Agradeço
a Thaís Amélia Araújo Rodrigues o
acesso ao exemplar da revista aqui consultado!
Ø Próximo
Post QMM: 17 de maio de 2017
“O
Carpeaux dos outros”, de João Cezar de Castro Rocha, “O humanismo crítico em A estética de Lévi-Strauss”, de Eduardo
Cesar Maia, “Reler o passado sem abandonar o presente”, de Fábio Andrade, “A
inteligência integrativa”, de Peron Rios, e “Lições sobre o liberalismo para os
liberais de agora”, de Joel Pinheiro Fonseca, compõem o dossiê de dezesseis
páginas dedicado a José Guilherme Merquior, capa da 5ª edição da revista Café Colombo, publicada no ano passado.
Castro
Rocha já se notabilizou no universo merquioriano. Desde o início desta década, o
professor da UERJ coordena o projeto Biblioteca José Guilherme Merquior da
editora É Realizações, que até agora conta com seis volumes. Pode-se dizer, a
propósito, que a pertinente homenagem da Café Colombo é quase um produto
derivado desse mesmo projeto da editora paulista, visto que algo de “O Carpeaux
dos outros” consta como posfácio em O
liberalismo: antigo e moderno (2015), o texto de Cesar Maia repete,
conquanto alterado, um dos posfácios de A
estética de Lévi-Strauss (2013), assim como Peron Rios também contribui com
texto em Formalismo & tradição
moderna (2016) e Fábio Andrade em De
Anchieta a Euclides (2014), títulos estes relançados pela É Realizações.
Não
poderia ser diferente: as considerações de João Cezar de Castro Rocha servem de
abertura ao dossiê, e objetivam contextualizar e situar o lugar de José
Guilherme Merquior na história da inteligência brasileira. O parâmetro ao qual
recorre, contudo, se volta aos laços que o autor de O marxismo ocidental estabeleceu com a intelectualidade europeia, analisados
com base na correspondência volumosa e de interlocução variada que o diplomata
legou e se tornou arquivo sob a guarda da É Realizações. O texto de Castro
Rocha ratifica a projeção internacional de Merquior no âmbito acadêmico, tendo
sido admirado por ninguém menos do que Claude Lévi-Strauss, Ernest Gellner e
Raymond Aron – simplesmente, três nomes centrais do cenário acadêmico do Velho
Continente. A publicação de livros originalmente em inglês e francês, e esse
reconhecimento de inequívoca credibilidade aos esforços do ensaísta e diplomata
carioca, convencem João Cezar de Castro Rocha de que José Guilherme Merquior
teria sido um caso raro de “Carpeaux deles [dos europeus e norte-americanos]”.
Otto
Maria Carpeaux (1900-1978), nascido na Áustria, imigrou para o Brasil, fugindo
ao nazismo. Aqui produziu uma obra titânica, inclusive sobre nossa literatura,
que ainda hoje merece atenção dos estudiosos da área. Para Castro Rocha,
Merquior superou a enorme dificuldade de inverter a ordem tradicional de uma
equação histórica, a do europeu ou norte-americano que vem a nosso País difundir
o conhecimento e, por vezes, explicar as coisas brasileiras a nós mesmos. Sendo
assim, o ensaísta brasileiro ousaria discutir temas europeus (liberalismo, marxismo, estruturalismo etc) para os
próprios europeus.
Não
obstante a força dessa aposta interpretativa, de fato ainda em esboço, fica
desse viés de contextualização uma impressão teimosa de um engrandecimento de
Merquior escorado na autoridade de ilustres nomes estrangeiros, o que se salienta
na fórmula “o Carpeaux deles” ou “o Carpeaux dos outros”. No posfácio de O liberalismo: antigo e moderno, João
Cezar de Castro Rocha sustenta que a originalidade merquioriana, que muitos não
enxergam, residiria justamente naquela inversão de papéis. De qualquer forma, a
equação ressente-se do peso dos jogos de poder geopolíticos: o ensaísta
brasileiro não parece ocupar ainda na Europa e nos EUA o lugar equivalente ao
de Carpeaux no Brasil. Melhor para nós. Pior para eles?
Eduardo
Cezar Maia parte da constatação de que “Merquior soube guiar seu pensamento em
franco diálogo com as diversas correntes teóricas de seu tempo, mas sem
submeter sua perspectiva crítica a qualquer forma de dogmatismo metodológico ou
ideológico – como era bastante comum num período de debates tão intensos”.
(p.14-15) Sem ferir explicitamente a questão, ao frisar tal aspecto da obra
merquioriana, para mim Cezar Maia aponta para a condição polêmica desta, não em
sentido restrito de ter travado polêmicas com interlocutores específicos e
individualizados, como Marilena Chauí e mesmo Paulo Sergio Rouanet, mas em
sentido lato de se constituir inteira uma grande peça de polêmica, cujo alvo
maior – ainda a meu ver – consistiria em estimular o outro a pensar perante
ideias diversas senão adversárias.
As
páginas do dossiê acerca de A estética de
Lévi-Strauss assinalam algo importante, com que o leitor se depara
especialmente nestas linhas: “A contribuição do estruturalismo lévi-straussiano
ao pensamento estético da época, propõe Merquior, é reconhecer a autonomia da
função estética sem abdicar da consideração de que toda forma artística
funciona como uma abertura para o real, salvando assim, simultaneamente, a especificidade
do fenômeno artístico e seu conteúdo cognitivo.” (p.16-17) Tem-se aí o
desmembramento da concepção de realismo e de mímese segundo José Guilherme
Merquior, já comentada em post anterior deste Blog (17 de abril de 2017).
Nessa
mesma linha, podemos situar a resenha de Fábio Andrade, que elege a história da
literatura brasileira De Anchieta a
Euclides (1977) um belo exemplo de como “reler o passado sem abandonar o
presente”, aproximando José Guilherme Merquior de Antonio Candido, o quase
centenário autor de Formação da
literatura brasileira (1959), por ambos terem consumado “o consórcio entre
a visão social e a visão estética”. (p.19) A propósito, o leitor interessado
nessa identificação crítica entre Candido e Merquior deverá consultar a
homenagem que o segundo prestou ao primeiro, no ensaio “O texto como resultado
(notas sobre a teoria da crítica em Antonio Candido”, contido no volume Esboço de figura (1979), organizado por
Celso Lafer (editora Duas Cidades).
A
ideia de integração, ou mais precisamente de “inteligência integrativa”,
reaparece nas páginas de Peron Rios acerca do último lançamento merquioriano da
É Realizações: Formalismo & tradição
moderna. Nessa parte do dossiê, também se nota que “Merquior captou o
sentido da arte a partir da confluência entre a forma e o zeitgeist [isto é, o espírito do tempo, ou da época]”. (p.20)
Torna-se oportuno, com isso, observar que se a postura racionalista é a coluna
vertebral do pensamento de José Guilherme Merquior, é verdade também que esse
organismo intelectual se alimentou, nos seus pouco mais de 30 anos de
existência, do combate ao formalismo.
Por
falar em “reler o passado sem abandonar o presente”, as “Lições sobre o
liberalismo para os liberais de agora”, último texto do dossiê, assinado por
Joel Pinheiro da Fonseca, toca um problema tão atual quanto parte de sua
solução se apresenta pertinente: “É curioso que Merquior seja um nome pouco
reconhecido mesmo no movimento liberal e libertário que ganha corpo no Brasil.
Não temos fugido à regra: como tantos outros movimentos, o movimento liberal
nasce sem consciência de seu passado e por isso tem dificuldade em criar uma
tradição de pensamento nativa. Mergulhar na obra de Merquior, da qual O liberalismo: antigo e moderno –
reeditado em 2014 pela É Realizações – é um ponto alto, pode nos ajudar a
romper a amnésia intelectual.” (p.22)
Cumpre,
entretanto, uma ressalva à resenha de Pinheiro da Fonseca, referente ao fato de
acusar o ensaísta falecido em 1991 de responsabilidade parcial no “vício
brasileiro” de ignorar as contribuições da tradição liberal brasileira, como
comprovaria o próprio O liberalismo:
antigo moderno, no qual “não tem uma palavra a dizer sobre o liberalismo no
Brasil, embora nomes como o de José Bonifácio ou Joaquim Nabuco não tenham
deixado nada a dever, em matéria de visão social (se não de reflexão
filosófica), a nenhum de seus contemporâneos”. (p.23) Não concordo com essa
atribuição de culpa. Antes de tudo, porque cabe ter mente a publicação original
do volume ter sido em inglês, dentro de um projeto editorial direcionado a um
público anglófono. E se não há menção aos nossos liberais oitocentistas no
último livro de Merquior, não se pode de jeito nenhum afirmar que os tenha
ignorado no seu pensamento histórico-político. O brasileiro que os desconhece
ou os menospreza há de assumir, sozinho, toda a culpa de seu próprio
desconhecimento e menosprezo, com certeza incentivados pela não leitura da obra de José Guilherme
Merquior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário