quinta-feira, 27 de agosto de 2015

4º encontro GEM 2015

Após as férias do meio deste ano letivo, o GEM voltou a reunir-se hoje, para discutir pauta especial. Em lugar de dar prosseguimento, conforme o programa, à leitura de “Crítica, razão, lírica”, um dos ensaios coligidos em Razão do poema (1965), decidiu-se avaliar o material sobre José Guilherme Merquior publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, de domingo passado (23 de agosto).

A exemplo do apontamento das deficiências e limitações da crítica merquioriana, na opinião de Nelson Ascher (conclusões interpretativas, muitas vezes, aquém do aparato bibliográfico) e de Luiz Costa Lima (compreensões limitadas por conservadorismo político e intelectual), nosso Grupo reforçou para si o dever de não estabelecermos relação idolátrica nem com a figura nem com a obra de José Guilherme Merquior, assumindo postura crítica frente a qualquer autor ou texto, sempre passíveis de questionamentos – postura, afinal de contas, constantemente assumida pelo próprio autor de O véu e a máscara.
Contudo, sublinhou-se na reunião que o conjunto dos textos publicados pelo jornal paulista, conquanto negue pertinência ao enquadramento de Merquior à direita ou à esquerda, a recorrência do emprego a certos rótulos – velhos conhecidos do folclore merquioriano –, de fundo pejorativo, mesmo que atenuados por adjetivos (“bom reaça”, “conservador civilizado”, “conformista combativo”) para definir o pensador, concede sobrevivência a esse mesmo maniqueísmo político-ideológico, hoje datado e improdutivo para uma avaliação e um entendimento mais objetivos da obra em questão.

Cumpre ser cauteloso quanto ao recurso e ao sentido da palavra “conformista”, ao se atribuí-la a José Guilherme Merquior, sob o risco de se cair na armadilha do tipo “o novo pelo novo”, “a revolução pela revolução”, “a originalidade pela originalidade”. Compreendemos que a militância política merquioriana, baseada na plataforma das “tarefas da crítica liberal”, propostas em As ideias e as formas (1981), não era revolucionária de fato, porque partia da convicção de o liberalismo, sobretudo o social-liberalismo, poder orientar melhor os projetos de governo nacional; mas também não era conformista ou conservadora propriamente, porque reivindicava reformas nada superficiais que pudessem aprimorar o funcionamento do capitalismo.
A propósito, nunca é supérfluo ressaltar que o conformismo e o conservadorismo podem se encontrar tanto do lado da direita quanto da esquerda. De qualquer forma, adentrando o território literário do pensamento de Merquior, cabe retomar o que se informou em postagens anteriores deste blog acerca da vigilância crítica que o ensaísta aplaudia ou cobrava da literatura contemporânea; por exemplo, ao reproduzir a máxima de Hermann Broch – “o grande escritor é a um só tempo uma exalação da sua época, e seu adversário crítico” –, em O elixir do apocalipse. (1983, p.45)


No encontro de hoje, também foi questionada a hipótese aventada em “Merquior, o conformista combativo”: “À erudição somava-se o gosto irrefreável pela polêmica. Talvez sejam essas duas marcas que ainda hoje embaralhem a avaliação de sua carreira.” Não nos parece aceitável acusar-se a proverbial erudição merquioriana – expressa nas numerosas referências bibliográficas de seus ensaios e livros – de consistir em qualquer obstáculo. Isso não seria repetir a acusação despropositada de “terrorismo bibliográfico”, emitida por Eduardo Mascarenhas, ainda em vida do autor de Saudades do carnaval? Quanto à polêmica, não se trata apenas de aspecto episódico, exterior ao pensamento de Merquior, mas também elemento constituinte de seu discurso: a estrutura de Foucault ou o niilismo de cátedra, de De Praga a Paris, de O marxismo ocidental é, por excelência, a polêmica... Desconsiderá-la, a nosso ver, seria amputar o significado da obra desse pensador.
Aproveitamos a oportunidade para manifestar nossa alegria perante o papel renovador da hermenêutica merquioriana que vem cumprindo João Cezar de Castro Rocha. No caderno da Folha de São Paulo, ele, sensatamente, nos chama à realidade posterior à Queda do Muro de Berlim para descobrirmos outras contribuições do legado de José Guilherme Merquior, desvinculadas do discurso “direita ou esquerda”, “bom reaça”, “intelectual dos militares” etc. Também o professor da UERJ esclarece muito bem qual seria a originalidade do pensamento merquioriano.

 
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Para uma visão não preconceituosa e esclarecedora do conservadorismo, recomenda-se aqui a leitura de:

COUTINHO, João Pereira; PONDÉ, Luiz Felipe e ROSENFIELD, Denis. Por que virei à direita: três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

SCRUTON, Roger. O que é conservadorismo. trad. Guilherme Araújo Ferreira. São Paulo: É Realizações, 2015.

SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. trad. Bruno Garschagen. Rio de Janeiro: Record, 2015.
 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Riquezas de um pequeno baú: O estruturalismo dos pobres e outras questões (1ª parte)

Publicado em 1975, pela editora Tempo Brasileiro, a mesma que tinha lançado o segundo livro de José Guilherme Merquior, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), O estruturalismo dos pobres e outras questões é o menor entre os volumes produzidos pelo autor. Reúnem-se aí seis textos, um inédito e os demais extraídos, em edições de 1974, do Jornal do Brasil e da revista literária portuguesa Colóquio / Letras. O ensaio de abertura inspira o título (o mais provocativo de todos os títulos merquiorianos) do livrinho: “O estruturalismo dos pobres”. Seguem-se-lhe “Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda: reabrindo o debate”, “Ut ecclesia parnassus: sobre a função social do escritor na civilização industrial”, “Malraux contra Gide”, “O idealismo do significante (a Grammatologie de Jacques Derrida)” (ensaio não publicado antes) e, finalmente, “Gilberto Freyre além da modernidade”. Como se vê, no folhear dessas oitenta páginas, de formato reduzido, José Guilherme Merquior percorre um campo temático consideravelmente amplo, nelas discutindo questões que acaloravam a vida cultural e intelectual daquela segunda metade do século XX.

O nome de Merquior associou-se, no imaginário da inteligência brasileira, a polêmica. Naturalmente, o leitor se deparará com texto do autor um mais, outro menos agressivo, sarcástico, bem-humorado. Equiparável ao “Falência da poesia”, sobre a geração de 45, coligido em Razão do poema (1965), “O estruturalismo dos pobres” é um daqueles ensaios em que o “agitador das ideias” protagoniza ao lado do (passe a expressão) “pensador das ideias”. A questão atacada nessas primeiras páginas do pequeno volume são as consequências da consolidação, no espaço acadêmico-universitário brasileiro, do estruturalismo. O primeiro parágrafo desse ensaio-panfleto é uma obra-prima da virulência e do humorismo polemista:


Se você quer estudar letras, prepare-se: que ideia faz você, já não digo da metalinguagem, mas, pelo menos, da gramática generativa do código poético? Qual a sua opinião sobre o rendimento, na tarefa de equacionar a literariedade do poemático, de microscopias montadas na fórmula poesia da gramática/gramática da poesia? Quantos actantes você é capaz de discernir na textualidade dos romances que provavelmente (tres-)leu? E que me diz do “plural do texto” de Barthes? – é possível assimilá-lo ao genotexto da famigerada Kristeva? Sente-se você em condições de detectar o trabalho do significante no nouveau roman, por exemplo, por meio de uma “decodificação” “semannalítica” de bases glossemáticas? Ou prefere perseguir a “significância”, mercê de alguns cortes epistemológicos, no terreno da forclusão, tão limpidamente exposta no arquipedante seminário de Lacan? (1975, p.7)

Decerto o leitor, assim como eu mesmo, profissional da área, não compreendeu patavinas de todo esse jargão da linguística e da teoria literária em moda nos cursos de Letras das universidades brasileiras, na década de 1970. José Guilherme Merquior denomina o recurso ao patoá, exclusivo para iniciados, de “terrorismo terminológico”, procedimento comparsa, segundo o ensaísta, de um “terrorismo metodológico”, já que


[...] o estruturalismo é o paraíso do Método; a nova crítica, por exemplo, se alimenta do mito do Modelo mecanicamente aplicável. Pós-graduandos incrivelmente ignaros, outrora incapazes, por simples analfabetismo, de empreender a interpretação de obras pejadas de referências culturais, agora se entregam sem nenhuma inibição à volúpia de aplicar a torto e a direito modelos “científicos” de análise. (1975, p.8)

“O estruturalismo dos pobres” ataca conjuntamente em duas esferas: a do conhecimento e a do sistema educacional. Em artigo de 2012 (disponível em << http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie07/RevLitAut_art09.pdf>>), Eduardo José Tollendal chega a entrever alguma insinuação de Merquior numa terceira esfera, a da política, dentro do contexto da ditadura brasileira nos anos 70, período em que o controle do Estado civil-militar teria condicionado, no caso dos estudos literários, uma “despolitização da crítica sociológica”, possibilitada pela aplicação da metodologia estruturalista. Seja como for, me aterei aqui ao que se refere àquelas duas primeiras esferas, mais facilmente identificáveis no ensaio de José Guilherme Merquior.
O professor Tollendal entende que, em “O estruturalismo dos pobres”, o alvo do ataque “não é a teoria estruturalista, mas o uso que dela fizemos nos cursos de Letras”. (2012, p.208) Em minha opinião, a frase mereceria reformulação, para ficar assim: talvez o alvo do ataque merquioriano seja menos a teoria estruturalista do que o uso que dela fizemos nos cursos de Letras.
 
O ponto que me parece ocasionar tal divergência está na compreensão de que, para Merquior, “Não existe um estruturalismo: existem no mínimo vários, tão diferentes na inspiração quanto no grau de consistência de seus resultados”. (1975, p.9) Ao afirmá-lo, o autor carioca não estava solando com o virtuosismo de sua inteligência. No prefácio de uma antologia clássica, o português Eduardo do Prado Coelho escreve algo muito semelhante: “Não existe um ‘estruturalismo’ ideal, porque o ‘estruturalismo’, se na verdade existe, apenas está nas suas manifestações.” (s.d, p.vi) Para o ensaísta brasileiro, as manifestações estruturalistas de autores como Lévi-Strauss, Georges Dumézil, Michel Foucault, teriam, de fato, contribuído com resultados consistentes, à diferença das “gratuitas elucubraçõezinhas de Genette ou Todorov”, dos “graciosos arabescos especulativos, totalmente despojados de gume sociológico, de Althusser e sua súcia”, da idolofagia de Jacques Lacan e de Jacques Derrida. (1975, p.9)

Assim sendo, há, sim, uma crítica veemente de Merquior, nesse ensaio originalmente publicado no Jornal do Brasil, a 27 de janeiro de 1974, a certa teoria estruturalista. Vale recordar que parcela significativa da obra de nosso autor é dedicada à corrente de origem francesa que, inspirada pela linguística de Ferdinand de Saussure e pela antropologia de Lévi-Strauss, passou a abarcar várias outras áreas das ciências humanas, como a filosofia, a psicanálise e a crítica literária. Após divulgar suas primeiras reflexões sobre o tema (das primeiras realizadas no Brasil) em “Estética e antropologia”, último ensaio de Razão do poema, José Guilherme Merquior profere, em janeiro de 1969, no Collège de France, estudo que, traduzido, vai se publicar em 1975, com o título de A estética de Lévi-Strauss. Na “Nota prévia” ao volume, o eterno estudante manifesta o orgulho de ter aprendido com “Mestre Lévi-Strauss” “o estruturalismo autêntico”. (2013, p.19; o destaque é do próprio autor)

A noção de que haveria um estruturalismo “autêntico” e deturpações do estruturalismo, ela reaparece no segundo ensaio do pequeno livro. Ao resenhar As aporias da vanguarda, de Hans Magnum Enzensberger, noticiando e, em boa medida, endossando as reprimendas desse autor dirigidas ao experimentalismo cientificista das neovanguardas, Merquior verifica nessa conduta estética, com base especialmente no exemplo de nosso concretismo, uma sintonia-parentesco com “o estruturalismo escolástico, formalização alienante das ciências humanas, bem desobediente à advertência que fez Lévi-Strauss em sua crítica a Propp: ‘o estruturalismo não é formalismo.’” (1975, p.19)

A distinção entre estruturalismo e formalismo é retomada e desenvolvida em capítulo de Formalismo e tradição moderna (1974), outro livro de Merquior, como se vê, do mesmo ano daqueles seus dois ensaios. Nesse livro, lemos:


É imperioso sublinhar que o que consideramos insuficiente ou errôneo [...] não é de modo algum a análise formal em si – mas apenas a sua rarefação, o seu “emagrecimento” numa atenção à forma “pura”, esquecida da riqueza de significações que ela contém. Essa rarefação converte a análise formal em visão formalista [...]. (1974, p.188)

Páginas adiante, a mesma recriminação, que engloba tanto a crítica literária quanto grande parte da produção artística desde o romantismo: “O formalismo é, portanto, o nome geral da consciência estética acometida por indiferença ou insensibilidade em relação à problemática da civilização.” (1974, p.217)
Eduardo José Tollendal aventa, em seu artigo, a possibilidade ou probabilidade de existirem razões não claras para Merquior, quem “não só dominava a teoria como a atualizava em seus estudos críticos”, (2012, p.209) “assim desancar eficientes avanços da crítica literária, como a intertextualidade, a metalinguagem, as vozes polifônicas e a técnica do close reading, que ajudaram a desencorajar os excessos e as imprecisões da crítica meramente impressionista ou reveladora de supostas influências”. (2012, p.209)

Na verdade, José Guilherme Merquior não contesta os eficientes avanços da crítica literária arrolados pelo professor. Quanto à intertextualidade e à metalinguagem: as linhas de “O estruturalismo dos pobres” a respeito de Roman Jackobson procuram convencer que o problema reside na concepção segundo a qual “poesia é pura combinatória verbal, e o único aspecto referencial extralinguístico digno de atenção na literatura se limita a sua relação com as demais artes”. (1975, p.9) Pois, de fato, Merquior, de novo em Formalismo e tradição moderna, deixa clara a sua “exigência do reconhecimento da referencialidade do literário em si”. (1974, p.226) Afinal de contas, a questão da mímese sempre ocupou lugar central nas preocupações críticas de nosso autor.
Quanto à polifonia, acho pertinente mencionar o reconhecimento de Paulo Bezerra, registrado em prefácio (diga-se de passagem, de temperatura por excelência merquioriana) à quarta edição de Problemas da poética de Dostoievsky, de Bakhtin: “As primeiras contribuições para a divulgação de Bakhtin entre nós no campo específico da reflexão sobre literatura e cultura vieram de José Guilherme Merquior e do mestre Bóris Schnaiderman.” (2008, p.xii)

Quanto ao close-reading, menos uma metodologia do que uma atenção cuidadosa e detalhista de análise, recomendada pelos new critics norte-americanos, basta ler o célebre “Poema do lá”, ensaio em que o autor de Razão do poema, estilólogo da família de Leo Spitzer e Augusto Meyer, vasculha verso a verso a “Canção do exílio” de Gonçalves Dias...
O fato é que Merquior associa, naqueles meados da década de 1970, formalismo a alienação, numa compreensão crítica que deve bastante ao marxismo ocidental, especialmente a Theodor Adorno. Tanto produzir uma arte avessa a enfrentar a realidade, traduzindo-a de forma ficcional e crítica, quanto compreender a arte nessa mesma perspectiva seriam posturas de uma formalização alienante, verdadeiro pecado para Merquior. No âmbito brasileiro da época, as ressalvas de nosso autor a certo estruturalismo ganham interessante significado sob a luz da contextualização de Luiz Costa Lima, que noticia, em “Estruturalismo e crítica literária”:


Para muitos, sem dúvida, o estruturalismo funcionou como uma forma de escapismo. Ante a paranoia que se apossou do país, onde a tortura, a delação e a insegurança se tornavam as constantes de nosso quotidiano, o estruturalismo, enfatizando a necessidade de conhecer a máquina do texto, suas combinações e transformações, serviu de pretexto para o apoliticismo de muitos de seus praticantes. (2002, p.785)

Desse modo, o teor político da crítica merquioriana ao estruturalismo formalista fica evidente, uma vez que o autor de Saudades do carnaval concebe que o formalismo como poética criativa ou poética interpretativa incorre em alienação. Uma segunda justificativa para a insatisfação de Merquior no tocante ao assunto situa-se no âmbito do conhecimento: a abordagem formalista do estruturalismo mutilaria o aspecto simbológico do texto literário, isto é, a competência mimética da literatura, posta no centro da discussão do terceiro livro do ensaísta, A astúcia da mímese (1972). A terceira justificativa, esta no âmbito educacional, é a visão de que a adoção-ensino do estruturalismo em nossas universidades decorria de um problema maior do sistema brasileiro, não apenas no nível superior. Passagens como “Pós-graduandos incrivelmente ignaros, outrora incapazes, por simples analfabetismo” (1975, p.8) soam propositalmente doídas, como um puxão de orelha. Mas a questão aí está longe de envolver simpatia ou antipatia, da parte do autor, pelos alunos universitários do País. Trata-se de uma constatação – fácil e realmente atual, como ressalta Tollendal – dos resultados não quantitativos, mas qualitativos da educação brasileira, daqueles anos até hoje. Em outras palavras, José Guilherme Merquior não está xingando os alunos, nem querendo ser simpático com eles. Analfabetismo e ignorância: são estes e não outros os termos que qualificam a grande maioria de nossos estudantes. Está xingando, sim, as deficiências seculares da educação do Brasil e sendo bem antipático com os professores que, em nome da moda acadêmica, faziam um desserviço nas universidades.
Por fim, acredito que o título desse ensaio significa como uma via de mão dupla. Tollendal esclarece que os “pobres seríamos nós do terceiro-mundo” (2012, p.204), mas a pobreza também é de algumas das influentes manifestações do estruturalismo exportadas pelo primeiro-mundo. Ou seja, o “estruturalismo dos pobres” poderia sofrer alteração de ordem dos termos sem implicar alteração no produto: significando também a pobreza do estruturalismo.

Passo a comentar o segundo ensaio do livro, “Vanguarda, neovanguarda e antivanguarda: reabrindo o debate”, originalmente publicado em agosto de 1974, no Jornal do Brasil. “Vanguarda”, assim como “estruturalismo”, “marxismo” e “liberalismo”, está entre as palavras-chave do universo merquioriano. A propósito, frase que, neste blog, já citamos – e se tem citado – quase à exaustão é a pergunta retórica que abre As ideias e as formas (1981): “É possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?” (1981, p.11) Seis anos antes, porém, José Guilherme Merquior não estava engajado nessa militância multidisciplinar. Em meados da década de 1970, pensa que, conquanto filhos de um “mesmo meio histórico, formalismo e modernidade estética são irmãos inimigos”, (1974, p.1) conforme sua advertência a Formalismo e tradição moderna. Isso não quer dizer que o crítico passasse a mão na cabeça de um que houvesse se comportado, algumas vezes, como o outro.
No texto de O estruturalismo dos pobres e outras questões, Merquior afirma a importância em se identificar a natureza e a personalidade “histórico-estilística” da arte dos anos 40 até àquele decênio. Contestando de cara a preguiçosa avaliação de tal produção artística como “culturalmente estéril e decadente”, (1975, p.15) o ensaísta prefere operar com as noções de continuidade e de ruptura em relação ao modernismo das primeiras décadas do século XX.

Para satisfazer a essa “necessidade incômoda, porém vital, de definirmos a verdadeira mentalidade do nosso tempo”, (1975, p.15) José Guilherme Merquior traz à baila três traduções então recentes de obras sobre o tema: a Teoria estética (1970), de Theodor Adorno, “As aporias da vanguarda” (1971), de Hans Magnum Enzensberger, e “Por una vanguardia revolucionaria” (1972) (do italiano para o espanhol), de Edoardo Sanguineti.
O foco do ensaio merquioriano são as neovanguardas, exemplificadas, de modo esclarecedor na seguinte lista:

 
[...] a música concreta e estocástica; a pintura informal, a arte pop e hiper-realista, a arte gestual, neodadá e conceitual; o cinema pós-neo-realista; os estilos de mise-en-scène neobrechtianos e artaudianos; a poesia “beat” e o nouveau roman; a poesia concreta e práxis; o movimento tropicalista, etc. (1975, p.16)

Nem todos os exemplos aí elencados serão considerados detidamente no ensaio. À poesia concreta e práxis e ao hiper-realismo, todavia, Merquior reserva palavras que evidenciam a sua separação do que é joio do que é trigo. Entre as velhas vanguardas e as novas vanguardas, o crítico segue as diferenciações propostas por Sanguineti: as segundas não ostentariam o radicalismo anárquico e revolucionário, de tradição romântica, das primeiras, e atuariam às voltas com processo típico da sociedade de consumo, o do acelerado envelhecimento do novo; também a proliferação dos manifestos vanguardistas do início do século dariam lugar à autoafirmação dos grupos neovanguardistas, que substituiriam o experimentalismo “diletante e selvagem” dos ancestrais pelo experimentalismo “científico e laboratorial”. (cf. 1975, p.17)
Frente a tal caracterização, Edoardo Sanguineti repara, segundo o ensaísta brasileiro, nos “traços de acomodação conformista à sociedade de consumo, à ‘sociedade tecnológica’, [que] seriam, a rigor, a atualização de aspectos potenciais da própria vanguarda velha”. (1975, p.17) Adorniano em plena forma nesse ensaio, José Guilherme Merquior vê como oportuno frisar a “natureza sumamente ambígua, embora nunca unilateralmente alienada” das manifestações vanguardistas, (1975, p.17) e assina embaixo da advertência de Sanguineti “contra a ilusão que consiste em separar totalmente a face ‘heroica’ e a cara ‘cínica’ das vanguardas – o seu momento de repulsa à desumanização imposta pela sociedade reificada, e o momento de cumplicidade com essa mesma desumanização.” (1975, p.18)

Aliás, humano e desumanização, cabe destacar, constituem ideias que fundamentam o critério da avaliação cultural merquioriana, que também trata, no segundo ensaio de O estruturalismo dos pobres e outras questões, da mídia de massa. Mas antes de avançarmos nessa parte da discussão, gostaria de registrar ainda a aprovação de Merquior à atitude crítica de Enzensberger, que “esquematiza com sarcasmo e penetração as tentações soteriológicas da vanguarda nova – o seu vezo ridículo de apresentar-se como tabernáculo da redenção cultural”, não sendo o autor alemão menos severo para com [seu] furor experimentalista”. (1975, p.19) Ainda José Guilherme Merquior aplaude, no que se refere ao experimentalismo das novas vanguardas:
 
[...] Enzensberger enxerga apenas, certeiramente, a volúpia da irresponsabilidade, o desejo de entregar-se a manipulações de “linguagens” em plena imunidade moral – já que passam a ser os destinatários quem se responsabiliza pelas obras, numa caricatura da teoria da “obra aberta” de Umberto Eco. (1975, p.19)

Linhas adiante no ensaio, nosso autor interfere mais diretamente na discussão, defendendo haver uma patente coerência entre o “culto a Pound” dos concretistas brasileiros e destes a “adesão festiva ao cientificismo do dia” (que nada mais seria do que o estruturalismo conspurcado), em nome de uma poética “culturalmente míope [...] e sociologicamente obtusa”, (1975, p.19) em concordância com críticas de Mário Chamie, líder da chamada poesia práxis.
A essa ligação entre “as fanfarronadas cientificistas dos experimentalismos amamentadas em extrapolações indébitas da teoria da informação ou da semiologia” (1975, p.20) e estruturalismo distante das lições antropológicas de Lévi-Strauss, José Guilherme Merquior acrescenta outra: “Em seu namoro com os mass media, muitas neovanguardas desenvolvem uma espúria complacência para com o kitsch (enquanto isso, o kitsch, via midcult, se apropria de vários processos vanguardistas).” (1975, p.20) Não resisto a citar aqui mais um excerto de Formalismo e tradição moderna, no qual o autor diz enxergar dentro dos “poços de efeitismo kitsch” “99% da crítica literária dita estruturalista”. (1974, p.39)

De volta a O estruturalismo dos pobres, nessa pauta do debate, José Guilherme Merquior fere questão controversa a respeito de legitimidade e nocividade cultural, no contexto do namoro neovanguardistas com a mídia de massa:


Um certo “aristocratismo” é simplesmente, em nosso tempo de “democratismo” aviltado, condição sine qua non de autenticidade cultural. Pode parecer o contrário: mas a verdade é que o liberalismo genuíno, em arte, se situa do lado da crítica da cultura “aristocrática”, e não dos “democráticos” justificadores dos media como eles são (e dos gêneros imbecilizantes que eles impuseram) – pois desde quando o condicionamento das consciências é sinal de liberdade ou democracia? Os defensores da cultura de massa são de fato muito tolerantes; mas é ao jeito daquele epigrama de Adorno: “O burguês é tolerante: seu amor aos homens como são reflete o seu ódio ao homem como ele deve ser”. Tenhamos a decência de não falar em “democratização da cultura” quando o que estiver sendo “democratizado” não for, absolutamente digno do nome de cultura, no sentido crítico-educativo da palavra. (1975, p.20-21)

Em mira está a ameaça à arte e ao povo como “possibilidade de negação do humano”, (1975, p.21) um evidente manifesto adorniano com seu quê de pessimismo cultural (Kulturpessimismus) que mais tarde, nos anos 80, Merquior rejeitará com veemência. Seja como for, ele se manterá sempre convicto de que “a tarefa número um da arte na sociedade industrial” é “a interpretação crítica do presente”, algo cumprido pelos hiper-realistas, dispostos a “exorcizar o demônio da alienação formalista”. (1975, p.22)
Em texto que já citei acima, Luiz Costa Lima identifica três grupos, no Brasil, que teriam refutado o estruturalismo por razões distintas:


Sendo uma forma de defesa [contra o policiamento intelectual do regime civil-militar], o estruturalismo era também, ao menos para os mais consequentes, um jogo perigoso. Se a esquerda lhe tinha ódio, os conservadores e a direita tampouco o tinham em boa conta. E todos tinham razão. A esquerda porque a crítica estruturalista, centrada na obra, minimizava o papel social e rara vez alcançava a articulação da base social com a produção textual [...]. Os conservadores, de sua parte, acusavam os praticantes do estruturalismo de esmagar o prazer da leitura por demonstrações complicadas e por substituir a intuição pessoalizada por um jargão para iniciados. A direita, enfim, porque o estruturalismo sufocaria o homem, sua espiritualidade, enfatizando as formas sistêmicas em que o indivíduo perde o rosto. (2002, p.785-786)

A confiarmos nesses três agrupamentos delineados sumariamente pelo eminente teórico da literatura, poderíamos enquadrar José Guilherme Merquior não apenas entre os conservadores e os de direita, mas também no grupo da esquerda, o que tanto explicita a complexidade da sua rejeição ao estruturalismo (a certo estruturalismo, nunca é demais repetir) quanto contesta a facilidade dos rótulos frequentemente a ele atribuídos (“intelectual de direita”, “conservador” e outros epítetos do gênero). Pois o autor de O estruturalismo dos pobres e outras questões não insiste em acentuar “o papel social” da literatura e em reivindicar “a articulação da base social com a produção textual” como imprescindível à análise literária? Não era Merquior o crítico literário que, em O elixir do apocalipse (1983), recordava a advertência de T. S. Eliot – “só existe um método – ser muito inteligente” – (cf. 1983, p.x) e acusava o estruturalismo de “terrorismo terminológico”, no primeiro ensaio do volume que aqui comento? Não se preocupava nosso autor com “a possibilidade de negação do humano” no kitsch das neovanguardas, na mídia de massa e na abordagem formalista do estruturalismo?
Ut ecclesia parnassus” é o terceiro ensaio do pequeno volume de 1975, e tem por subtítulo “sobre a função do escritor na civilização industrial”. Havia sido publicado primeiramente em novembro de 74, no número 22 da prestigiada revista literária portuguesa Colóquio / Letras. Suas reflexões iniciais coincidem com as de “Fragmentos de história da lírica moderna”, texto de Formalismo e tradição moderna, no qual o ensaísta também considera a conquista da autonomia filosófica pela poesia como uma das marcas inaugurais da modernidade literária ocidental. Essa reviravolta, surgida em contexto sócio-político eminentemente burguês, foi, conforme ensina Merquior, “resposta da literatura à crise espiritual da cultura burguesa”, (1975, p.25) cultura esta “sem solo axiológico comunitário partilhado”. (1975, p.25)

A nova atmosfera social, de fins do século XVIII, coincide com a ruptura, na literatura, do modelo Greco-romano e cristão, fato que rebaixou o valor da disposição de edificar e de entreter, para elevar a cotação das letras que atuassem “como crítica da cultura”, com o objetivo de “problematização da vida”, e confinar aquelas duas funções tão importantes para a arte clássica, no espaço menos exigente da literatura popular. (1975, p.26)

A grande referência bibliográfica na qual se apoia a discussão merquioriana nesse ensaio é o livro de Paul Bénichou, Le sacre de l’ecrivain (1750-1830), de publicação então recente (1973). Em decorrência dessa escolha, o contexto francês se destaca na discussão do ensaio, mas não deixa de ser comparado com o alemão, outro contexto nacional que fornece ilustração emblemática das mudanças pelas quais teria passado a função social do escritor segundo Merquior. O arco histórico enfocado parte de Johann Wolfgang von Goethe, cuja obra proclama, a partir do derradeiro quartel do século XVIII, a definitiva possibilidade de independência filosófica da poesia e da literatura, até chegar a Franz Kafka, Hermann Broch e Samuel Beckett, três autores representativos do novecentos.

É na França de Voltaire que se daria a primeira fase da consolidação do pensamento autônomo na literatura do Ocidente. Os questionamentos severos à autoridade eclesiástica condicionariam “a investidura iluminista do homem de letras como guia e bússola da sociedade”. (1975, p.28) Contudo, aí não se trata propriamente do poeta, visto que a mentalidade setecentista mantém reservas frente ao ficcional, ao fabuloso. Desse modo, se verificaríamos relevância, na época, de uma “literatura-filosófica”, esta não é ainda uma “literatura-filosofia”. (1975, p.30)

Até porque, segundo Merquior amparado por Bénichou, o poeta só será alçado à condição de profeta ou de vate com a negação romântica do Iluminismo, efeito do divórcio entre razão e sentimento que correntes influentes do romantismo advogarão. Conquanto exemplos franceses (Chateaubriand, Victor Hugo) possam induzir a associarmos entronização do poeta ao irracionalismo contrarrevolucionário (já que o ethos da revolução era, por excelência, iluminista), José Guilherme Merquior observa o caso alemão contemporâneo (Novalis, F. Schlegel, Tieck, Hörderling), não irracionalista, e mesmo antevisão do niilismo moderno. (cf. 1975,p.31-32)

Fosse como fosse, a ambiência romântica se responsabilizou em estimular a soberania do pensamento em literatura, incentivando escritores e poetas a considerarem-se “guardiães dos valores ameaçados pela sociedade burguesa”, (1975, p.33) a se assumirem como “clérigos profanos, [que] avocaram a si a custódia dos valores humanos”. (1975, p.33-34) “Ut ecclesia parnassus... eis a divisa tácita, e secretamente nostálgica, que presidiu o conceito da missão do poeta.” (1975, p.34) A expressão latina, que intitula o ensaio, importa esclarecer, parafraseia célebre máxima horaciana, ut pictura poesis, de hábito traduzida por “a poesia como a pintura”; ou seja, no caso do título do texto merquioriano: “o parnaso como igreja”.

Nesse processo de credenciamento clerical do poeta, não limitado dali adiante ao romantismo, resultado de forte abalo das estruturas sociais das tradições, a religião perde o prestígio e a autoridade que passam a possuir a filosofia e a literatura. Estas duas, todavia, frisa Merquior, se distinguem sob a ótica oficial do Estado. A primeira se acomodou com mais hospitalidade e conforto junto ao status quo do que a segunda.

A tal propósito, José Guilherme Merquior redige um dos parágrafos histórica, cultural e politicamente mais lúcidos e perspicazes do voluminho, destinado a permanecer praticamente irretocável no seu pensamento:


Contudo, nem sempre o clero-parnaso conheceu o flagelo da condenação social. O rigor com que a moral vitoriana tratou os escritores inconformistas foi, afinal, bem mais esporádico e menos severo do que qualquer perseguição religiosa. O suplício e banimento do escritor “maldito” é hoje uma lenda neorromântica, anacronismo byroniano grotescamente inflacionado pelo baixo folclore artístico do nosso tempo. O autor-vítima é um prato exótico invariavelmente servido com molho (neo)estalinista; no cada-vez-mais-permissivo Ocidente, os Genet são obrigados a verdadeiras acrobacias para manter a aparência de renegados e os Sartres podem ser, a qualquer momento, eleitos para a Academia – por mais que isso excite o furor do próprio Sartre... O gauchisme faz tudo para acreditar o mito da excomunhão burguesa, mas o fato é que, desde a queda do Terceiro Reich, nenhum ordálio ocidental se compara, em termos de intolerância, com a longa provação de Soljenítsin [autor de O arquipélago Gulag]. As liberdades “burguesas” asseguram o livre exercício da rejeição radical dos (pseudo-)valores correntes; e se o gauchisme das grandes democracias, que despreza essas mesmas liberdades irresponsavelmente esquecido do quanto há de terrível em perdê-las, finge ignorar esse fenômeno, o obscurantismo reacionário positivamente não o esquece... (1975, p.35)  

Aí está, na história da inteligência brasileira, uma das mais belas declarações de amor à liberdade de expressão e à democracia, apenas – até hoje – verdadeiramente promovidas pelos regimes de orientação liberal. Essas palavras, publicadas em contexto de Guerra Fria (convém lembrar-se disso), dirigiam-se ao esquerdismo alardeado por ampla parcela dos intelectuais a oeste de Greenwich (pedindo empréstimo da expressão ao prof. Tollendal). Na passagem, José Guilherme Merquior chama o leitor à realidade, colocando os pingos nos ii: o grito da rebeldia, artística ou filosófica, contra a intolerância e a perseguição da sociedade burguesa, seja esta vitoriana, seja novecentista, não passa de um rosnado quixotesco e nostálgico dos tempos do romantismo. A força argumentativa desse parágrafo contrasta com a sustentação manca da crítica à desumanização da arte de vanguarda, postulada no segundo ensaio de O estruturalismo dos pobres e outras questões, concepção de crise da cultura abandonada pelo Merquior dos anos 80.
À luz da própria racionalidade concreta, postura intelectual que Miguel Reale aponta no autor de O argumento liberal, a distinção em matéria de arte, de um lado, positiva do humano e, de outro, negativa da desumanização mostra-se, com efeito, de difícil defesa. Afinal, como atestar que produzir ou consumir o que nos oferece a chamada indústria cultural desumaniza? Apreciar a música de Beethoven faria de mim mais humano do que meu vizinho que adora me fazer escutar bem alto Aviões do Forró, Raça Negra e Psirico? Além disso, se a mídia de massa condiciona tanto o público, por que tantos programas de TV, tantas novelas auferem níveis de ibope ruins? Por que nem todo disco, nem toda banda, nem todo filme hollywoodiano são bem sucedidos em termos de retorno financeiro? Há algo nesses sucessos e fracassos que sinalizam um mínimo de senso crítico, nem que seja de gosto pessoal, que atesta o não total condicionamento da indústria cultural.

Em âmbito contíguo à questão, psicológico e sociológico, o seguinte trecho de Eric Voegelin a respeito das crueldades realizadas pelo governo nazista de Hitler ajuda a elucidá-la:


O homem continua homem em toda a realidade, mesmo quando perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a existência; ele não cessa de ser homem. E não há nenhuma razão, como ainda se faz tão frequentemente, em acusar Hitler de desumanidade; foi uma humanidade absoluta em forma humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e doente, uma humanidade pneumopatológica. (2008, p.145)

No referente à autonomia filosófica da literatura, conquanto “não signifi[que] necessariamente nenhuma superioridade das letras modernas [...] em relação às precedentes”, (1975, p.23) José Guilherme Merquior entende que é essa a mais valorosa postura da literatura na modernidade, e não a do parnaso como igreja. Isso porque, dentre outros motivos, os poetas-clérigos não zelariam por nada mais do que “valores negados ou esvaziados pela prática social, e por isso mesmo pouco suscetíveis de alimentar uma verdadeira humanística”. (1975, p.35-36) Também a ostensiva “posição de classe” desse tipo de escritor, substituto cultural do clero em contexto de aversão a teocracias, acaba por não encontrar terreno favorável “na cultura sublegitimada, sub-auto-justificada que é a nossa”. (1975, p.36)
As páginas conclusivas de “Ut ecclesia parnassus” confrontam a hipótese do próprio autor em torno do pensamento autônomo da literatura moderna, o rastreamento histórico do poeta-profeta por Paul Bénichou e uma conhecida tipologia proposta por Roland Barthes, em Ensaios críticos. Para esse que figurou como uma das estrelas do estruturalismo francês, o escritor poderia ser identificado como écrivaint, “funcionário da língua codificada que é a literatura”, usuário de um “discurso institucionalizado”; (1975, p.36) como écrivant, “personagem surgido no seio da grande reorientação ‘participante’ das letras durante a época das Luzes”, que “politizou a palavra literária”; (1975, p.36) e, por fim, como um misto dos tipos anteriores, o écrivain-écrivant, “servidor de dois senhores – a ‘literatura’ e o pensamento crítico”. (1975, p.37)

Se no segundo tipo barthesiano Merquior identifica “o homme de lettres iluminista de Bénichou”, o écrivain-écrivant seria o poeta-pensador, que se beneficiaria, em superioridade aos demais, tanto da autonomia, isto é, da “irredutibilidade do logos literário às outras racionalidades (de cunho lógico-científico)”, quanto do pensamento, em seu “sentido crítico (em vez de cultual), iluminatório (em vez de ritualístico) do mesmo discurso poético”. (1975, p.37)
No fito de melhor distinguir a autonomia de pensamento em questão, nosso autor recorre ainda ao livro clássico de Julien Benda, La trahison des clercs, observando que esse título também caracterizaria, no âmbito específico da literatura, a atuação do parnaso como igreja. Cônscio de que “a propensão a ‘trair’ é consubstancial à literatura autêntica”, José Guilherme Merquior afirma haver traições cultural e socialmente benéficas e outras recrimináveis. Recriminável seria a “‘traição’ que abastarda a inteligência”; benéfica, a traição do “que há de desumanamente imaculado nos santuários do esteticismo, seja este filosófico ou artístico – esteticismo dos conceitos ou esteticismo das formas”. (1975, p.38) Recriminável seria a traição do escritor que toma postura participante (ou politicamente engajada), mas que, em nome de tal postura, “sacrifica os direitos e deveres da produção poética”, assim como a tradição do “poeta áulico, glorificador de falsos ídolos” e do “poeta-serafim, oficiante de ritos reificados, o escapista em cujas mãos a arte se converte em álibi para a alienação”. (1975, p.38) Em outras palavras, mais uma vez, Merquior repudia o formalismo, mais uma vez, tanto das vanguardas quanto do estruturalismo. A traição “boa”, então, evita tanto o conformismo ideológico (o “servilismo”) quanto a alienação das estéticas escapistas das torres de marfim.

A questão, para Merquior, está nas condições sócio-culturais modernas e contemporâneas que desacreditam as autodivinizações e autossacralizações a que a arte e a literatura possam aspirar: “Nos nossos dias, toda transfiguração enobrecedora, toda idealização anagógica cheira a kitsch: depois de tantas decepções, o humano aprendeu a proteger-se de todo pathos altissonante.” (1975, p.38)
Passo final do ensaio é a defesa da validade conceitual do pensamento que na literatura se emancipa. A interlocução, nesse debate, se dá com Maurice Blanchot, quem Merquior elege “talvez o mais importante crítico moderno depois da morte de Erich Auerbach”. (1975, p.39) Não obstante tão alta consideração, o ensaísta brasileiro discorda do francês, no que este atribui ao antiintelectualismo o preço pago pela literatura por sua independência filosófica. Com o apoio de Della Volpe, e em seguida o do mestre Lévi-Strauss, José Guilherme Merquior sustenta que o poético é “usuário” do “logos que é a linguagem (logos = linguagem e razão)” e que assim “se mantém fiel à natureza racional do logos”, (1975, p.40) sendo impositivo “reconhecer nos campos mais diversos a atuação da força lógica do espírito humano”. (1975, p.40)

Contudo, a discordância se converte em adoção do que ensina Blanchot a respeito da “fala neutra” ou “fala do silêncio”, que se detectaria em obras posteriores à de Franz Kafka. No caso de Beckett e Hermann Broch, não se trataria de um discurso que procura pronunciar a transcendência, diferentemente do que tentam fazer os poetas-profetas. O infradiscurso beckettiano e brochiano tem raízes no cotidiano, do qual aspectos não antes percebidos seriam denunciados, frutificando conscientização mais plena da condição humana. E, satisfeito, Merquior destaca: “[...] nesse infradiscurso, o que ‘fala’ sem falar são as dores e carências da condição humana, as cicatrizes da História, a mágoa anônima dos injustiçados.” (1975, p.42)
O terceiro ensaio do pequeno volume, portanto, aferra-se a entendimento já antes defendido de que a literatura deve cumprir uma função social específica: empenhar-se em iluminar as mazelas da existência humana, uma vez que “toda comunicação será gratuita enquanto se mantiver alheia à realidade concreta do sofrimento.” (1975, p.42) Sendo assim, José Guilherme Merquior conclui que a emancipação filosófica da literatura teve por uma de suas motivações principais “uma concepção diferencial do homem”, (1975, p.42) e ratifica que “os poetas-pensadores [...] são os grandes escritores do nosso tempo”. (1975, p.44)

Referências bibliográficas:
BEZERRA, Paulo. “Uma obra à prova do tempo” in BAKHTIN, Mikhail Problemas da poética de Dostoievskyi. 4ª ed. (trad. Paulo Bezerra) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. pp.v-xxii.
COELHO, Eduardo do Prado. Estruturalismo: antologia de textos teóricos. Lisboa: Martins Fontes, [s.d.]
LIMA, Luiz Costa. “Estruturalismo e crítica literária” in Teoria da literatura em suas fontes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. vol. 2. pp.777-815.

MERQUIOR, José Guilherme. A estética de Lévi-Strauss. 2ª ed. (trad. Juvenal Hahne Jr.) São Paulo: É Realizações, 2013.
______. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1974.
______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
______. “Situación del escritor” in MORENO, Cesar Fernandez (org.). América en su literatura. Ciudad del Mexico: Unesco; Siglo Veintiuno, 1972. pp.372-388.
TOLLENDAL, Eduardo José. “Papéis cruzados: o estruturalismo nos regimes autoritários a leste e oeste de Greenwich” in revista eletrônica Literatura e autoritarismo: dossiê Artistas e cultura em tempos de autoritarismo. Maio de 2012. disponível em <<http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie07/RevLitAut_art09.pdf>>.
VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. Trad. Elpídio Mario Dantas Fonseca. São Paulo: É Realizações, 2008.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Folha de São Paulo homenageia José Guilherme Merquior



Domigo passado (23 de agosto), o caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo publicou textos em torno da biografia e da obra de José Guilherme Merquior. Há entrevista com João Cezar de Castro Rocha, coordenador da republicação dos livros do ensaísta e diplomata pela editora É Realizações, depoimentos de Nelson Ascher (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1671789-a-canonizacao-do-bom-reaca.shtml) e de Roberto Schwarz (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1671790-atrevido-merquior-foi-uma-figura-central.shtml), além de artigo de Marco Rodrigo Almeida (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/08/1671785-merquior-o-conformista-combativo.shtml).


Destaque para a belíssima arte de Zé Otávio, reproduzida no post e extraída do site do jornal paulista.

domingo, 16 de agosto de 2015

Lançamento de livro: Capitalismo: modo de usar (Fabio Giambiagi)

Pouco após o lançamento internacional de Um capitalismo para o povo (2015), de Luigi Zingales, professor da University of Chicago Booth School of Business, será publicado Capitalismo: modo de usar, do brasileiro Fabio Giambiagi, que justifica (ou, para alguns, provoca) em tom de urgência já na capa do livro: “Porque o Brasil precisa aprender a lidar com a melhor forma de organização econômica que o ser humano já inventou”. Editora Elsevier.
Venda disponível em http://www.elsevier.com.br/site/produtos/Detalhe-produto.aspx?tid=97111&seg=3&isbn=9788535283648&cat=276&origem=&evp=VolAulas15.1sta&tit=CAPITALISMO:%20MODO%20DE%20USAR

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Bibliografia passiva merquioriana 2


Ø  “Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna”, de Flora Süssekind. In Papéis colados. 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. pp.15-36.
Merquior não é o foco dessas páginas, mas nelas sua condição de crítico literário é compreendida e seu nome, citado. Partindo do embate, que ganhou estatuto de uma das mais relevantes polêmicas de nossa história cultural, entre a chamada crítica de rodapé (ou impressionista) e a crítica de cátedra (ou acadêmica), esta defendida por Afrânio Coutinho, Flora Süssekind enquadra o autor de A astúcia da mímese entre os críticos que surgiram em fins da década de 1960 que “jamais abandonaram uma dicção ensaística”, nem sendo propriamente pertencente ao primeiro, tampouco ao segundo grupo. (p.34)

Ø  “Crítica literária no Brasil, ontem e hoje”, de Benedito Nunes. In MARTINS, Maria Helena (org.). Rumos da crítica. 2ª ed. São Paulo: Senac; Itaú Cultural, 2007. pp.51-79.
Também não se trata de texto especialmente dedicado à obra merquioriana, mas o autor paraense não ignora a importância do ensaísta e diplomata carioca dentro da história da crítica literária brasileira novecentista. Benedito Nunes já havia resenhado, em série de três artigos publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais de 1973, o livro Saudades do carnaval. Nesse texto, o saudoso filósofo e professor da UFPA irmana José Guilherme Merquior e Luiz Costa Lima no tocante à “retomada do conceito clássico de mimesis [Merquior preferia escrever, nesse caso, “mímese”], o aproveitamento do método de Lévi-Strauss [...] e a específica caracterização da literatura brasileira e estrangeira modernas [...]”. (p.69) Por outro lado, se diferenciariam, segundo Benedito Nunes, Merquior pela retomada e Costa Lima pela recusa da estética, atitude que, no caso do autor maranhense, o conduzirá a elaborar o conceito de “controle do imaginário”.  

Ø  “Merquior: dois momentos e duas dimensões”, de Marcos Castrioto de Azambuja. In LAFER, Celso et alii. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: IPRI, 1993. pp.25-30.

Texto de interesse eminentemente biográfico, publicado em volume importante para se tomar conhecimento e compreender a vida profissional e intelectual de José Guilherme Merquior, além de aí se ter acesso ao discurso que ele pronunciou como orador da turma do Instituto Rio Branco, em 1963. Marcos Castrioto de Azambuja registra que, em 1977, Merquior se submeteu, como voluntário, impelido unicamente pelo desafio intelectual, ao 1º CAE (Curso de Altos Estudos), sistema de treinamento e qualificação na carreira diplomática que o Instituto Rio Branco implantava e que se tornaria, como ainda hoje, obrigatório para a progressão funcional como ministro de segunda classe.(cf.http://www.institutoriobranco.mre.gov.br/pt-br/curso_de_altos_estudos_-_cae.xml) Tendo sido avaliado por banca examinadora de que participou o autor do depoimento, Merquior defendeu com brilhantismo o trabalho intitulado O problema da legitimidade em política internacional.O outro momento/dimensão anotado por Castrioto de Azambuja se refere à postura do colega, em 1990, frente ao câncer avassaladorque o levaria a falecer em janeiro do ano seguinte: “Os amigos – e eu fui um entre vários – recebiam pelo telefone ou por escrito os boletins de saúde precisos que ele mesmo compunha. Tudo era rigor e método. Não sobrava espaço para a autocomiseração.” (p.23)

Diante desse impressionante relato, acerca de um homem que, ciente da iminência da própria morte, não declina de seu amor à razão e à inteligência metódica, me lembro de célebre soneto no qual Gregório de Matos dramatiza a luta de padre Antônio Vieira, outro “imperador da língua portuguesa”, contra a mesma “indesejada das gentes”:

Corpo a corpo à campanha embravecida,
Braço a braço à batalha rigorosa
Sai Vieira com sanha belicosa,
De impaciente a morte sai vestida.

Invistem-se cruéis, e na investida
A morte se admirou menos lustrosa,
Que Vieira com força portentosa
Sua ira cruel prostrou vencida.

Porém ele vendo então, que na empresa
Deixa a morte à morte: e ninguém nega,
Que seus foros perdia a natureza;

E porque se exercita bruta, e cega
Em devorar as vidas com fereza,
A seu poder rendido a sua entrega.


Ø  “José Guilherme Merquior: um depoimento pessoal”, de Luiz Felipe Seixas Corrêa. In LAFER, Celso et alii. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: IPRI, 1993. pp.21-24.
Outro texto de interesse eminentemente biográfico. O também diplomata Seixas Corrêa conviveu com Merquior e o sucedeu em mais de um cargo no serviço público. Seu depoimento noticia a atuação do colega ilustre no México, onde se responsabilizou pela fundação, em 1988, da cátedra Guimarães Rosa, da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma, que objetivava constituir ponte de diálogo entre intelectuais brasileiros e mexicanos. Luiz Felipe Seixas Corrêa destaca também o papel da convivência política no país de Octavio Paz na consolidação argumentativa do pensamento liberal merquioriano. Cabe aqui assinalar que o autor do depoimento emprega o termo “neoliberal” para classificar a militância de Merquior, que, na verdade, rechaçava o neoliberalismo (o Estado como guarda do trânsito social e econômico), em favor do social-liberalismo (defesa da necessidade de intervenções mais significativas do Estado no setor).

Não posso deixar de transcrever relato do episódioda década de 1970 (50% fato; 50% piada; 100% engraçado) que envolveu o então Secretário da embaixada brasileira em Bonn (Alemanha), José Guilherme Merquior, e uma brasileira descendente de alemães, que havia trabalhado no consulado de Stuttgart e veio a ser transferida para secretariar o futuro membro da Casa de Machado de Assis:

 

“Estava Merquior ditando minuta de telegrama para a jovem quando foi interrompido.
– Secretário: sucessão é com “ç”, não é?
– Não, minha filha, respondeu ainda pacientemente Merquior, é com dois “esses”!
– Ih, comentou a moça, não sei, não! O Cônsul em Stuttgart sempre escrevia com “ç”!
Mais adiante no ditado, uma nova interrupção:
– Secretário: jeito é com “g”, não é?
– Não, minha filha, respondeu já impacientemente Merquior, jeito sempre foi com “j”! Não agrida o português!
Mas a jovem não parecia convencida:
– O Cônsul sempre escreveu jeito com “g”!
– Pior para o Cônsul!,exclamouMerquior e prosseguiu o ditado.
A terceira interrupção foi decisiva:
– Secretário, projeção se escreve com “g” e dois “esses”, não é? Pelo menos – já foi adiantado – era como o Cônsul escrevia!
A reação de Merquior foi de profunda exasperação: – A Senhora aqui escreve como eu mandar e não como escrevia o Cônsul – projeção é com “j” e “ç” e está acabado!
Imperturbável, a secretária riscou o que havia rabiscado, reescreveu a palavra com a grafia determinada por Merquior e, balançando resignadamente a cabeça, comentou com um suspiro:
– É! Cada um tem o seu estilo!” (p.26)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Lançamento de livro: Formalismo e tradição moderna, 2a ed. (José Guilherme Merquior)



Está previsto para hoje o lançamento da 2ª edição de Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura, o sexto volume da Biblioteca José Guilherme Merquior que vem sendo publicada pela É Realizações, sob coordenação do prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha. Primeiramente publicado em 1974, o livro contém ensaios-chave do pensamento crítico merquioriano, como o de abertura, “Kitsch e antikitsch”. A proposta geral do autor nessa coletânea de textos, conforme esclarece em nota, é de iluminar e problematizar a separação entre a alienação formalista e a postura crítica da arte na tradição moderna, que remontaria, especialmente, à obra do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Disponível para pré-venda no site da editora http://www.erealizacoes.com.br/produto/formalismo-e-tradicao-moderna---o-problema-da-arte-na-crise-da-cultura