Boa
parte dos livros de Merquior reúne ensaios primeiramente publicados em jornais
e revistas, além de prefácios e conferências. O elixir do apocalipse (1983), irmão gêmeo de O argumento liberal (1983), pertence, pois, à família de Razão do poema (1965), o primogênito, a
estreia do autor em volume. No entanto, diferentemente dessa coletânea, que
continha textos com os quais o próprio jovem ensaísta advertia já não concordar
de todo, O elixir do apocalipse é um
auto-retrato fidedigno ao justo momento e período de publicação da obra. Eu
arrisco dizer que aí está mais do que uma fotografia, mas um filme em que
podemos assistir a cenas dos mais importantes interesses e pensamentos críticos
de José Guilherme Merquior. Afinal, tratando suas duas centenas de páginas,
conforme a edição da Nova Fronteira, de modernismo, de marxismo, de
psicanálise, de liberalismo, de tradição moderna, de iluminismo, de história,
de política, de poesia – que tema do leque merquioriano estaria faltando?
O livro divide-se em três seções, “Letras
ocidentais”, “Interlúdio antipsicanalítico” e “Temas brasileiros”, valendo-se ainda de uma
introdução intitulada “A chave de Benjamin”, que esclarece a razão do título do
volume. Dos 30 textos aí reunidos a maioria havia sido publicada antes ou no Jornal do Brasil ou na Folha de São Paulo ou n’O Estado de São Paulo, entre os anos de
1981 a 1983. Veiculado pelo Suplemento
Literário de Minas Gerais, em
dezembro de 1972, “Sofotulafai” é o ensaio mais antigo, acerca do poeta mineiro
Abgar Renault, a quem Merquior dedica O
elixir do apocalipse.
Há algo nesse livro que particularmente me agrada: a
oportunidade, mais condensada, de o leitor tomar conhecimento de como o autor
vinha militando em defesa de uma crítica liberal e combatendo a arte de
vanguarda, o marxismo e a psicanálise – os “três grandes mitos da nossa época”
(1983, p.31) –, desde o anúncio, com todo o alarde típico de sua pena
destemida, expresso em As ideias e as formas,
dois anos antes (1981). A disposição da linguagem de Merquior à polêmica pode,
às vezes, nos levar a inferir ou acreditar que esse pensador, para derrubar uma
única árvore, desmatasse toda uma floresta. A leitura de O elixir do apocalipse desfaz de pronto tal imagem deturpada,
revelando-se chave de compreensão de toda uma obra. Impossível ignorar a visão
prismática apresentada nesse livro.
No campo da vanguarda, sobre duas das figuras
centrais do euromodernismo: embora T. S. Eliot “nem sempre [tenha conseguido]
evitar [...] o solipsismo artístico, o solilóquio da forma obscura”, (1983, p.22)
o poeta anglo-americano é digno de louvor pelo “pioneirismo temático”, por “sua
valorização da composição em detrimento da inspiração”, pela “sua figura de
poeta culto”, pelo “seu saudável empenho em encarar a poesia como ‘perfeição da
linguagem comum’, e não como uma mirífica superfala hermética”, pela sua
“notabilíssima fibra rítmica” e ainda pela “beleza ainda mal reconhecida do seu
teatro em verso”. (1983, p.21) E se o Finnegans
Wake, de James Joyce, seria “uma das formas do tédio”, (1983, p.24) seu Ulisses consistiria “numa das mais
consistentes musicalizações da técnica literária até hoje”. (1983, p.23)
Quanto à psicanálise, José Guilherme Merquior diagnostica
que ela “não é uma medicina da mente – é uma enfermidade do intelecto, um
projeto iluminista que virou superstição burguesa”, (1983, p.63) mas considera
Sigmund Freud um “soberbo escritor”, (1983, p.71) contextualmente mal
interpretado pela maioria de seus discípulos do avançado século XX e
responsável pela destruição definitiva do “conceito ingênuo do animal
racional”, mas que jamais teria a este abandonado “como ideal”. (1983, p.75)
A respeito do marxismo, chamo a atenção especialmente
para o penúltimo ensaio do livro, “Cultura marxista”, um texto de caráter
autobiográfico, de sóbria e delicada comoção, que me impele a vislumbrar o que
não seria, em matéria de elegância literária e de importância histórica e cultural,
uma obra do tipo Minha formação nas
mãos de Merquior... Na verdade, trata-se de passagem menos pessoal do que
geracional, na medida em que se propõe a esclarecer “que sentido teve o
marxismo na iniciação intelectual de uma geração brasileira”, (1983, p.196) a
da década de 1960. Em vez de se esbaldar numa postura mea culpa de penitência de supostos erros juvenis, Merquior
assinala aspectos positivos da riquíssima tradição instruída e inspirada por Karl
Marx e Friedrich Engels. O marxismo teria estimulado a sensibilidade social em jovens
brasileiros que, em princípio, se direcionavam acima de tudo a discussões de
ordem estética. Esse depoimento de O
elixir do apocalipse ilumina o que parece ter fundamentado a crítica
literária de Merquior. Ele e seus companheiros de geração, lidos em Georg
Lukács e Walter Benjamin, mesmo após terem estabelecido discordâncias relativas
a tais pensadores, se certificariam da “impossibilidade, desde então, de
desprezar os humilhados e ofendidos, moral e intelectualmente”, de “dar de
ombros ante o nosso povo sofrido”, a tal ponto que “nem nosso liberalismo
bem-pensante nem nosso populismo demagógico cogitavam de reconhecer e acatar”.
(1983, p.197-198)
É isso mesmo? José Guilherme Merquior, o monstro do
liberalismo no Brasil dos primeiros anos da década de 80, está atribuindo
responsabilidade da origem de sua própria sensibilidade social ao entusiasmo
juvenil com a estética marxista, e, como se não bastasse, recriminando a faceta
socialmente insensível de uma postura liberal do País? Sim – é o que está escrito,
àquela página de O elixir do apocalipse
– uma revelação preciosa, acredito, das motivações merquiorianas em cobrar da
literatura e, especialmente, da poesia um contato com o mundo que o crítico
viria a acusar a arte de vanguarda de desdenhar.
A tal propósito, não entrarei nas minúcias da
questão da mímese (a “astúcia da mímese) conforme a compreendeu Merquior, ponto
de partida imprescindível para se esclarecer essa sua cobrança de crítico não
limitado a interpretar, mas também convicto do dever de julgar a obra literária,
advogado dos valores do cânone, que justifica os temas de seus ensaios por
estas palavras, de substrato benjaminiano: “Goethe e os românticos, T. S. Eliot
ou Canetti, bem como, entre os nossos, Machado de Assis ou Monteiro Lobato, Mário
de Andrade ou Drummond, são aqui focalizados sobretudo pelo seu teor de mensagem – essa noção-tabu para a
crítica formalista [...]”. (1983, p.x)
Fosse como fosse, se José Guilherme Merquior
desaprovava a antimodernidade do alto modernismo europeu, pode-se constatar no
livro de 1983 que isso não implica que o poeta, o romancista, para satisfazer
as exigências merquiorianas, precisasse abraçar de peito aberto a situação tal
como estivesse da sociedade burguesa ocidental. O ensaísta, que dali a pouco se
elegeria membro da Academia Brasileira de Letras, em artigo escrito em dezembro
de 1981, saudava do então novo prêmio Nobel, Elias Canetti, “sua concepção do
papel do escritor, definida numa homenagem aos cinquenta anos de Hermann Broch:
o grande escritor é a um só tempo uma exalação da sua época, e seu adversário
crítico”. (1983, p.44-45) Essa postura, me parece, coincide com uma “crítica da
modernidade, mas uma crítica que se pretende interna, logo reformista”, (1994, p.28) com a aspiração “mais [de]
organizar o sistema do que [de] substituí-lo por um outro”. (FERRY, 1994, p.28)
Em comemorações realizadas pela ABL e em texto
coligido em Mal-estar na modernidade,
Sergio Paulo Rouanet já detectou que o empenho do amigo em militar com as armas
da polêmica contra a arte de vanguarda, o marxismo e a psicanálise era sinal
antes de inteligência do que de intransigência, como pretendo que tenha ficado
mais claro nos parágrafos e nas citações acima. Todavia, ouso corrigir Rouanet,
quando afirma que “Merquior reconhecia grandeza histórica” em Karl Marx, mas
que o “chamado ‘marxismo ocidental’ [...] não encontra a mínima indulgência aos
olhos de Merquior”. (2003, p.297) Em “O texto como resultado”, homenagem a
Antonio Candido publicada em volume de 1979, nosso ensaísta – notório admirador
da abordagem e da concepção crítica do homenageado – concluía: “No fundo,
Antonio Candido subscreveria sem hesitar o
lema do jovem Lukács [...] o social, na obra de arte, é antes de tudo a
forma”. (1979, p.123) Mais adiante, ao dar início à formulação de orientações
para os novos críticos brasileiros, sugeria “uma simples mudança de ênfase, dentro dessa correta perspectiva
‘lukácsiana’ do social como forma”. (1979, p.128)
Noutro episódio da explanação de suas idéias, dessa
vez em entrevista à Folha de São Paulo,
concedida em setembro de 1987, Merquior, falando de marxismo, considera o saldo
filosófico da obra de Jürgen Habermas negativo, embora sinalize aí o crédito
pelo fato de o representante da Escola de Frankfurt
[...] com grande coragem, recusa[r] a
condenação barata do mundo moderno que nós encontramos em toda uma série de
pensadores contemporâneos de grande prestígio e influência. Acho que nisso ele
[Habermas] tem toda razão e é uma atitude muito válida e valente de sua parte –
essa recusa desse repúdio à modernidade. (disponível em
http://almanaque.folha.uol.com.br/leituras_15set00.shtml>)
Com isso, gostaria de convencer o leitor de que a
polêmica merquioriana não condescende com o autoritarismo e o dogmatismo do
pensamento, incentivando ela mesma, a sua linguagem de afirmações e
contestações contundentes, uma leitura menos monolítica do que prismática. Na
maior parte das vezes, é necessário lermos mais de um ensaio ou livros
diferentes de José Guilherme Merquior, para atestarmos as nuances e eventuais
variantes de sua ensaística.
No primeiro ensaio de O elixir do apocalipse, Dr. Merquior prescreve a seguinte dieta
mental: “Neo-iluministas de todo o mundo, uni-vos na redescoberta de Goethe,
que é valorização da vida sem a estridência histérica de seu grande admirador,
Nietzsche...”. (1983, p.10) Disso, contudo, não se inferirá que o
colesterol zaratustriano é totalmente maléfico. Em “O estruturalismo dos
pobres”, de 1974, nosso médico, curado dos ares sombrios da Floresta Negra,
condenava: “[...] os heideggerianos não tomaram o mínimo conhecimento da
arrasadora crítica de Nietzsche à falsa ‘profundidade’ em filosofia”. (1975,
p.8) Cerca de 10 anos depois, no volume exclusivamente dedicado a avaliar o
pensamento de Michel Foucault, também veio a recordar: “Marx, Nietzsche e Freud
consideravam-se, orgulhosamente, herdeiros do Iluminismo.” (1985, p.224)
Em texto virulento como a “Falência da poesia”,
famoso por desancar a geração poética de 45, o primeiro parágrafo assevera que
esta “é, do ponto de vista do valor literário, uma dege(ne)ração”, pois do “seu
programa, frustrado desde a primeira hora, não ficou nenhum resultado no plano
do monumento, do definitivo”. (2013, p.51) Páginas depois, em contraste com
essa proposital generalização, aprendemos que um poeta desse grupo, Domingos
Carvalho da Silva, é “autor de coisas boas sobre a poética da poética” e “de
poemas como ‘O Terciário’, de rara beleza metafórica”. (2013, p.55) Aproveito o
ensejo do exemplo para notar que não condizia totalmente com a realidade,
portanto, a retratação do próprio Merquior, registrada em “Comportamento da
musa: a poesia desde 22”, um dos textos de O
elixir do apocalipse, no tocante à sua – por ele mesmo acusada – anterior condenação
“em bloco” do “‘malsinado neoparnaso’ de 45”. (1983, p.172)
Razão do poema,
O fantasma romântico e outros ensaios
(1980), Crítica (1990) e outros
livros atestam a alta conta na qual Merquior sempre teve o modernismo
brasileiro. “O modernismo e três de seus poetas”, de O elixir do apocalipse, texto que comenta a obra de Mário de
Andrade, a de Manuel Bandeira e a de Jorge de Lima (este mais admirado pelo
crítico àquela altura), reforça essa estima. Todavia, ao tratar de Monteiro
Lobato, que recebe a excelsa condecoração crítica do autor, ao ser referido
como o “Voltaire de Taubaté”, José Guilherme Merquior aplaude a perda de
“paciência com a nostalgia pateta do nosso atraso rural” (1983, p.96) nesse
“arauto e quixote da nossa modernidade” que “jamais topou o modernismo”. (1983,
p.96) O euromodernismo? Não: o que se tornava o modernismo brasileiro mesmo,
com seu “fraco” pelo “caboclismo de Catulo da Paixão Cearense”, “o poeta mais
cacete do Brasil”. (1983, p.95)
Esse comportamento discursivo merquioriano, a) no
qual a argumentação tanto se lança com agressiva e destruidora generalização
quanto pondera e discerne aspectos positivos e negativos em determinada obra;
esse comportamento b) de investir ensaios ou livros inteiros na contestação de
pensamentos influentes do século XX (marxismo, estruturalismo,
pós-estruturalismo, psicanálise, por exemplo), mas sem desprezar a oportunidade
de divulgar e explicar, conquanto criticamente, esses mesmos pensamentos; esse
comportamento discursivo c) que se plasma, preferencialmente, na forma
ensaística, e geralmente se demarca “aquém do jargão e além do bordão”; d) que
tem por lema que “o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do
conhecer e da paixão [...] de compreender”; (disponível em <<http://academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1327&sid=330>>),
e, além do mais, e) a preocupação vigilante com o estado da educação
brasileira, manifesta no último ensaio, “A lepra linguística”, de O elixir do apocalipse... esse
comportamento discursivo, enfim, é o que venho propondo enfeixar no conceito de
pedagogia da polêmica, que desenvolverei
em outra oportunidade.
O belíssimo título do livro ironiza o declínio e o
fim, que jamais chegam, da civilização ocidental, profetizados pelas influentes
manifestações filosóficas do que Merquior intitulou de irracionalismo. Suas
páginas se prestam como remédio (0% de amargor; 100% de ótimo sabor) contra
esse elixir de alquimistas que procuravam e ainda procuram apregoar o
desencanto para com a racional e científica química. Nas palavras do próprio
médico: “O etos da alta cultura literária (e artística) do nosso tempo é de
fato a rejeição apocalíptica da dinâmica sociológica do mundo moderno – do
universo social definido pela progressiva conjunção de técnica e democracia,
eficiência e liberdade.” (1983, p.xi)
Assim sendo, José Guilherme Merquior reconverte
Walter Benjamin, apropriado pelo pensamento irracionalista como um de seus
garotos-propaganda, na condição de “antídoto teórico” (1983, p.xi) contra esse
mesmo pensamento irracionalista, efetuando a seguinte reação benjaminiana: “ainda
podemos seguir seu preceito metodológico, sem no entanto acatar seu preconceito
apocalíptico de profeta da contra-história”. (1983, p.xxiii)
Referências bibliográficas
FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvores, o
animal, o homem. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Ensaio, 1994.M
MERQUIOR, José Guilherme. “Falência da poesia ou
uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45” in Razão do poema. 3ª Ed. São Paulo: É Realizações, 2013. pp.51-58.
______. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
______. O elixir do apocalipse. Coleção Logos.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______. “O
estruturalismo dos pobres” in O
estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de
Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975. pp.7-14.
______. “O texto
como resultado: notas sobre a teoria da crítica em Antonio Candido” in ARINOS,
Afonso et alii. Esboço de figura:
homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979. pp.121-131.
ROUANET, Sergio
Paulo. “Merquior vivo” in Mal-estar na
modernidade. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp.294-303.
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