Autor
da introdução ao livro Tigres no espelho
(2009), coletânea de textos de George Steiner publicados na revista The New Yorker, entre 1967 e 1997,
Robert Boyers, ao refutar a acusada visão museificadora do crítico francês
sobre a literatura, esclarece:
Steiner
dedicou a vida não só a examinar os clássicos [...], mas também a estabelecer
um contato dinâmico e sempre fértil com o novo e o difícil. Steiner, com o que
[Edward] Said chamou de “desdém tory pela especialização”, com seu
contagioso “fascínio pela engenhosidade
verbal” e sua capacidade de entrar
“no âmago de um discurso, uma disciplina, uma língua, um autor, e então transmiti-lo
aos não iniciados, sem perder a intimidade nem a agudeza clareza de cada campo”,
retomando, Steiner jamais transmitiu uma impressão de imobilidade ou
monumentalidade distante nas várias centenas de obras que abordou. Muito pelo
contrário. Tudo o que ele olha constantemente vibra de possibilidades, de
perspectivas genuínas de se revelar fresco, palpitante, surpreendente ou
purificador. O novo é tomado como um desafio a ser enfrentado, e quando sua
encarnação numa determinada obra parece espúria, pretensiosa ou fácil, o
instinto de Steiner não é apenas descartá-lo, mas também expor como não se deixar impressionar indevidamente pela mera aparência
de novidade. (2012, p.14)
Não
estaria acima, ajustadas algumas frases, caracterizado também o pensamento
crítico de José Guilherme Merquior? Pois o autor brasileiro:
a) apontou muitas desvantagens
na especialização profissional do
conhecimento – em A natureza do
processo: “[...] com frequência o
reino do diploma cria rigidez e ineficiência.
Antigamente, por exemplo, os colunistas econômicos dos grandes jornais
brasileiros eram economistas, profissionais ou amadores. Hoje eles têm que ser
obrigatoriamente formados em ‘comunicação’ – e, em consequência, pouco entendem
da matéria sobre a qual vão escrever...” (1982, p.26) E Merquior já se havia
inflamado, em Formalismo e tradição
moderna, contra o “pensar” “ilhado do especialista”, este “modelo da
pesquisa científica inconsciente das suas raízes culturais”. (2015, p.250);
b) Não
obstante sua própria convicção, declarada em ensaio de Razão do poema, de que a crítica literária e a literatura “se
conservam como funções distintas”, (2013, p.201) e o eventual desagrado de
alguns com sua linguagem, como Wilson Martins, que cita, em tom de farpa, a
observação de B. Woodbrige a respeito do livro de 1965 (“Sua densidade de
redação nem sempre facilita a leitura.”), (cf. 1983(a), p.712-713) José Guilherme Merquior foi um estilista da
língua portuguesa, algo amplamente reconhecido de muitos que o leram. Por
exemplo, Marcos Vinicios Vilaça, que o qualifica como “escritor de forma
elegante”; (2011, p.4) Eduardo Portella, que pontua o fato de que, na obra
merquioriana, “A língua deixa de ser um mero instrumento de que se serve o
argumento para se expressar, porque se amplia no conluio procriativo da palavra
instada pela imaginação”; (2011, p.7) e, por fim, Celso Lafer, para quem
Merquior escreveu “mesclando uma arte e um conhecimento que exprimia no seu
texto a virtuosidade da vivacidade do seu espírito”. (2011, p.30)
c) Essa
mesma linguagem, que se plasmou de arguta capacidade interpretativa e analítica
e se aparelhou de hercúleo mobilização bibliográfica, também se caracterizou,
em vários títulos, como “aquém do
jargão, além do chavão”, (1982, p.10; 1983(c), p.11) num propósito
pedagógico por excelência, tanto mais admirável por ter se embrenhado em
diversificadas áreas e em diversos autores e obras.
d) Também
o autor de O marxismo ocidental não
se rendeu, diferentemente do que tem sido a tradição acadêmica brasileira, aos ditames
da última novidade intelectual – demarcando sistematicamente uma autonomia de
pensamento, que se impôs, simultaneamente, pelo esforço tanto em atualizar-se acerca das correntes e das teorias mais
recentes e mesmo em voga, quanto em submetê-las a uma recepção crítica rigorosa.
Essa postura valeu não apenas para as matérias de ordem filosófica e teórica,
mas também para as artes e a literatura. Curiosamente, se, segundo Robert
Boyers, “Steiner foi o primeiro crítico na imprensa periódica americana a
defender autores como Thomas Bernhard, Leonardo Sciascia”, (2012, p.15) quanto
a este último, José Guilherme Merquior, em texto recolhido em O fantasma romântico e outros ensaios
(1980), declarou com entusiasmo similar: “Vários autores contemporâneos são,
como Leonardo Sciascia, críticos sociais independentes. Significativamente, o
ídolo de Sciascia é Voltaire: não tanto, é claro, por suas idéias, mas por ser
uma espécie de arquétipo da literatura crítica e reformista [...].” (1981,
p.39) Aliás, é inevitável não observar que Boyers, sempre no tocante à crítica
de George Steiner, cita o conselho de Elias Canetti, de que “o escritor devia
‘se colocar contra’ a própria ‘lei’ de sua época e fazer uma oposição ‘sonora’
e insistente.” (2012, p.20) A mesma que Merquior recorda como síntese de sua
própria compreensão política da literatura, em ensaio de O elixir do apocalipse dedicado ao prêmio Nobel de 1981. (cf. 1983(b),
p.45)
Mas
o que diria o próprio Merquior dessa aproximação? O nome de George Steiner
aparece nos textos do brasileiro, num primeiro período, como referência
acatada, para posteriormente tornar-se referência quase que atacada. A mudança
se dava como efeito da militância merquioriana, a partir do início da década de
80, contra o tenebrismo semântico da arte de vanguarda, abençoado pelo crítico
francês. Em ensaios do reeditado este ano Formalismo
e tradição moderna, que publicou em 1974, por exemplo, Merquior considera
Steiner “um dos melhores críticos firmados na última década”, com direito ao
acréscimo: “embora bem menos festejado no Brasil do que as vedetes
estruturaloides e seus jargões pseudocientíficos”. (2015, p.342) Muito porque o
ensaísta que dissecou a vida e o organismo do Kitsch promove um brinde à
denúncia steineriana do “recuo da posição hegemônica da expressão verbal na
cultura contemporânea”, que teria como “resultado global” “a new illiteracy de Richard Palmer
Blackmur: a paradoxal rusticidade retórico-literária da sociedade...
alfabetizada”. (2015, p.342) O
entusiasmo com Language and Silence
(1967) dá lugar, no pensamento de Merquior, a certa antipatia com os títulos
posteriores, como “o pretensioso After
Babel” (1983(b), p.27), livro de 1975, e On difficult and other essays, 1978, no qual é apontada, com dedo indicativo
e judicativo, a sombra da “asa negra do pássaro Heidegger”, para dizer dos “grandes
críticos [que louvam] o estilo das trevas e sua guerrilha contracultural”.
(1990, p.362)
Referências bibliográficas:
MARTINS, Wilson.
A crítica literária no Brasil
(1940-1981). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983(a). 2º vol.
MERQUIOR, José
Guilherme. A natureza do processo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983(b).
______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte
e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
______. Formalismo e tradição moderna: o
problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações,
2015.
______. O argumento liberal. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983(c). pp.44-47.
______. “O
significado do pós-modernismo” in O
fantasma romântico e outros ensaios. 1980. pp.27-41.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de
estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
VILAÇA, Marcos
Vinicios (coord. geral). Mesa-redonda em
homenagem aos 70 anos de José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras, 2011.
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