No esforço de fazer nossas
reflexões aqui veiculadas integrarem a pesquisa e a interpretação atuais da
obra de José Guilherme Merquior, entrevistamos o professor Marcus Vinicius de
Freitas, 55, natural de Belo Horizonte-MG. Docente titular de Teoria da
Literatura na UFMG, é também ele crítico, poeta e romancista, tendo publicado,
entre outros, os livros Contradições da
modernidade (UNICAMP, 2012, ensaio) e Peixe
morto (Autêntica, 2009, romance).
Agradecemos-lhe
imensamente a oportunidade de publicarmos, neste blog, as informações, a
compreensão, o esclarecimento e as opiniões expressos na entrevista que se
segue, realizada ao longo dessas duas últimas semanas.
*
* *
QMM:
Marcus, gostaria de começar esta entrevista perguntando em que momento e
circunstâncias de sua vida se deu o primeiro contato com o nome e a obra de
José Guilherme Merquior. E, dessas “impressões iniciais” para os dias de hoje,
houve alguma significativa alteração de sua compreensão sobre a figura e o
pensamento desse autor?
M:
Bem, comecei a estudar literatura em 1982, em meio à febre estruturalista e desconstrucionista
no Brasil. Nessa altura, os textos do Merquior não chegavam aos graduandos. Seu
nome aparecia aqui e ali, mas sempre sob o véu da desconfiança. Ou seja, era um
nome barrado por e para quem quisesse parecer superior. Obviamente, muitos anos
depois, ao conhecer a obra do autor, ficaram claros para mim os motivos daquela
ausência, daquele sequestro, que não eram outros senão o fato de que ele, desde
muito antes, era um ácido crítico da moda teórica. Basta lembrar que Estruturalismo dos pobres e outras questões
é de 1975. Comprei meu primeiro livro do autor, De Praga a Paris, em 1997 ou 1998, por aí. Essa história do
Estruturalismo havia sido publicada em português em 1991, mesmo ano da morte de
Merquior. Ou seja, apesar de ter começado a estudar literatura dez anos antes
de sua morte, só vim a conhecer seu texto depois de completados meus anos de
formação. Mesmo as polêmicas da década de 1980, que estavam no Jornal do Brasil, não me chamaram a
atenção, porque Merquior ficava fora do nosso radar de estudantes naqueles anos,
o que, de maneira geral, acontece até hoje. Lembro muito de um caso: um colega
de geração, mestrando de filosofia, que escrevia dissertação sobre Foucault,
leu, por dever de ofício, ali à volta de 1987, o Michel Foucault ou o niilismo de Cátedra, que saíra em 1985, e nos
confirmou que não deveríamos perder tempo com aquele conservador. Portanto, não
o lemos, e nos sentimos o máximo com essa rebeldia de analfabetos. Não ler
Merquior era sinal de superioridade intelectual (rio ou choro?). Conto essa
história porque ela me parece exemplar da formação de toda uma geração, não
apenas da minha pessoa. Fui iniciar minha leitura do Merquior em 1997, por
conta própria, quando fazia doutorado na Brown University, e quem me apresentou
o autor foi David Hirsch, no livro Deconstructing
Literature: criticism after Auschwitz, uma demolidora crítica da filosofia
e da teoria literária francesas pós-68, livro esse em que Merquior constitui
uma referência central. Dessas impressões iniciais, a figura dele só cresceu
para mim. Ao voltar do doutorado, em 2000, aos poucos fui tomando mais contato
com a obra, usando alguns de seus textos em sala de aula. Em especial, depois
de 2004, quando deixei a disciplina Literatura Portuguesa (na qual eu já usava
um artigo instigante dele sobre Pessoa) e passei a ensinar Teoria da
Literatura, sua bibliografia foi ficando mais familiar. Desde lá, passei a usar
sistematicamente o texto “A natureza da lírica” (que está em A astúcia da mímese) nas aulas de teoria
da poesia, e De Praga a Paris, que me
guiou em repetidos cursos de mestrado sobre as tendências críticas do século
XX. Nesse percurso, fui catando aqui e ali um ou outro livro que encontrava,
até que, em 2010, decidi ir atrás de todos eles de uma vez. Com os sebos
virtuais, não foi àquela altura muito complicado, e logo juntei tudo, já
pensando em fazer um trabalho sistemático sobre o autor, que fosse um projeto
de pesquisa ou uma disciplina de doutorado. Mas a oportunidade ainda levou
alguns anos para se cristalizar de alguma forma.
QMM:
E neste segundo semestre letivo de 2015, você ministra, no doutorado da
Faculdade de Letras da UFMG, uma disciplina que tem por referência central justamente
o pensamento de Merquior, sobretudo a partir da publicação de As ideias e as formas (1981). Em sua
opinião, o que esse autor tem a nos ensinar de mais relevante, nestas primeiras
décadas do século XXI?
M:
Como eu disse, depois de juntar todo o material, comecei a estudá-lo aos poucos
(pois é uma obra vasta e multifacetada, por isso difícil), ainda por cima em
meio a outras demandas, o que dificultava e ainda dificulta um trabalho
sistemático. Mas, desde 2013, vi que já tinha alguma segurança para propor uma
disciplina, o que é sempre uma oportunidade de estudar mais e de atrair outras
pessoas para o mesmo estudo, e assim poder avançar de maneira mais consistente.
A primeira ideia era fazer um curso monográfico (proposta que ainda tenho em
mente), mas achei que seria mais produtivo, num primeiro momento, colocar a
obra do Merquior no contexto maior de suas próprias leituras, e assim nasceu a
disciplina ora em curso, que se chama “Crítica Liberal”, cujo texto motivador é
o artigo intitulado “Tarefas da crítica liberal”, de As ideias e as formas, ao lado de artigos sobre pós-moderno e sobre
liberalismo que estão no mesmo livro, e também em O fantasma romântico e outros ensaios (1980) e em O argumento liberal (1983). O caso é
que, para compreender Merquior, fui atrás de suas referências, e aí um mundo se
abriu. A relevância da sua obra, portanto, pode ser aquilatada, no mínimo, por
esses dois aspectos: por um lado, sua proposição de uma crítica liberal (entendida
como a grande síntese do seu pensamento) é fundamental para este momento, em
especial no Brasil, quando o combate ao sectarismo ideológico e o resgate da
racionalidade crítica, os dois pilares de sua proposta, são necessidades
prementes nesse começo de século XXI; por outro lado, a obra de Merquior coloca
o leitor em face de uma bibliografia riquíssima, solenemente ignorada nos
departamentos de humanidades no Brasil, bibliografia esta que, a cada dia, se
revela mais fundamental para entender nossa situação contemporânea.
QMM:
De fato, no conjunto e mesmo em suas partes, a obra de J.G.M. abarca um universo de bibliografias e de áreas do
conhecimento acadêmico: crítica e teoria literárias, filosofia, sociologia,
economia, política, havendo ainda articulações fundamentais entre o político e
o cultural. E como fica, a seu ver, esse desafio crítico de lidar com uma obra
assim constituída?
M:
Como eu disse antes, ao procurar entender a obra de Merquior, fui ler as suas
leituras, e daí um mundo se abriu: Ernest Gellner, Daniel Bell, Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises, Luc Ferry, Alain Renaut, Raymond Aron, Ortega y Gasset, Isaiah Berlin, Helmut Schoeck, Lionel Trilling, Frank Kermode, David Hirsch, Roger Scruton, René Girard, o próprio Tzvetan Todorov - em processo de auto-avaliação muito bem captada pelo Merquior -, entre muitos outros nomes, além de autores que não estão nos seus textos, mas que lhe fazem excelente companhia, tais como André Comte-Sponville, Alan Sokal, Jean Bricmont, Eric Voegelin, Thedore Dalrymple, Eduardo Gianetti da Fonseca, João Cezar de Castro Rocha, Daphne Patai, Will Corral, Alfred Schütz, Stefan Sweig, Thomas Sowell, John Ellis, Marjorie Perloff, Anthony O'Hear, Robert Grant, Bryan Boyd, todos foram incorporados ao processo de investigação de sua obra no contexto da disciplina, e por isso passaram a constituir o corpus do curso que propus e que ora sigo ministrando. Uma disciplina assim constituída pode, a princípio, contribuir muito mais para a compreensão do autor do que uma visão monográfica sobre seu trabalho, o que poderia, inadvertidamente, reiterar seu isolamento em nosso meio intelectual.
QMM:
Ao planejar a oferta dessa disciplina, que expectativas você tinha relativas à
recepção por parte dos alunos? Essas expectativas vêm se concretizando?
M: Alguns dos onze alunos do atual seminário, entre doutorandos e mestrandos, chegaram a comentar que se interessaram pelo curso pelo fato inédito e curioso de não conhecerem e nunca terem lido um autor sequer de todos aqueles mencionados, o que mostra a importância da oferta. Eu tinha expectativas baixas. Pensava que não teria mais do que dois dos meus orientandos em sala, que fariam o curso em deferência ao orientador (risos). Para minha grata surpresa, o grupo é bem maior do que isso, e muitíssimo interessado. Um dos alunos, que conhecia previamente um bocado da bibliografia, e que ansiava por um curso dessa natureza, chegou a dizer que o curso significava para ele a Queda da Bastilha (risos).Com certeza não é para tanto, mas entendo a hipérbole, porque a renovação da bibliografia é uma necessidade premente, e constitui o melhor que um professor pode fazer neste instante.
QMM:
O fato de Merquior não ter se concentrado numa única área de intervenção
intelectual (a crítica literária, por exemplo) não teria colaborado para a
menor lembrança de seu nome em áreas específicas? Ou o senhor discorda dessa
constatação?
M:
Discordo. Se fosse assim, Roland Barthes ou Michel Foucault não teriam a
fortuna crítica que tiveram. Não se trata, portanto, de uma menor lembrança,
mas de um “esquecimento” sistemático.
QMM:
Há quem tenha afirmado e ainda afirme que Merquior não chegou a elaborar
pensamento próprio, sendo antes uma espécie de divulgador professoral de ideias
alheias. Qual sua opinião sobre esse tipo de comentário?
M:
É muito curioso que essa afirmação seja tão recorrente, e que venha sobretudo
de críticos alinhados com o pós-modernismo e o desconstrucionismo, tão afeitos
à bricolage e à citação, ou ao
“trabalho da citação”, para usar o termo de Compagnon.Não há como não
discordar. Não vejo Merquior como um bricoleur,
e muito menos como um divulgador, ainda que se deva creditar a ele uma participação
decisiva na introdução, entre nós brasileiros, de muitas discussões teóricas de
largo fôlego, como o Estruturalismo, o Desconstrucionismo, a Escola de
Frankfurt ou o pensamento de Walter Benjamin, por exemplo, o que constitui
mérito, não demérito. Merquior, ao contrário, foi um articulador de sínteses muito
pessoais, como tem reiterado, e com toda a razão, João Cezar de Castro Rocha,
editor da merquiorana, ora em processo de resgate. Aliás, aproveito a oportunidade
para saudar publicamente esse trabalho importantíssimo que o João Cezar está
fazendo ao assumir a tarefa urgente e difícil de reeditar o Merquior. Voltando
às sínteses feitas por Merquior, sua visão do Marxismo Ocidental, ou sobre os
liberalismos antigo e moderno são profundamente originais, e dão um salto à
frente na compreensão dessas ideias de largo alcance. O mesmo pode-se dizer de
sua história do Estruturalismo. O modo como ele avança as ideias de Daniel Bell
sobre a contracultura modernista, ao mostrar os seus efeitos específicos na
colonização da Teoria pela arte do Alto Modernismo, é igualmente muito pessoal.
Esses são apenas alguns exemplos.
QMM:
No caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, edição de 23 de
agosto deste ano, uma das mais recorrentes qualificações atribuídas a José
Guilherme Merquior é “conformista”. Gostaria de que avaliasse a validade e a
permanência desse termo com que, via de regra, nos deparamos em textos sobre o
ensaísta.
M:
Merquior não foi nada “conformista”, e muito menos conservador, no sentido
rasteiro de alguém que não aceita a mudança, e que elogia a tradição como
oposição ao presente e ao futuro. Isso é apenas o estereótipo, o rótulo com o
qual mais facilmente se desqualifica um oponente poderoso. O fato é que
Merquior não era socialmente nem politicamente revolucionário, e sim um
reformador. Aliás, muito ativo como reformador, inclusive como homem de estado.
Mas, desde cedo, ele se vacinara contra a doença ideológica do
revolucionarismo, ou seja, desde sempre combateu a contracultura modernista e
antimoderna. E como nossa paisagem intelectual é povoada por esse fantasma,
aqueles que não fazem vênias a tal simulacro são vistos como “conformistas”,
quando é exatamente o contrário. Para usar o símile platônico, Merquior sempre
propôs, para si mesmo e para todos nós, que saíssemos da caverna, mas a força
das sombras sobre o muro é mesmo muito forte, e explica o rótulo indevido de
conformista.
QMM:
A polêmica marca a obra de Merquior não apenas em episódios de confrontos com
interlocutores específicos, dentre os quais se contaram inclusive amigos do
autor, como Sergio Paulo Rouanet, em torno de Foucault e o Iluminismo. Livros
como O marxismo ocidental, De Praga a Paris parecem revelar que a
polêmica estruturava o discurso do pensamento merquioriano, sistematicamente
ansioso por estabelecer diálogos. Julga que o “caráter polêmico” constitua
entrave para uma compreensão melhor dessa obra atualmente?
M:
Entendo que não. Merquior compreende a polêmica como processo de instituição do
espaço público. Se a sua obra se reduzisse a essa vertente erística, não teria
efeitos duradouros. E, mesmo no interior de sua argumentação, a verve polêmica
e o humor possuem também a função de anácrise, de levar o interlocutor a
expressar sua posição, com vistas ao avanço do debate em busca da verdade, nunca
como puro gosto sofístico pela polêmica. Sob esse ponto de vista, a obra de
Merquior é, por excelência, dialógica, para usar o termo bakhtiniano.
QMM:
Poderia apontar algum aspecto da obra de Merquior, seja no âmbito político,
seja no literário ou cultural, que estivesse datado? E o que pensa a respeito
da militância do ensaísta contra a arte de vanguarda?
M:
Estamos em um momento de redescoberta do pensamento e da obra de Merquior. O
que se revela, a cada página relida, é uma visão muito consciente, e mesmo
visionária, dos objetos em análise, sejam eles a política, a literatura ou a
cultura. Para responder à sua pergunta, vai ser preciso, primeiro, revisitarmos
a obra em detalhe, o que mal está começando. Nesse momento, diria que nada me
parece datado. Um ponto que talvez fique no passado é o desdém com que ele,
seguindo Gellner, avaliava a hipótese sombria de Daniel Bell sobre a possível
massificação contemporânea da atitude contracultural da vanguarda modernista.
Bell achava que o radicalismo contracultural do Alto Modernismo, restrito ao
gueto artístico, estava em vias de se massificar na sociedade pós-industrial, o
que poderia levar a uma estetização da violência. Merquior, na esteira de
Gellner, achava essa hipótese improvável, e afirmava que o radicalismo da
vanguarda ficaria sempre restrito aos vanguardistas, fazendo da cultura
contemporânea apenas uma cultura irônica, em que o sujeito quer mudar o mundo,
destruir a arte e acabar com a ciência só até a primeira dor de barriga, quando
ele corre em busca dos ganhos da sociedade moderna. A permanência da vanguarda
na contemporaneidade seria uma espécie de cultura do feriado, relaxamento de
fim de semana, sem grandes efeitos sobre a sociedade moderna. Mas eventos como
os de 2013 no Brasil, comuns a outras paragens, dão margem a pensar que Bell
podia estar certo, e Merquior errado. O fato de Merquior não ter conhecido a
rede mundial de computadores é relevante para pensar sobre o que ficou ou não
datado em sua análise da cultura.
QMM:
Há marcas decisivas na obra de Merquior, nos anos 80, motivadas por estudos em
solo britânico. Como se sabe, o diplomata e membro da Academia Brasileira de
Letras doutorou-se também pela London School of Economics, orientado por Ernest
Gellner.Você obteve o seu PhD nos Estados Unidos, na Brown University. Essa
experiência acadêmica em território anglófono provocou alguma modificação
significativa em sua visão histórica e política de Brasil? Qual ou quais?
M:
Em relação especificamente ao Merquior, como já disse, foi nos EUA que o
descobri de fato, através de um professor de Brown, chamado David Hirsch. Em um
sentido mais amplo, aquela experiência de quatro anos foi decisiva para mim,
mas tem algo de acaso. A Teoria francesa, colonizada pelo caráter abstrato do
Alto Modernismo, ou seja, a teoria do pensamento que “não quer dizer nada”
(como propunha Derrida na Gramatologia,
e como bem nos lembra Luc Ferry em sua crítica do Pensamento 68), essa teoria
que se quer puro pensamento performático e puro indício, e que se construiu em
torno do maio de 68 na França, invadiu a partir dos anos 80 a academia
anglófona (Roger Scruton dá um bom retrato dessa invasão em seu artigo
intitulado “Confessions of a Skeptical Francophile”, que pode ser acessado no
site do autor). Sendo assim, minha chance de fugir dela no Brasil e
reencontrá-la nos EUA era enorme. No entanto, dei a sorte de ir para um
departamento de Estudos Brasileiros e Portugueses onde alguns dos professores
eram e são profundamente críticos dessa invasão, não por xenofobia, é óbvio, mas
por ver nela um exercício de tolice. George Monteiro, meu orientador de
doutorado, e Onésimo Almeida estão entre estes críticos, assim como David
Hirsch, Tom Skidmore, e alguns outros. Com essa sorte, pude abrir os meus
ouvidos e a minha cabeça para uma tradição de pensamento anglófono, na qual eu
era virtualmente analfabeto, mas que intuitivamente eu buscava, e que me serviu
ao mesmo tempo como antídoto contra a colonização contracultural da teoria, e
como guia para uma compreensão mais organizada da nossa realidade. Essa
compreensão tem dimensões históricas, culturais, filosóficas, sociais e
econômicas. Uma vez imerso nessa nova realidade, o Brasil se me apareceu como
um país que recusa sistematicamente a modernidade. Marcelo de Paiva Abreu, um
dos grandes economistas brasileiros, formado pelo London School of Economics,
costuma dizer, seguindo uma metáfora encontrada em Conrad, que o Brasil não
consegue ultrapassar a linha de sombra que demarca, na vida de um indivíduo ou
de uma sociedade, a separação entre a juventude e a idade adulta. O Brasil quer
permanecer adolescente, e essa é a nossa tragédia, que tanto incomodava o
Merquior.
QMM:
Por fim, acredita que o social-liberalismo defendido por José Guilherme
Merquior poderia hoje ditar as diretrizes do melhor projeto político para o
Brasil?
M:
Não tenho pretensões de reformador, como Merquior tinha, nem estofo para isso.
Quero mesmo é escrever romances. Mas concordo, de maneira geral, com o centro
da posição dele, que defendia uma sociedade economicamente liberal, sem
ingenuidades de laissez faire. O
liberismo de Merquior ultrapassava a social democracia à europeia, que durante
um tempo parece ter sido seu ideal. Roberto Campos, profundo admirador de
Merquior, gostava de citar Vaclav Havel para o seu amigo e pupilo, dizendo que
a social democracia acaba sempre como o caminho mais curto para o
terceiro-mundismo. Campos foi não apenas admirador, mas de certa maneira tutor
de Merquior em matéria econômica (foi sob a embaixada de Campos que Merquior
fez sua tese na London School com Ernest Gellner). Para Campos, e para o
liberismo de Merquior, o estado se mantém forte, mas apenas como provedor de
externalidades – educação básica, saúde pública, que é antes de tudo
saneamento, e ainda justiça e segurança –, não mais do que isso, deixando a
produção de riqueza ao empreendedorismo privado. Sob esse ponto de vista,
melhor do que a social democracia (que se propõe como um avanço do socialismo)
é a democracia social (que constitui um avanço do capitalismo), o que não se
trata apenas de jogo semântico, mas de radical diferença de ponto de partida. Merquior
era mais constitucionalista, Campos tinha horror a constitucionalice. Uma visão
à la Merquior, mitigada pela crítica de Campos pode ser talvez o caminho. Para
alcançar essa sociedade mais rica e mais aberta, como ambos imaginavam, vai ser
preciso antes que o Brasil incorpore as melhores tradições da cultura e os
avanços da ciência, deixando de lado o voluntarismo espasmódico, o delírio
interpretativo, o chauvinismo cultural, o revolucionarismo inconsequente.
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