domingo, 7 de junho de 2015

Para uma medicina liberal: O elixir do apocalipse

Boa parte dos livros de Merquior reúne ensaios primeiramente publicados em jornais e revistas, além de prefácios e conferências. O elixir do apocalipse (1983), irmão gêmeo de O argumento liberal (1983), pertence, pois, à família de Razão do poema (1965), o primogênito, a estreia do autor em volume. No entanto, diferentemente dessa coletânea, que continha textos com os quais o próprio jovem ensaísta advertia já não concordar de todo, O elixir do apocalipse é um auto-retrato fidedigno ao justo momento e período de publicação da obra. Eu arrisco dizer que aí está mais do que uma fotografia, mas um filme em que podemos assistir a cenas dos mais importantes interesses e pensamentos críticos de José Guilherme Merquior. Afinal, tratando suas duas centenas de páginas, conforme a edição da Nova Fronteira, de modernismo, de marxismo, de psicanálise, de liberalismo, de tradição moderna, de iluminismo, de história, de política, de poesia – que tema do leque merquioriano estaria faltando?

 
O livro divide-se em três seções, “Letras ocidentais”, “Interlúdio antipsicanalítico” e “Temas brasileiros”, valendo-se ainda de uma introdução intitulada “A chave de Benjamin”, que esclarece a razão do título do volume. Dos 30 textos aí reunidos a maioria havia sido publicada antes ou no Jornal do Brasil ou na Folha de São Paulo ou n’O Estado de São Paulo, entre os anos de 1981 a 1983. Veiculado pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, em dezembro de 1972, “Sofotulafai” é o ensaio mais antigo, acerca do poeta mineiro Abgar Renault, a quem Merquior dedica O elixir do apocalipse.

 
Há algo nesse livro que particularmente me agrada: a oportunidade, mais condensada, de o leitor tomar conhecimento de como o autor vinha militando em defesa de uma crítica liberal e combatendo a arte de vanguarda, o marxismo e a psicanálise – os “três grandes mitos da nossa época” (1983, p.31) –, desde o anúncio, com todo o alarde típico de sua pena destemida, expresso em As ideias e as formas, dois anos antes (1981). A disposição da linguagem de Merquior à polêmica pode, às vezes, nos levar a inferir ou acreditar que esse pensador, para derrubar uma única árvore, desmatasse toda uma floresta. A leitura de O elixir do apocalipse desfaz de pronto tal imagem deturpada, revelando-se chave de compreensão de toda uma obra. Impossível ignorar a visão prismática apresentada nesse livro.

 
No campo da vanguarda, sobre duas das figuras centrais do euromodernismo: embora T. S. Eliot “nem sempre [tenha conseguido] evitar [...] o solipsismo artístico, o solilóquio da forma obscura”, (1983, p.22) o poeta anglo-americano é digno de louvor pelo “pioneirismo temático”, por “sua valorização da composição em detrimento da inspiração”, pela “sua figura de poeta culto”, pelo “seu saudável empenho em encarar a poesia como ‘perfeição da linguagem comum’, e não como uma mirífica superfala hermética”, pela sua “notabilíssima fibra rítmica” e ainda pela “beleza ainda mal reconhecida do seu teatro em verso”. (1983, p.21) E se o Finnegans Wake, de James Joyce, seria “uma das formas do tédio”, (1983, p.24) seu Ulisses consistiria “numa das mais consistentes musicalizações da técnica literária até hoje”. (1983, p.23)

 
Quanto à psicanálise, José Guilherme Merquior diagnostica que ela “não é uma medicina da mente – é uma enfermidade do intelecto, um projeto iluminista que virou superstição burguesa”, (1983, p.63) mas considera Sigmund Freud um “soberbo escritor”, (1983, p.71) contextualmente mal interpretado pela maioria de seus discípulos do avançado século XX e responsável pela destruição definitiva do “conceito ingênuo do animal racional”, mas que jamais teria a este abandonado “como ideal”. (1983, p.75)

 
A respeito do marxismo, chamo a atenção especialmente para o penúltimo ensaio do livro, “Cultura marxista”, um texto de caráter autobiográfico, de sóbria e delicada comoção, que me impele a vislumbrar o que não seria, em matéria de elegância literária e de importância histórica e cultural, uma obra do tipo Minha formação nas mãos de Merquior... Na verdade, trata-se de passagem menos pessoal do que geracional, na medida em que se propõe a esclarecer “que sentido teve o marxismo na iniciação intelectual de uma geração brasileira”, (1983, p.196) a da década de 1960. Em vez de se esbaldar numa postura mea culpa de penitência de supostos erros juvenis, Merquior assinala aspectos positivos da riquíssima tradição instruída e inspirada por Karl Marx e Friedrich Engels. O marxismo teria estimulado a sensibilidade social em jovens brasileiros que, em princípio, se direcionavam acima de tudo a discussões de ordem estética. Esse depoimento de O elixir do apocalipse ilumina o que parece ter fundamentado a crítica literária de Merquior. Ele e seus companheiros de geração, lidos em Georg Lukács e Walter Benjamin, mesmo após terem estabelecido discordâncias relativas a tais pensadores, se certificariam da “impossibilidade, desde então, de desprezar os humilhados e ofendidos, moral e intelectualmente”, de “dar de ombros ante o nosso povo sofrido”, a tal ponto que “nem nosso liberalismo bem-pensante nem nosso populismo demagógico cogitavam de reconhecer e acatar”. (1983, p.197-198)

 
É isso mesmo? José Guilherme Merquior, o monstro do liberalismo no Brasil dos primeiros anos da década de 80, está atribuindo responsabilidade da origem de sua própria sensibilidade social ao entusiasmo juvenil com a estética marxista, e, como se não bastasse, recriminando a faceta socialmente insensível de uma postura liberal do País? Sim – é o que está escrito, àquela página de O elixir do apocalipse – uma revelação preciosa, acredito, das motivações merquiorianas em cobrar da literatura e, especialmente, da poesia um contato com o mundo que o crítico viria a acusar a arte de vanguarda de desdenhar.

 
A tal propósito, não entrarei nas minúcias da questão da mímese (a “astúcia da mímese) conforme a compreendeu Merquior, ponto de partida imprescindível para se esclarecer essa sua cobrança de crítico não limitado a interpretar, mas também convicto do dever de julgar a obra literária, advogado dos valores do cânone, que justifica os temas de seus ensaios por estas palavras, de substrato benjaminiano: “Goethe e os românticos, T. S. Eliot ou Canetti, bem como, entre os nossos, Machado de Assis ou Monteiro Lobato, Mário de Andrade ou Drummond, são aqui focalizados sobretudo pelo seu teor de mensagem – essa noção-tabu para a crítica formalista [...]”. (1983, p.x)

 
Fosse como fosse, se José Guilherme Merquior desaprovava a antimodernidade do alto modernismo europeu, pode-se constatar no livro de 1983 que isso não implica que o poeta, o romancista, para satisfazer as exigências merquiorianas, precisasse abraçar de peito aberto a situação tal como estivesse da sociedade burguesa ocidental. O ensaísta, que dali a pouco se elegeria membro da Academia Brasileira de Letras, em artigo escrito em dezembro de 1981, saudava do então novo prêmio Nobel, Elias Canetti, “sua concepção do papel do escritor, definida numa homenagem aos cinquenta anos de Hermann Broch: o grande escritor é a um só tempo uma exalação da sua época, e seu adversário crítico”. (1983, p.44-45) Essa postura, me parece, coincide com uma “crítica da modernidade, mas uma crítica que se pretende interna, logo reformista”, (1994, p.28) com a aspiração “mais [de] organizar o sistema do que [de] substituí-lo por um outro”. (FERRY, 1994, p.28)

 
Em comemorações realizadas pela ABL e em texto coligido em Mal-estar na modernidade, Sergio Paulo Rouanet já detectou que o empenho do amigo em militar com as armas da polêmica contra a arte de vanguarda, o marxismo e a psicanálise era sinal antes de inteligência do que de intransigência, como pretendo que tenha ficado mais claro nos parágrafos e nas citações acima. Todavia, ouso corrigir Rouanet, quando afirma que “Merquior reconhecia grandeza histórica” em Karl Marx, mas que o “chamado ‘marxismo ocidental’ [...] não encontra a mínima indulgência aos olhos de Merquior”. (2003, p.297) Em “O texto como resultado”, homenagem a Antonio Candido publicada em volume de 1979, nosso ensaísta – notório admirador da abordagem e da concepção crítica do homenageado – concluía: “No fundo, Antonio Candido subscreveria sem hesitar o lema do jovem Lukács [...] o social, na obra de arte, é antes de tudo a forma”. (1979, p.123) Mais adiante, ao dar início à formulação de orientações para os novos críticos brasileiros, sugeria “uma simples mudança de ênfase, dentro dessa correta perspectiva ‘lukácsiana’ do social como forma”. (1979, p.128)

 
Noutro episódio da explanação de suas idéias, dessa vez em entrevista à Folha de São Paulo, concedida em setembro de 1987, Merquior, falando de marxismo, considera o saldo filosófico da obra de Jürgen Habermas negativo, embora sinalize aí o crédito pelo fato de o representante da Escola de Frankfurt
 
 
[...] com grande coragem, recusa[r] a condenação barata do mundo moderno que nós encontramos em toda uma série de pensadores contemporâneos de grande prestígio e influência. Acho que nisso ele [Habermas] tem toda razão e é uma atitude muito válida e valente de sua parte – essa recusa desse repúdio à modernidade. (disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/leituras_15set00.shtml&gt)

 
Com isso, gostaria de convencer o leitor de que a polêmica merquioriana não condescende com o autoritarismo e o dogmatismo do pensamento, incentivando ela mesma, a sua linguagem de afirmações e contestações contundentes, uma leitura menos monolítica do que prismática. Na maior parte das vezes, é necessário lermos mais de um ensaio ou livros diferentes de José Guilherme Merquior, para atestarmos as nuances e eventuais variantes de sua ensaística.

 
No primeiro ensaio de O elixir do apocalipse, Dr. Merquior prescreve a seguinte dieta mental: “Neo-iluministas de todo o mundo, uni-vos na redescoberta de Goethe, que é valorização da vida sem a estridência histérica de seu grande admirador, Nietzsche...”. (1983, p.10) Disso, contudo, não se inferirá que o colesterol zaratustriano é totalmente maléfico. Em “O estruturalismo dos pobres”, de 1974, nosso médico, curado dos ares sombrios da Floresta Negra, condenava: “[...] os heideggerianos não tomaram o mínimo conhecimento da arrasadora crítica de Nietzsche à falsa ‘profundidade’ em filosofia”. (1975, p.8) Cerca de 10 anos depois, no volume exclusivamente dedicado a avaliar o pensamento de Michel Foucault, também veio a recordar: “Marx, Nietzsche e Freud consideravam-se, orgulhosamente, herdeiros do Iluminismo.” (1985, p.224)

 
Em texto virulento como a “Falência da poesia”, famoso por desancar a geração poética de 45, o primeiro parágrafo assevera que esta “é, do ponto de vista do valor literário, uma dege(ne)ração”, pois do “seu programa, frustrado desde a primeira hora, não ficou nenhum resultado no plano do monumento, do definitivo”. (2013, p.51) Páginas depois, em contraste com essa proposital generalização, aprendemos que um poeta desse grupo, Domingos Carvalho da Silva, é “autor de coisas boas sobre a poética da poética” e “de poemas como ‘O Terciário’, de rara beleza metafórica”. (2013, p.55) Aproveito o ensejo do exemplo para notar que não condizia totalmente com a realidade, portanto, a retratação do próprio Merquior, registrada em “Comportamento da musa: a poesia desde 22”, um dos textos de O elixir do apocalipse, no tocante à sua – por ele mesmo acusada – anterior condenação “em bloco” do “‘malsinado neoparnaso’ de 45”. (1983, p.172)

 
Razão do poema, O fantasma romântico e outros ensaios (1980), Crítica (1990) e outros livros atestam a alta conta na qual Merquior sempre teve o modernismo brasileiro. “O modernismo e três de seus poetas”, de O elixir do apocalipse, texto que comenta a obra de Mário de Andrade, a de Manuel Bandeira e a de Jorge de Lima (este mais admirado pelo crítico àquela altura), reforça essa estima. Todavia, ao tratar de Monteiro Lobato, que recebe a excelsa condecoração crítica do autor, ao ser referido como o “Voltaire de Taubaté”, José Guilherme Merquior aplaude a perda de “paciência com a nostalgia pateta do nosso atraso rural” (1983, p.96) nesse “arauto e quixote da nossa modernidade” que “jamais topou o modernismo”. (1983, p.96) O euromodernismo? Não: o que se tornava o modernismo brasileiro mesmo, com seu “fraco” pelo “caboclismo de Catulo da Paixão Cearense”, “o poeta mais cacete do Brasil”. (1983, p.95)

 
Esse comportamento discursivo merquioriano, a) no qual a argumentação tanto se lança com agressiva e destruidora generalização quanto pondera e discerne aspectos positivos e negativos em determinada obra; esse comportamento b) de investir ensaios ou livros inteiros na contestação de pensamentos influentes do século XX (marxismo, estruturalismo, pós-estruturalismo, psicanálise, por exemplo), mas sem desprezar a oportunidade de divulgar e explicar, conquanto criticamente, esses mesmos pensamentos; esse comportamento discursivo c) que se plasma, preferencialmente, na forma ensaística, e geralmente se demarca “aquém do jargão e além do bordão”; d) que tem por lema que “o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão [...] de compreender”; (disponível em <<http://academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1327&sid=330>>), e, além do mais, e) a preocupação vigilante com o estado da educação brasileira, manifesta no último ensaio, “A lepra linguística”, de O elixir do apocalipse... esse comportamento discursivo, enfim, é o que venho propondo enfeixar no conceito de pedagogia da polêmica, que desenvolverei em outra oportunidade.

 
O belíssimo título do livro ironiza o declínio e o fim, que jamais chegam, da civilização ocidental, profetizados pelas influentes manifestações filosóficas do que Merquior intitulou de irracionalismo. Suas páginas se prestam como remédio (0% de amargor; 100% de ótimo sabor) contra esse elixir de alquimistas que procuravam e ainda procuram apregoar o desencanto para com a racional e científica química. Nas palavras do próprio médico: “O etos da alta cultura literária (e artística) do nosso tempo é de fato a rejeição apocalíptica da dinâmica sociológica do mundo moderno – do universo social definido pela progressiva conjunção de técnica e democracia, eficiência e liberdade.” (1983, p.xi)

 
Assim sendo, José Guilherme Merquior reconverte Walter Benjamin, apropriado pelo pensamento irracionalista como um de seus garotos-propaganda, na condição de “antídoto teórico” (1983, p.xi) contra esse mesmo pensamento irracionalista, efetuando a seguinte reação benjaminiana: “ainda podemos seguir seu preceito metodológico, sem no entanto acatar seu preconceito apocalíptico de profeta da contra-história”. (1983, p.xxiii)

 
Referências bibliográficas
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvores, o animal, o homem. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio, 1994.M
MERQUIOR, José Guilherme. “Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45” in Razão do poema. 3ª Ed. São Paulo: É Realizações, 2013. pp.51-58.
______. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

______. O elixir do apocalipse. Coleção Logos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

______. “O estruturalismo dos pobres” in O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.7-14.

______. “O texto como resultado: notas sobre a teoria da crítica em Antonio Candido” in ARINOS, Afonso et alii. Esboço de figura: homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979. pp.121-131.

ROUANET, Sergio Paulo. “Merquior vivo” in Mal-estar na modernidade. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp.294-303.

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