutoriamente: “Álvaro Lins não pode ser caracterizado
em bloco, pois sofreu evoluções ao longo das sete séries do Jornal de Crítica.
Contudo, observa-se uma constante na sua obra: a reiterada repulsa por uma
crítica objetiva, pela imposição de leis, regras e normas à atividade
literária.” (p.61)
[iv]
Esse momento de transição se integra ao pensamento crítico merquioriano,
parece-nos, na admiração expressa por Augusto Meyer (“leitor ideal de poesia”,
segundo a dedicatória do primeiro ensaio de Razão do poema), por Mário de Andrade (“que foi, em suma, o melhor
crítico de poesia do modernismo”, p.72), e, especialmente, por Araripe Júnior, de
quem – nada mais, nada menos – extrai epígrafe para o ensaio “Crítica, razão e
lírica”. Tanto no livro de 1965 quanto em De
Anchieta a Euclides, Merquior assinala a superioridade do crítico cearense oitocentista em relação a Sílvio Romero e José Veríssimo. No que pese sua ostensiva
autonomia ideológica, muito provavelmente essa admiração por Araripe tenha
decorrido de influências de Afrânio Coutinho, notório defensor do crítico
parente do romancista de Iracema.
[v]
Em “A poesia modernista”, José Guilherme Merquior pronuncia sua “certeza de que
o espírito de 22 se conserva absolutamente vivo, porque depois dessa data e da
fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou verticalmente a
poesia brasileira”. (p.40) Suas convicções guardam pontos de contato com a
compreensão de João Cabral de Melo Neto, exposta em artigo sobre a geração de
45. Vale a pena ler o trecho seguinte: “A atitude dos poetas da geração de 45
também não podia ser uma atitude de revolta. Na verdade, as possibilidades do
terreno aberto pelo modernismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 30,
juntamente com os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate,
estabeleceram dentro desse território, núcleos de exploração importantes. Mas
se alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos
exploradores mostram-se cansados ou dispostos a abandonar o terreno, nada disso
é prova contra a riqueza que ali ainda existe. (p.743)
[vi]
No segundo volume de Crítica literária no
Brasil (obra, diga-se de passagem, de índole claramente polemista), Wilson
Martins classifica Merquior como crítico formalista, a propósito de Razão do poema, A astúcia da mímese e Formalismo
e tradição moderna. A leitura desses livros desautoriza, com veemência, o
rótulo, que, ao fim e ao cabo, Wilson Martins não define muito bem, tão vagos
quanto o de impressionista, gramático, sociológico etc. Não resistimos a destacar o
lugar desconfortável de José Guilherme Merquior em Crítica literária no Brasil. À parte a classificação referida, Razão do poema motiva insinuações de que
o ensaísta carioca não escrevia bem ou de modo inteligível (cf. pp.712-713). Sem comentários. Pertinentes são os puxões de orelha dados aos supostos equívocos de informações
históricas contidos em De Anchieta a
Euclides (cf. 804-806). Todavia, não há nenhuma palavra elogiosa (decerto
merecida) à análise, por exemplo, da ficção machadiana...
[vii]
Mais uma vez, recomendamos a leitura do ensaio de Wanderson Lima, páginas 301 e
302.
[viii]
Gostaríamos de deixar claro que essas referências se propõem mais a contextualizar,
e não propriamente a explicar o pendor polemista de Merquior. Esse esboço de
contextualização ganha muito com a leitura de um livro notável e utilíssimo do
prof. João Cezar de Castro Rocha – Crítica
literária: em busca do tempo perdido? –, no qual, diante da recorrência
secular da polêmica na história da nossa cultura, se procura reabilitar a
polêmica, nela se apontando um remédio para o marasmo do universo acadêmico
atual.
[ix]
Podemos aproximar tais concepções às do Mário de Andrade heroico, dos tempos da
Semana de Arte Moderna. O poeta paulista, na lição de João Luiz Lafetá sobre a
plataforma poética de A escrava não que
não era Isaura, “[...] combate o irracionalismo e reivindica ‘senão a
superioridade e a prioridade’, ao menos ‘o domínio, a orientação e a palavra
final’ para a Inteligência”. (p.175)
[x]
Posto que Mário de Andrade, levado pelo desencanto que o abateu nos últimos
anos de vida, tenha afirmado em balanço de sua geração: “Eu creio que os
modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém.”
(p.255)
[xi]
Em De Anchieta a Euclides (1977),
José Guilherme Merquior cita mais um nome responsável por essa inserção: “A
grandeza de Machado [de Assis] foi ter posto os instrumentos de expressão
forjados no primeiro Oitocentos – a língua literária elaborada por Alencar – a
serviço do aprofundamento filosófico da nossa visão poética, em sintonia com a
vocação mais íntima de toda a literatura do Ocidente. Foi com Machado de Assis
que a literatura brasileira entrou em diálogo com as vozes decisivas da
literatura ocidental.” (p.209)
[xii]
Outra conciliação diplomática que encontramos em Razão do poema, de que talvez o próprio Merquior não tivesse completa
consciência nessa época, é a das perspectivas de Afrânio Coutinho,
explicitamente defendida no livro, e a de Antonio Candido. Literatura e sociedade, publicado também em 1965, traz textos com
diversos pontos de afinidade com as ideias merquiorianas em germe sobre
crítica, posteriormente consolidadas.
[xiii]
O leitor de Merquior se depara, em muitos textos posteriores (p. ex., os de As ideias e as formas, volume publicado
em 1980), com ataques desferidos ao humanismo. No entanto, cabe reforçar (algo
evidente no contexto da discussão) que humanismo aí remete ao
pós-estruturalismo e a outras correntes de pensamento batizadas pelo autor de
“delírio irracionalista”. Ou seja, não está em questão o humanismo no sentido
de alçar o valor humano, em sua universalidade, como meta de compreensão e
elevação por parte das ciências e das artes – sentido no qual nós empregamos o
vocábulo.
[xiv]
Luiz Costa Lima, o teórico brasileiro mais preocupado com questão da mímese (ou
mímesis, conforme preferência gráfica do autor maranhense), avalia as reflexões do autor de Razão do poema sobre o assunto em “Um certo Merquior”, ensaio coligido no livro Intervenções.
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