terça-feira, 2 de maio de 2017

Dossiê Merquior na Café Colombo


Agradeço a Thaís Amélia Araújo Rodrigues o acesso ao exemplar da revista aqui consultado!

Ø  Próximo Post QMM: 17 de maio de 2017

“O Carpeaux dos outros”, de João Cezar de Castro Rocha, “O humanismo crítico em A estética de Lévi-Strauss”, de Eduardo Cesar Maia, “Reler o passado sem abandonar o presente”, de Fábio Andrade, “A inteligência integrativa”, de Peron Rios, e “Lições sobre o liberalismo para os liberais de agora”, de Joel Pinheiro Fonseca, compõem o dossiê de dezesseis páginas dedicado a José Guilherme Merquior, capa da 5ª edição da revista Café Colombo, publicada no ano passado.

Castro Rocha já se notabilizou no universo merquioriano. Desde o início desta década, o professor da UERJ coordena o projeto Biblioteca José Guilherme Merquior da editora É Realizações, que até agora conta com seis volumes. Pode-se dizer, a propósito, que a pertinente homenagem da Café Colombo é quase um produto derivado desse mesmo projeto da editora paulista, visto que algo de “O Carpeaux dos outros” consta como posfácio em O liberalismo: antigo e moderno (2015), o texto de Cesar Maia repete, conquanto alterado, um dos posfácios de A estética de Lévi-Strauss (2013), assim como Peron Rios também contribui com texto em Formalismo & tradição moderna (2016) e Fábio Andrade em De Anchieta a Euclides (2014), títulos estes relançados pela É Realizações.

Não poderia ser diferente: as considerações de João Cezar de Castro Rocha servem de abertura ao dossiê, e objetivam contextualizar e situar o lugar de José Guilherme Merquior na história da inteligência brasileira. O parâmetro ao qual recorre, contudo, se volta aos laços que o autor de O marxismo ocidental estabeleceu com a intelectualidade europeia, analisados com base na correspondência volumosa e de interlocução variada que o diplomata legou e se tornou arquivo sob a guarda da É Realizações. O texto de Castro Rocha ratifica a projeção internacional de Merquior no âmbito acadêmico, tendo sido admirado por ninguém menos do que Claude Lévi-Strauss, Ernest Gellner e Raymond Aron – simplesmente, três nomes centrais do cenário acadêmico do Velho Continente. A publicação de livros originalmente em inglês e francês, e esse reconhecimento de inequívoca credibilidade aos esforços do ensaísta e diplomata carioca, convencem João Cezar de Castro Rocha de que José Guilherme Merquior teria sido um caso raro de “Carpeaux deles [dos europeus e norte-americanos]”.

Otto Maria Carpeaux (1900-1978), nascido na Áustria, imigrou para o Brasil, fugindo ao nazismo. Aqui produziu uma obra titânica, inclusive sobre nossa literatura, que ainda hoje merece atenção dos estudiosos da área. Para Castro Rocha, Merquior superou a enorme dificuldade de inverter a ordem tradicional de uma equação histórica, a do europeu ou norte-americano que vem a nosso País difundir o conhecimento e, por vezes, explicar as coisas brasileiras a nós mesmos. Sendo assim, o ensaísta brasileiro ousaria discutir temas europeus (liberalismo, marxismo, estruturalismo etc) para os próprios europeus.

Não obstante a força dessa aposta interpretativa, de fato ainda em esboço, fica desse viés de contextualização uma impressão teimosa de um engrandecimento de Merquior escorado na autoridade de ilustres nomes estrangeiros, o que se salienta na fórmula “o Carpeaux deles” ou “o Carpeaux dos outros”. No posfácio de O liberalismo: antigo e moderno, João Cezar de Castro Rocha sustenta que a originalidade merquioriana, que muitos não enxergam, residiria justamente naquela inversão de papéis. De qualquer forma, a equação ressente-se do peso dos jogos de poder geopolíticos: o ensaísta brasileiro não parece ocupar ainda na Europa e nos EUA o lugar equivalente ao de Carpeaux no Brasil. Melhor para nós. Pior para eles?

Eduardo Cezar Maia parte da constatação de que “Merquior soube guiar seu pensamento em franco diálogo com as diversas correntes teóricas de seu tempo, mas sem submeter sua perspectiva crítica a qualquer forma de dogmatismo metodológico ou ideológico – como era bastante comum num período de debates tão intensos”. (p.14-15) Sem ferir explicitamente a questão, ao frisar tal aspecto da obra merquioriana, para mim Cezar Maia aponta para a condição polêmica desta, não em sentido restrito de ter travado polêmicas com interlocutores específicos e individualizados, como Marilena Chauí e mesmo Paulo Sergio Rouanet, mas em sentido lato de se constituir inteira uma grande peça de polêmica, cujo alvo maior – ainda a meu ver – consistiria em estimular o outro a pensar perante ideias diversas senão adversárias.

As páginas do dossiê acerca de A estética de Lévi-Strauss assinalam algo importante, com que o leitor se depara especialmente nestas linhas: “A contribuição do estruturalismo lévi-straussiano ao pensamento estético da época, propõe Merquior, é reconhecer a autonomia da função estética sem abdicar da consideração de que toda forma artística funciona como uma abertura para o real, salvando assim, simultaneamente, a especificidade do fenômeno artístico e seu conteúdo cognitivo.” (p.16-17) Tem-se aí o desmembramento da concepção de realismo e de mímese segundo José Guilherme Merquior, já comentada em post anterior deste Blog (17 de abril de 2017).

Nessa mesma linha, podemos situar a resenha de Fábio Andrade, que elege a história da literatura brasileira De Anchieta a Euclides (1977) um belo exemplo de como “reler o passado sem abandonar o presente”, aproximando José Guilherme Merquior de Antonio Candido, o quase centenário autor de Formação da literatura brasileira (1959), por ambos terem consumado “o consórcio entre a visão social e a visão estética”. (p.19) A propósito, o leitor interessado nessa identificação crítica entre Candido e Merquior deverá consultar a homenagem que o segundo prestou ao primeiro, no ensaio “O texto como resultado (notas sobre a teoria da crítica em Antonio Candido”, contido no volume Esboço de figura (1979), organizado por Celso Lafer (editora Duas Cidades).

A ideia de integração, ou mais precisamente de “inteligência integrativa”, reaparece nas páginas de Peron Rios acerca do último lançamento merquioriano da É Realizações: Formalismo & tradição moderna. Nessa parte do dossiê, também se nota que “Merquior captou o sentido da arte a partir da confluência entre a forma e o zeitgeist [isto é, o espírito do tempo, ou da época]”. (p.20) Torna-se oportuno, com isso, observar que se a postura racionalista é a coluna vertebral do pensamento de José Guilherme Merquior, é verdade também que esse organismo intelectual se alimentou, nos seus pouco mais de 30 anos de existência, do combate ao formalismo.

Por falar em “reler o passado sem abandonar o presente”, as “Lições sobre o liberalismo para os liberais de agora”, último texto do dossiê, assinado por Joel Pinheiro da Fonseca, toca um problema tão atual quanto parte de sua solução se apresenta pertinente: “É curioso que Merquior seja um nome pouco reconhecido mesmo no movimento liberal e libertário que ganha corpo no Brasil. Não temos fugido à regra: como tantos outros movimentos, o movimento liberal nasce sem consciência de seu passado e por isso tem dificuldade em criar uma tradição de pensamento nativa. Mergulhar na obra de Merquior, da qual O liberalismo: antigo e moderno – reeditado em 2014 pela É Realizações – é um ponto alto, pode nos ajudar a romper a amnésia intelectual.” (p.22)


Cumpre, entretanto, uma ressalva à resenha de Pinheiro da Fonseca, referente ao fato de acusar o ensaísta falecido em 1991 de responsabilidade parcial no “vício brasileiro” de ignorar as contribuições da tradição liberal brasileira, como comprovaria o próprio O liberalismo: antigo moderno, no qual “não tem uma palavra a dizer sobre o liberalismo no Brasil, embora nomes como o de José Bonifácio ou Joaquim Nabuco não tenham deixado nada a dever, em matéria de visão social (se não de reflexão filosófica), a nenhum de seus contemporâneos”. (p.23) Não concordo com essa atribuição de culpa. Antes de tudo, porque cabe ter mente a publicação original do volume ter sido em inglês, dentro de um projeto editorial direcionado a um público anglófono. E se não há menção aos nossos liberais oitocentistas no último livro de Merquior, não se pode de jeito nenhum afirmar que os tenha ignorado no seu pensamento histórico-político. O brasileiro que os desconhece ou os menospreza há de assumir, sozinho, toda a culpa de seu próprio desconhecimento e menosprezo, com certeza incentivados pela não leitura da obra de José Guilherme Merquior.

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