quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Não parece referir-se a Merquior? (1)

Autor da introdução ao livro Tigres no espelho (2009), coletânea de textos de George Steiner publicados na revista The New Yorker, entre 1967 e 1997, Robert Boyers, ao refutar a acusada visão museificadora do crítico francês sobre a literatura, esclarece:


Steiner dedicou a vida não só a examinar os clássicos [...], mas também a estabelecer um contato dinâmico e sempre fértil com o novo e o difícil. Steiner, com o que [Edward] Said chamou de “desdém tory pela especialização”, com seu contagioso “fascínio pela engenhosidade verbal” e sua capacidade de entrar “no âmago de um discurso, uma disciplina, uma língua, um autor, e então transmiti-lo aos não iniciados, sem perder a intimidade nem a agudeza clareza de cada campo”, retomando, Steiner jamais transmitiu uma impressão de imobilidade ou monumentalidade distante nas várias centenas de obras que abordou. Muito pelo contrário. Tudo o que ele olha constantemente vibra de possibilidades, de perspectivas genuínas de se revelar fresco, palpitante, surpreendente ou purificador. O novo é tomado como um desafio a ser enfrentado, e quando sua encarnação numa determinada obra parece espúria, pretensiosa ou fácil, o instinto de Steiner não é apenas descartá-lo, mas também expor como não se deixar impressionar indevidamente pela mera aparência de novidade. (2012, p.14)

Não estaria acima, ajustadas algumas frases, caracterizado também o pensamento crítico de José Guilherme Merquior? Pois o autor brasileiro:

a)      apontou muitas desvantagens na especialização profissional do conhecimento – em A natureza do processo: “[...] com frequência o reino do diploma cria rigidez e ineficiência. Antigamente, por exemplo, os colunistas econômicos dos grandes jornais brasileiros eram economistas, profissionais ou amadores. Hoje eles têm que ser obrigatoriamente formados em ‘comunicação’ – e, em consequência, pouco entendem da matéria sobre a qual vão escrever...” (1982, p.26) E Merquior já se havia inflamado, em Formalismo e tradição moderna, contra o “pensar” “ilhado do especialista”, este “modelo da pesquisa científica inconsciente das suas raízes culturais”. (2015, p.250);


b)      Não obstante sua própria convicção, declarada em ensaio de Razão do poema, de que a crítica literária e a literatura “se conservam como funções distintas”, (2013, p.201) e o eventual desagrado de alguns com sua linguagem, como Wilson Martins, que cita, em tom de farpa, a observação de B. Woodbrige a respeito do livro de 1965 (“Sua densidade de redação nem sempre facilita a leitura.”), (cf. 1983(a), p.712-713) José Guilherme Merquior foi um estilista da língua portuguesa, algo amplamente reconhecido de muitos que o leram. Por exemplo, Marcos Vinicios Vilaça, que o qualifica como “escritor de forma elegante”; (2011, p.4) Eduardo Portella, que pontua o fato de que, na obra merquioriana, “A língua deixa de ser um mero instrumento de que se serve o argumento para se expressar, porque se amplia no conluio procriativo da palavra instada pela imaginação”; (2011, p.7) e, por fim, Celso Lafer, para quem Merquior escreveu “mesclando uma arte e um conhecimento que exprimia no seu texto a virtuosidade da vivacidade do seu espírito”. (2011, p.30)


c)      Essa mesma linguagem, que se plasmou de arguta capacidade interpretativa e analítica e se aparelhou de hercúleo mobilização bibliográfica, também se caracterizou, em vários títulos, como “aquém do jargão, além do chavão”, (1982, p.10; 1983(c), p.11) num propósito pedagógico por excelência, tanto mais admirável por ter se embrenhado em diversificadas áreas e em diversos autores e obras.


d)     Também o autor de O marxismo ocidental não se rendeu, diferentemente do que tem sido a tradição acadêmica brasileira, aos ditames da última novidade intelectual – demarcando sistematicamente uma autonomia de pensamento, que se impôs, simultaneamente, pelo esforço tanto em atualizar-se acerca das correntes e das teorias mais recentes e mesmo em voga, quanto em submetê-las a uma recepção crítica rigorosa. Essa postura valeu não apenas para as matérias de ordem filosófica e teórica, mas também para as artes e a literatura. Curiosamente, se, segundo Robert Boyers, “Steiner foi o primeiro crítico na imprensa periódica americana a defender autores como Thomas Bernhard, Leonardo Sciascia”, (2012, p.15) quanto a este último, José Guilherme Merquior, em texto recolhido em O fantasma romântico e outros ensaios (1980), declarou com entusiasmo similar: “Vários autores contemporâneos são, como Leonardo Sciascia, críticos sociais independentes. Significativamente, o ídolo de Sciascia é Voltaire: não tanto, é claro, por suas idéias, mas por ser uma espécie de arquétipo da literatura crítica e reformista [...].” (1981, p.39) Aliás, é inevitável não observar que Boyers, sempre no tocante à crítica de George Steiner, cita o conselho de Elias Canetti, de que “o escritor devia ‘se colocar contra’ a própria ‘lei’ de sua época e fazer uma oposição ‘sonora’ e insistente.” (2012, p.20) A mesma que Merquior recorda como síntese de sua própria compreensão política da literatura, em ensaio de O elixir do apocalipse dedicado ao prêmio Nobel de 1981. (cf. 1983(b), p.45)

Mas o que diria o próprio Merquior dessa aproximação? O nome de George Steiner aparece nos textos do brasileiro, num primeiro período, como referência acatada, para posteriormente tornar-se referência quase que atacada. A mudança se dava como efeito da militância merquioriana, a partir do início da década de 80, contra o tenebrismo semântico da arte de vanguarda, abençoado pelo crítico francês. Em ensaios do reeditado este ano Formalismo e tradição moderna, que publicou em 1974, por exemplo, Merquior considera Steiner “um dos melhores críticos firmados na última década”, com direito ao acréscimo: “embora bem menos festejado no Brasil do que as vedetes estruturaloides e seus jargões pseudocientíficos”. (2015, p.342) Muito porque o ensaísta que dissecou a vida e o organismo do Kitsch promove um brinde à denúncia steineriana do “recuo da posição hegemônica da expressão verbal na cultura contemporânea”, que teria como “resultado global” “a new illiteracy de Richard Palmer Blackmur: a paradoxal rusticidade retórico-literária da sociedade... alfabetizada”. (2015, p.342) O entusiasmo com Language and Silence (1967) dá lugar, no pensamento de Merquior, a certa antipatia com os títulos posteriores, como “o pretensioso After Babel” (1983(b), p.27), livro de 1975, e On difficult and other essays, 1978, no qual é apontada, com dedo indicativo e judicativo, a sombra da “asa negra do pássaro Heidegger”, para dizer dos “grandes críticos [que louvam] o estilo das trevas e sua guerrilha contracultural”. (1990, p.362)

Referências bibliográficas:

MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil (1940-1981). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983(a). 2º vol.
MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983(b).
______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2015.
______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983(c). pp.44-47.

______. “O significado do pós-modernismo” in O fantasma romântico e outros ensaios. 1980. pp.27-41.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

VILAÇA, Marcos Vinicios (coord. geral). Mesa-redonda em homenagem aos 70 anos de José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário