Desde
muito cedo, José Guilherme Merquior manifestou apreço especial pela poesia de
Gonçalves Dias, que talvez compusesse, para o ensaísta, a pentarquia da
literatura brasileira, ao lado de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade,
Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto. Ajuda a dimensionar algo do valor
atribuído à obra que “consolidou” o romantismo brasileiro, segundo Antonio
Candido, certo choque doméstico de sentimentos ocorrido em data trágica para o
futebol nacional: quando familiares chegaram a casa, lamentando a derrota do
Brasil para o Uruguai, no Maracanã, pela Copa do Mundo de 1950, o pequeno José
Guilherme, de nove anos, os recebeu eufórico, comemorando a leitura de toda a
poesia do grande maranhense.
A
essa anedota biográfica, aqui mencionada sem maiores pretensões, pode-se acrescentar
uma coincidência curiosa: o ensaísta publicou seu primeiro livro, Razão do poema, com idade muito próxima (23
anos) a que tinha o poeta indianista, ao também estrear em volume, publicando
seus Primeiros cantos. Consciente
disso ou não, o jovem crítico literário homenageou a grande figura de nossas
letras, inserindo naquele livro uma de suas mais iluminadas análises, “O poema
do lá”, sobre a famosíssima “Canção do exílio”.
A
propósito, o aparecimento de Razão do poema,
em 1965, não foi simples publicação de um livro. Foi um gesto, eu quase diria,
uma declaração de amor às duas palavras-referências com que o título do volume
se forma. Num dos ensaios, o autor cobra razão tanto de quem escrevia poesia
quanto de quem a interpretava. Para Merquior, a lírica brasileira deveria
seguir os novos rumos desbravados pelo modernismo, deixando para trás a
tradição de uma poesia predominantemente governada menos pela reflexão e pela
depuração criativa do que pela espontaneidade e pelo sentimentalismo. Essa
orientação, exposta em “Crítica, razão, lírica”, encontra forte apoio no
prólogo aos Primeiros cantos gonçalvinos:
Casar assim o pensamento com o sentimento – o
coração com o entendimento – a ideia com a paixão – cobrir tudo isto com a
imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o
sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a Poesia grande e santa –
a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder
traduzir. (1959, p.101)
A
passagem acima não permite, é verdade, verificarmos plena coincidência de
concepções poéticas entre José Guilherme Merquior e Gonçalves Dias. O
romantismo do autor de “I-Juca-Pirama” parece forçá-lo a dar um acento ao papel
da imaginação que a crítica merquioriana não aprovará. Inclusive aquela
impotência “definidora” e “tradutora” da poesia, confessada pelo maranhense, vai
de encontro à profissão de fé, pronunciada como advertência em Razão do poema, em que o ensaísta assume
a intransigente postura de “nunca render-se ao ininteligível, sem jamais
declarar o inefável, a essência de toda realidade, ainda a mais esquiva, mais
obscura e mais contraditória”. (2013, p.19-20) No entanto, talvez seja realmente
o caso de pensarmos, da parte de Gonçalves Dias, antes numa obediência à
etiqueta romântica do que numa convicção pessoal, de um autor cujo “traço
peculiar consiste porventura nessa difícil coexistência da medida com o vigor,
num tempo em que os temperamentos literários mais poderosos se realizavam pelo
transbordamento, valendo o equilíbrio quase como sinal de mediania afetiva e
artística”. (CANDIDO, 2000, p.71)
O
autor dessa lição ainda hoje válida e pertinente sobre a obra do poeta
indianista, aliás, deu seu pareceu sobre o pensamento crítico de Merquior
nestes termos:
[José
Guilherme Merquior] foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e
isto já se prenunciava nos primeiros escritos. Lembro como sinal precursor o
ensaio que escreveu bem moço sobre a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias,
fazendo uma descoberta que dava a medida de sua imaginação crítica, –
entendendo-se por imaginação crítica a capacidade pouco frequente de elaborar
conceitos que têm o teor das expressões metafóricas ou o voo das criações
ficcionais. (apud PEREIRA, 2002,
p.479)
Por
ocasião da cerimônia em que se oficializou seu ingresso, como membro, na
Academia Brasileira de Letras, o autor de O
argumento liberal finalizou o discurso, observando:
De resto,
ser recebido, na Casa de Machado de Assis, pelo líder da Literatura maranhense [Josué
Montello] desperta em mim grata reminiscência: a lembrança de que foi pelas
Letras do Maranhão que iniciei meu convívio com a musa morena – a Poesia do
Brasil. Meu pai gostava de recitar ao filho menino os versos de Gonçalves Dias
– e ao poeta do I Juca Pirama permaneço
obstinadamente fiel, na galeria de minhas máximas admirações.
[...]
Já vedes,
portanto, que minha entrada em Literatura se deu na fase oral; não exatamente
naquela conceituada por Freud e, no entanto, pejada da mesma carga afetiva...
Como poderia eu imaginar que, 35 anos mais tarde, me caberia o privilégio de
proferir, desta tribuna, o merecido elogio de Paulo Carneiro, um
sobrinho-bisneto de Ana Amélia, a Beatriz do mesmo Gonçalves Dias?... Bem vos
dizia ao começar: paira sobre a vida desta Cadeira um círculo mágico de
afinidades eletivas, banhadas de brasilidade. (disponível em <<http://www.academia.org.br/academicos/jose-guilherme-merquior/discurso-de-posse>>)
CANDIDO,
Antonio. “Gonçalves Dias consolida o romantismo” in Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9ª ed. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2000. pp.71-85. 2º vol.
DIAS, Antônio
Gonçalves. Poesia completa e prosa
escolhida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1959.
MERQUIOR, José
Guilherme. Razão do poema: ensaios de
crítica e estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
______. “Discurso
de posse na Academia Brasileira de Letras”. Disponível em <<http://www.academia.org.br/academicos/jose-guilherme-merquior/discurso-de-posse>>.
Acesso a 03 de setembro de 2015.
PEREIRA, José
Mario. “O fenômeno Merquior” in O
Itamaraty na cultura brasileira. Brasília: Francisco Alves, 2002.
pp.475-506.
Gostaríamos de convidá-los para a pré-estreia do documentário "José Guilherme Merquior - Paixão pela Razão" e lançamento do livro "Formalismo & Tradição Moderna", ambos produzidos pela É Realizações. Toda divulgação é muito bem-vinda! Fernanda Santos (mkt@erealizacoes.com.br)
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