segunda-feira, 15 de julho de 2019

Reverso controverso em Merquior – sobre Verso universo em Drummond


Verso universo em Drummond representa para Nelson Ascher o “apogeu” da crítica literária merquioriana. Todavia, Ascher julga que nesse livro:

[...] as análises elaboradamente descritivas pouco têm de realmente iluminador ou instigante, menos ainda de nuançadamente valorativo e nada de muito surpreendente.

O amplo estudo de Merquior dedicado à poesia de Carlos Drummond de Andrade, ainda no entendimento de Nelson Ascher, “serviria antes para dispensar outros críticos de uma trabalheira preparatória com a obra do poeta, permitindo-lhes passar logo para as fases seguintes de seus estudos”. (disponível em "A canonização do bom reaça")
Se Verso universo em Drummond consiste na realização máxima da crítica literária merquioriana, mas pouco tem de realmente iluminador ou instigante, conclui-se que, segundo Ascher, José Guilherme Merquior seria o caso de um crítico que poderia ter sido, mas não foi.
Não concordamos com tal conclusão. Antonio Candido, o maior crítico literário brasileiro de todos os tempos, falecido em 2017, também não concordaria. Haja vista a primorosa análise da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, em “Poema do lá”, texto publicado em Razão do poema, interpretação altamente elogiada pelo grande autor de Formação da literatura brasileira.
Contudo, uma leitura limpa de incenso hagiográfico, nos força a endossar a avaliação específica de Verso universo em Drummond de Nelson Ascher.
Publicado em 1975 pela editora José Olímpio em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Verso universo em Drummond resultou da tese que Merquior tinha defendido em 1972, para obter o título de doutor pela Universidade de Sorbonne. O trabalho se desenvolveu sob orientação do professor Raymond Cantel, foi aprovado com louvor e, de fato, se tornou, com a tradução de Marly de Oliveira, leitura fundamental, incontornável para quem deseja aprofundar o conhecimento da poesia drummondiana e conhecer a história da recepção crítica do poeta mineiro.
As numerosas referências a Verso universo em Drummond atestam sua importância. Como as que encontramos em dois livros do estudioso britânico John Gledson, Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade (1981) e Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos (2003). Francisco Achcar o recomenda, numa lista de apenas cinco títulos, como bibliografia mínima e introdutória a respeito da obra drummondiana, em Carlos Drummond de Andrade (2000) da série Folha Explica.
Mas não se tem reparado em certos aspectos da linguagem e da estrutura textual de Verso universo em Drummond. Conquanto se trate de uma tese de doutoramento, o trabalho ostenta, sobretudo, características da forma ensaio. Primeiro porque não há aí propriamente nenhuma tese. Que grande sacada motiva o estudo? Nenhuma. Também as análises não partem de nenhum marco teórico. Conceitos e interpretações de outros autores, como a mescla estilística de Auberbach e o palavra-puxa-palavra de Otto Moacyr Garcia, são acionados como que ao sabor da pena, sem qualquer compromisso metodológico.
Tais aspectos da linguagem e tal estrutura textual nos levam a crer que Verso universo em Drummond não foi uma tese convertida em livro, mas um estudo escrito para ser um livro, que, antes de publicado como tal, foi apresentado como tese. Ao sabermos que seu outro orientador, Ernest Gellner, implicou com o caráter ensaístico da tese Weber e Rousseau, defendida por Merquior para obter o grau de PhD pela London School of Economics, podemos aquilatar a rebeldia anti-acadêmica da linguagem merquioriana.
Noticia-se que o professor francês Raymond Cantel, antes de ceder a palavra à defesa de José Guilherme Merquior de sua tese sobre Drummond, teria assumido que a banca estava ali, acima de tudo, para aprender. E distinguiram a aprovação do trabalho com louvor. Propalado como mais um feito espantoso de sua biografia, talvez seja o caso de nos lembrar do que Merquior ele mesmo costumava dizer sobre admirarem sua erudição:

“Minha famigerada erudição, já cansei de insinuar, mal passa de uma ilusão de ótica. Na maioria das vezes em que é indigitada, ela parece refletir apenas a ignorância dos que a acusam.”


sexta-feira, 21 de junho de 2019

“O modernismo e depois do modernismo na literatura brasileira” [Parte 3]: perguntas e respostas após a comunicação


Este será o terceiro e último post dedicado à comunicação “Le modernisme et après le modernisme dans la littérature brésilienne” pronunciada por José Guilherme Merquior no Colóquio de Cerisy (França) de 1978. Hoje terminam nossas considerações acerca do que Merquior respondeu a diversos acadêmicos presentes no evento.
Antes de propriamente darmos sequência ao post anterior (de 22 de maio), gostaríamos de enfatizar que, tanto na comunicação quanto em suas respostas, Merquior estabeleceu distinções entre o modernismo europeu e o modernismo brasileiro, de modo a demarcar como uma das conquistas do último uma autonomia inédita na história literária do Brasil em relação às influências culturais do Velho Continente. Nossos modernistas teriam sido bem sucedidos na descoberta identitária do País, desde os esforços românticos nesse mesmo sentido. A propósito, devemos atentar-nos para o fato de Merquior preservar a palavra portuguesa – modernismo – na sua comunicação em língua francesa, com o evidente objetivo de destacar as particularidades estéticas, históricas e sociais do movimento artístico em solo brasileiro.    
Para não tornar este post demasiado extenso, ater-nos-emos a três pontos:

1)                 Em linha de pensamento contrária à prestigiada pelos Estudos Culturais, José Guilherme Merquior ratifica a inserção cultural do Brasil no Ocidente, em meio à Europa, aos Estados Unidos e Canadá. Nas suas palavras: “[...] nous [les brésiliens] faisons partie intégrante de l’Occident, mais il y a plusieurs façons d’être occidental!” (p.208) [Tradução: “[...] nós [brasileiros] fazemos parte integrante do Ocidente, mas há diversas maneiras de ser ocidental!”]

2)                 Mímese figura como um dos conceitos mais importantes da crítica-estética merquioriana, e Benedito Nunes chegou por isso a distinguir o autor de A astúcia da mímese (1972) ao lado de Luiz Costa Lima. Na comunicação de Cerisy, Merquior recorre à antiquíssima noção, esclarecendo: “Le concept aristotélicien de mimésis est encore vivant, heureusement, mais il n’est plus incontesté et certains le rejettent.” [Trad: “O conceito aristotélico goza ainda de vitalidade, felizmente, mas não é mais incontestado e alguns o rejeitam.”] // No entanto, acreditava o ensaísta brasileiro que “tout art implique, d’une manière ou d’une autre, une mimésis, même si ce n’est pas une représentation « naturaliste ».” [trad: “toda arte implica, de uma maneira ou de outra, uma mímése, mesmo se não se trata de uma representação ‘naturalista’.”]

3)                 Merquior não dedicou muitas linhas às obras de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector. Nessa comunicação, há passagens preciosas que registram a compreensão merquioriana sobre o romancista mineiro, como a seguinte: Guimarães Rosa: “[...] avec Guimarães Rosa le régionalisme a fini son cycle dans la littérature brésilienne. Rosa a universalisé le régionalisme en lui prêtant une dimension orphique et gnostique, il a tenté et réussi une fusion superbe des techniques et de la sophistication du roman psychologique avec la tradition thématique régionale. Pour moi, son oeuvre referme le cycle régionaliste tout en l’universalisant, au lieu de le revitaliser.” (p.209) [Trad. “[...] com Guimarães Rosa o regionalismo pôs fim a seu ciclo na literatura brasileira. Rosa universalizou o regionalismo, conferindo-lhe uma dimensão órfica e gnóstica, ele realizou com maestria uma fusão soberba das técnicas e da sofisticação do romance psicológico com a tradição temática regional. Para mim, sua obra conclui o ciclo regionalista, universalizando-o totalmente, em vez de o revitalizar.”]

terça-feira, 21 de maio de 2019

“O modernismo e depois do modernismo na literatura brasileira” [Parte 2]: perguntas e respostas após a comunicação


No post anterior (publicado em 7 de maio), comentamos a comunicação “Le modernisme et après le modernisme dans la littérature brésilienne”, pronunciada por José Guilherme Merquior no Colóquio de Cerisy (França) de 1978. Neste de hoje, nossos comentários se referem às respostas do autor de O véu e a máscara às perguntas e aos questionamentos que lhe dirigiram professores ali presentes.
Destes a lista não é curta; nela constam franceses, brasileiros, argentinos, além de outras nacionalidades. Ao todo, eram eles: Norberto Gimelfarb, Andrée Mansau, Ligia Chiappini M. Leite, Eligio Calderón, Jacques Leenhardt, Claude Namer, Roger Duvivier, Elqui Burgos, Neide Luzia Rezende, Olivia Gomes Barradas, Michèle Sarrailh e Arturo Arias.
Uma das perguntas mais provocativas partiu do argentino Norberto Gimelfarb. Tendo constatado quase não haver referências a teóricos brasileiros na reflexão de Merquior sobre a literatura do Brasil no século XX, Gimelfarb interrogou-lhe se a lacuna decorreria de eles não existirem. Merquior respondeu que, embora houvesse teóricos e “pseudo-teóricos” brasileiros em fartura, nenhum deles, porém, teria até então produzido teorização histórica do porte de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido.
A resposta não consiste no único registro da alta conta na qual Merquior teve tanto o recém-falecido professor da USP quanto sua opus magna publicada em 1959. Como esse livro se atém ao arcadismo (século XVIII) e ao romantismo (século XIX) nacionais, Merquior disse ter precisado, para discutir a literatura brasileira do século XX, recorrer quase se exclusivamente a teóricos europeus, como Theodor Adorno e Walter Benjamin.
Os franceses Gimelfarb e Andrée Mansau manifestaram especial interesse nas relações entre os modernismos brasileiro e europeu. Merquior se limitou à menção do futurismo italiano, que teria cumprido “le rôle de détonateur” [“o papel de detonador”], e do surrealismo, que no Brasil teria se apresentado de “une forme modérée” [“uma forma moderada”]. Também afirmou que a influência de Blaise Cendrars entre Mário, Oswald e outros era “exagerada”, pois os modernistas paulistas se informaram da arte moderna europeia por meio de revistas estrangeiras, publicadas no Brasil desde o século XIX.
Andrée Mansau inquiriu ainda a respeito da relação dos nossos modernistas com a sociedade brasileira, a descoberta do espaço urbano, da população negra e das minorias. Sobre isso José Guilherme Merquior assinalou que o modernismo brasileiro se teria distinguido do europeu por se conduzir por um “facteur d’intégration et de légitimation culturelle” [“fator de integração e de legitimação cultural”], e não por um “facteur de rupture et de négation” [“fator de ruptura e de negação”]. Integração e legitimação de “expériences multi-raciales et multi-culturelles” [“experiências multi-raciais e multiculturais”]. (p.203) Também ressaltou o autor de Verso universo em Drummond que o modernismo surgiu por aqui sob a motivação da modernização social e o desejo de “rénovation technique de la littérature” [“renovação técnica da literatura”] (p.203)
Uma particularidade do nosso modernismo em face da história literária brasileira, segundo Merquior, é sua “verve particulièrement créatrice et non comme une simple double” [“verve particularmente criativa e não como uma simples duplicação”], o que teriam sido antes o romantismo e o realismo entre nós.
A brasileira Ligia M. Leite fez dois questionamentos a José Guilherme Merquior. Um acerca da suposta seriedade excessiva dele ao tratar do modernismo, uma estética nutrida de muita gozação (o termo empregado, em português, na fala em francês da professora é esse mesmo). O outro questionamento disse respeito aos trabalhos desenvolvidos por pesquisadores orientados por Antonio Candido, que já enfocavam a literatura modernista no Brasil.
Merquior respondeu a Ligia M. Leite que, não obstante a postura gozadora do modernismo, não caberia aos estudiosos do assunto assumi-la, e sim “prendre une distance historique, même s’il s’agit de la tradition vivante des lettres brésiliennes” [“tomar um distanciamento histórico, ainda que se trate da tradição contemporânea das letras brasileiras”] (p.204) Sobre o outro questionamento, Merquior insiste que “au niveau théorique il n’y a pas encore de texte majeur sur la nature et la signification du modernismo (sic)” [“em nível teórico não há ainda nenhum texto proeminente sobre a natureza e a significação do modernismo”].
O também francês Claude Namer perguntou a Merquior se o modernismo brasileiro teria sido de fato um movimento popular, quais teriam sido suas relações com a literatura de outros países latino-americanos e se concordava que as artes plásticas contemporâneas no Brasil teriam herdado algo do modernismo.
Merquior concordou com o professor Namer a respeito da influência modernista sobre as artes plásticas, especialmente sobre a arquitetura, como ilustraria a concepção de Brasília. A respeito da efetiva popularidade do modernismo, José Guilherme Merquior esclareceu que houvera, sim, um caráter popular na estética modernista, mas que isso não implicaria o envolvimento efetivo da população na força do movimento. O crítico brasileiro, a propósito, destaca a baixa escolaridade e o alto índice de analfabetos no País naquela época.

terça-feira, 7 de maio de 2019

“O modernismo e depois do modernismo na literatura brasileira” [Parte 1]


C’est au « modernismo » que revient la gloire d’avoir mis fin à la prépondérance de pareille gratuité ornamentale. En ce sens, le « modernismo » a été [...] le premier style dont les auteurs ont dépassé une conception de l’art littéraire au profit d’une orientation plus critique. [Deve-se reconhecer ao modernismo brasileiro a glória de ter dado fim à preponderância de equivaler-se a uma gratuidade ornamental. Nesse sentido, o modernismo brasileiro foi o primeiro estilo cujos autores ultrapassaram uma concepção cultual da arte literária em benefício de uma orientação mais crítica.]
José Guilherme Merquior

O título deste post traduz “Modernisme et après-modernisme dans la littérature brésilienne”, comunicação que José Guilherme Merquior proferiu em um dos Colóquios de Cerisy (França), realizado em 1978. Para dimensionarmos a importância desse evento, basta mencionar os nomes do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e o do teórico da literatura búlgaro Tzetan Todorov (1939-2017), que também dele participaram com comunicações.
Modernismo foi um dos assuntos pelos quais Merquior mais se interessou. Seu livro de estreia, Razão do poema (1965), registra, aliás, mais do que um interesse; ali não se disfarça o entusiasmo em relação ao legado modernista brasileiro, o qual àquela altura, conquanto já encerrado, ainda aguardava mais amplo reconhecimento.
A compreensão geral do modernismo brasileiro exposta na comunicação de Cerisy não difere substancialmente do que Merquior ensina em outros textos, como “O modernismo brasileiro (esquema)”, publicado em O fantasma romântico e outros ensaios (1980).
Na verdade, o percurso é sempre o mesmo:

Ø 1º passo: Diferencia a literatura do século XIX, marcada por uma “conception religieuse du rôle de la création esthétique” [“concepção religiosa do papel da criação estética”] (p. 190), da literatura moderna, esta governada por um “esprit de ludisme” [“espírito lúdico”]. (p.191)

Ø 2º passo: Esclarece que o caráter lúdico da literatura moderna se apresenta, no nível do conteúdo, no “sens de l’humour et de la parodie – bref, du grotesque” [“no sentido do humor e da paródia, isto é, do grotesco”], (p.191) nisso distanciando-se os escritores modernos da “vision tragicisante” [“visão tragicizante”] (p.191) comum entre os escritores vitorianos. No nível da forma, o caráter lúdico se apresenta como “désacralisation de l’oeuvre” [“dessacralização da obra”], sendo que a obra de arte modernista “est devenue le lieu géometrique des techniques expérimentales” [“tornou-se o local geométrico das técnicas experimentais”], nisso se contrastando com “l’aura sacrale de l’oeuvre-fétiche, dépositaire de la solemnité sotériologique de l’Art” [“a aura sacra da obra-fetiche, depositária da solenidade soteriológica da Arte”]. (p.191)

Ø 3º passo: Aponta na literatura moderna “l’exacerbation de l’antagonisme entre les valeurs dominantes de l’art avancé et celles de la culture bourgeoise et de la société industrielle” [“a exacerbação do antagonismo entre os valores dominantes da arte avançada e aqueles da cultura burguesa e da sociedade industrial”]. (p.192) Essa postura antagônica, para o autor, descamba para “l’incompatibilité radicale entre modernisme et modernité” [“a incompatibilidade radical entre modernismo e modernidade”]. (p.192)

Ø 4º passo: Um dos aspectos dessa incompatibilidade radical se concretiza na “polysémie à caractère énigmatique” [“polissemia de caráter enigmático”], (p.192) por assim dizer, visível na “obscurité viscérale d’une si grande partie de la haute littérature contemporaine” [“obscuridade visceral de uma grande parte da alta literatura contemporânea”]. (p.192)

Ø 5º passo: Recorre ao surrealismo como termo de identificação geral do modernismo europeu. Não no sentido de uma escola ou de um movimento específico, mas surrealismo no sentido de uma “essence de tout art moderne dans la qualité de répresentation indirecte du refoulé” [“essência de toda arte moderna na qualidade de representação indireta do que é reprimido”]. (p.193) Surrealismo, enfim, no sentido de uma escrita “cryptoallégorique” [“cripto-alegórica”]. (p.193)

Ø 6º passo: Verifica até que ponto os modernistas brasileiros se enquadram nas características acima explicitadas. Considerando o panteão do nosso modernismo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Graciliano Ramos, Cornélio Penna, entre outros –, Merquior reconhece nesse conjunto o caráter lúdico, tanto no nível da forma quanto no do conteúdo. Em contrapartida, não observa entre eles a forte atração para o enigmatismo, para a obscuridade, como no modernismo vanguardista europeu.

Ø 7º passo: Ensina que, no Brasil, a criatividade inovadora do modernismo se sentiu bem mais seduzida pela “assimilation esthétique de la réalité brésilienne” [“assimilação estética da realidade brasileira”]. (p.194) Essa disposição teria afastado nosso modernismo de assumir “la fonction contraculturelle du modernisme [européen]” [“a função contracultural do modernismo europeu”], (p.195) em benefício de um “nationalisme et régionalisme [lesquelles] avaient une portée foncièrement universaliste” [“nacionalismo e regionalismo que alcançavam um patamar claramente universalista”]. (p.196)

Sobre a literatura posterior ao modernismo, cujo período histórico se esgotaria na década de 40, Merquior distingue dois momentos literários, no Brasil e lá fora: o neomodernismo e o pós-modernismo.
Quanto ao primeiro, se os escritores europeus já não se fascinavam tanto pelo “élément surréalisant, cryptoallégorique, de l’écriture” [“elemento surrealizante, cripto-alegórico, da escritura”], (p. 196) os escritores brasileiros põem-se a desbravar o caminho inverso: Clarice Lispector e Guimarães Rosa, por exemplo, considerados neomodernistas por Merquior, ter-se-iam embrenhado no rumo da criptoalegoria. Louvável exceção no cenário neomoderno nacional, segundo o autor de A astúcia da mímese, seria João Cabral de Melo Neto, com o seu “mythe de la clarté dans la poésie” [“mito da claridade na poesia”]. (p.196)
Sobre o pós-modernismo brasileiro, a caracterização geral na comunicação de Cerisy se assenta no conceito de hiperrealismo, “au sens général d’un art ‘mimétique’ à vocation métonimique” [“no sentido geral de uma arte mimética com vocação metonímica”]. (p.196) O leitor familiarizado com o pensamento merquioriano sabe que tais qualificações constituem um elogio, cujo significado, escrevendo mais claramente talvez, é o de uma arte atenta à realidade social, disposta mais a refletir sobre o mundo do que refletir o mundo (“mimética”), mas de um modo parcial, “oblique et indirect” [“oblíquo e indireto”], sem pretender alcançar uma compreensão totalizante do mundo (“metonímica”). (p.197)
José Guilherme Merquior ainda expressava esperança de que as letras pós-modernistas, tanto lá fora quanto aqui, prometiam um “retour aux lumiéres” [“retorno às luzes”], impelidas que seriam por um afã neoiluminista. (p.199) Diga-se de passagem, essa esperança não demoraria a se frustrar, conforme se constata em textos do autor publicados poucos anos depois.
Sendo um crítico literário que nunca quis abrir mão de avaliar, de julgar, Merquior aquilata o legado modernista brasileiro como extremamente positivo e produtivo. O trecho da comunicação, recortado para ser epígrafe deste post, assevera que a literatura no Brasil, a partir do modernismo, assume postura crítica, e assim se distancia do comportamento ornamental típico do século XIX.
Cumpre atentar às menções a Nelson Rodrigues e a Clarice Lispector no texto destinado ao Colóquio de Cerisy – pois se trata de escritores pouco comentados e/ou referidos por Merquior. Possivelmente explique esse silêncio a pouca conta em que sempre tomou o ensaísta carioca o neomodernismo brasileiro, à exceção de João Cabral de Melo Neto.

  Outro silêncio chamativo, na comunicação, envolve o concretismo dos irmãos Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto e outros. Também se sabe que a poesia concreta jamais empolgou José Guilherme Merquior, parece que menos ainda do que a geração de 45 – um dos grupos mais atacados pelo crítico-polemista. 

segunda-feira, 22 de abril de 2019

“Merquior educador”: um novo busto para o MEC


Na edição de 6 de fevereiro deste ano (já faz um tempinho isso...), as Páginas Amarelas de Veja entrevistaram o agora ex-Ministro da Educação do Governo Bolsonaro. À pergunta “Se o senhor fosse trocar o busto de Paulo Freire no MEC, quem colocaria no lugar?”, Ricardo Vélez Rodríguez respondeu:

“Do século XIX, Tobias Barreto. Do século XX, Antonio Paim. Do século XXI, Olavo de Carvalho. [...]”

Frente a tais opções, creio ser preferível, além de pertinente, um busto de José Guilherme Merquior. Em reconhecimento a um dos maiores intelectuais da América Latina de todos os tempos, autor cuja obra revela ostensiva, permanente preocupação com a educação brasileira.
O Ministro, quem ratificou na entrevista uma declaração sua anterior, de que a universidade “representa [no sentido de "deveria representar"] uma elite intelectual”, não sendo um lugar para todos, praticamente repete Merquior, que criticava, já nos anos 70, o “imperativo da democratização do ensino, [que] vem destruindo [...] o [...] elitismo da universidade tradicional – o seu legítimo aristocracismo intelectual”.
Nestes tempos de incompreensão de muitas palavras ditas e ouvidas, escritas e lidas, convém frisar: “elitismo” e “aristocracismo” não se referem, nesse contexto, a qualquer elitismo econômico, nem a qualquer aristocracismo social, mas, sim, - exclusivamente - intelectual. Acresce que este texto não se propõe a desqualificar o legado pedagógico de Paulo Freire, reconhecido em diversos meios acadêmicos europeus e americanos.
Para os que, ainda assim, torcem, retorcem e contorcem o nariz para a defesa de um elitismo (ou aristocracismo) intelectual como parâmetro universitário, nós – professores e alunos brasileiros do ensino superior – podemos dizer muitas verdades... Apenas uma delas: não há certa sensação em nosso meio de normalidade a respeito de grande parte dos trabalhos acadêmicos discentes não passarem de plágios mal disfarçados?

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Merquior comenta a Constituição de 1988


Tomara que a nova Constituição [de 1988], quiçá revista e melhorada, possa fugir ao destino das cartas latino-americanas, tantas delas condenadas a ser o que Lowenthal batizou de “constituições pedagógicas”: um feixe bacharelesco de idealidades inviáveis, cruelmente desmentidas pela prática político-social, embora dotadas de módicos efeitos civilizatórios. Oxalá possa ela, aprofundando seus componentes liberais, dispensar o recurso ao reformismo von oben [de cima] – e ao liberalismo de estado – enraizando nos nossos mores a energia plural da liberdade, neste nosso fim de século [XX] cada dia mais digno de ser chamado Era da Liberalização.
José Guilherme Merquior (in “Liberalismo e Constituição”)

Neste ano de 2018, nossa Constituição Federal completou três décadas. A data ensejou uma farta safra de novas discussões sobre esse marco do Brasil redemocratizado, destacando-se as numerosas críticas a seus excessos: a começar, o excesso de páginas, o excesso de regulamentação da vida pessoal, familiar e empresarial, o excesso de direitos que o Estado, desde a promulgação da Carta, nunca pôde, e nunca poderá, realmente promover.
Já em 1989 foi publicado, sob coordenação de Paulo Mercadante, o livro Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Dentre as contribuições dos diversos autores, do quilate de um Miguel Reale e de um Roberto Campos, o leitor encontra no volume o texto “Liberalismo e Constituição”, de José Guilherme Merquior.
O título é daqueles nos quais os familiarizados com a obra merquioriana, e sabendo tratar-se de uma publicação da década de 80, farejam facilmente a autoria. De fato, nesse período Merquior se entusiasma, todo entregue, ao liberalismo como ideário cultural, sócio-político e econômico. Diga-se de passagem, essa sua atitude apologética coincidia, no plano mundial, com o desmoronamento do socialismo-comunismo no contexto da Guerra Fria, e a consequente vitória do capitalismo liberal, e, no plano nacional, com a progressiva abertura democrática do regime civil-militar até seu fim definitivo em 1985.
“Liberalismo e Constituição” não ultrapassa cinco páginas, e divide-se em duas partes. Na primeira, o diplomata graduado em Direito traça uma brevíssima história das constituições, que já vinham aparecendo desde a Idade Média, dentro de um percurso que se confundiria, em larga medida, com a história do liberalismo. O pequeno texto de Merquior principia nestes termos: “Sob certo aspecto, o próprio conceito de constituição é uma noção liberal.” (p.13)
É na segunda parte que José Guilherme Merquior se detém propriamente sobre a Constituição Federal de 1988, salientando a necessidade de uma “reforma constitucional” após o período 1964-1985, visto que então a política brasileira se depararia com uma “carência de legitimidade”, o que “a reconceituação dos direitos”, “a redefinição do papel do Congresso” e “a posição dos Estados frente à federação” haveriam de ser sanar, (p.15) pelo menos no que se referia à esfera política.
Quanto ao resultado da reforma constitucional, Merquior aponta alguns problemas. Um dos quais a incoerência de “certa dose de Parlamentarismo de facto ter desfigurado a opção presidencialista da nova Carta”, embora para o comentarista tal descaracterização “só poderia exprimir a vontade de evitar o arbítrio – velho leitmotiv liberal”. (p.16) Também Merquior lamenta a perda da oportunidade de consolidar “um bom conceito social de democracia”, visto que no Brasil “[t]emos praticado com grande indulgência o democratismo, caricatura daninha da democracia”. (p.16) Isto é, a Constituição de 88 não lhe parecia preocupar-se em fomentar na sociedade como um todo a participação vigilante dos verdadeiros cidadãos, principais responsáveis – ao fim e ao cabo – pelo funcionamento eficiente da democracia.
Fosse como fosse, dentre os pontos positivos, estariam os “vários elementos liberais e libertários” e “uma justa e necessária dose de restauração liberista – de recuperação da enorme importância da descrentalização econômica”, conquanto ao lado de “traços estatizantes e protecionistas”. (p.16)
Por fim, José Guilherme Merquior torcia, naqueles primeiros meses de redemocratização do Brasil, para que a nossa Constituição não se tornasse no que, em grande medida, veio a se tornar... Releia meu leitor, por gentileza, a epígrafe deste post.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Merquior pugilista: a propósito de uma polêmica com o crítico Wilson Martins


Wilson Martins é uma alma crítica entortada pelo defeito mais sério que pode ter um oficial de nosso ofício: não sabe, coitado, admirar. Sua obra ultraprolífica vive torcendo o nariz. Quase nada lhe agrada, nem velho nem novo [...].
José Guilherme Merquior (in “O martinete”)

José Guilherme Merquior se consagrou como um dos maiores polemistas brasileiros do século passado. Erudito, inteligente, de argumentação pronta e aguda, linguagem estilosa e ferina, o autor de O marxismo ocidental se divertia tanto em travar duelos de ideias e palavras, que Sergio Paulo Rouanet, em evento ocorrido na Academia Brasileira de Letras, por ocasião dos 10 anos completos da morte do grande amigo, brincou, ao concluir seu depoimento: “[...] Merquior [...] com certeza deve estar pairando nesta sala, impaciente por não poder polemizar conosco, discordando de tudo o que foi dito aqui.” (p.259) [texto disponível aqui]
Episódio de umas das polêmicas das quais participou o imortal sucedido por Fernando Henrique Cardoso na cadeira 36 está publicado no número 184 da revista Tempo Brasileiro, cujo tema é “História e arte no mundo ibérico”. O adversário da vez é o crítico literário Wilson Martins (1921-2010).
O texto intitula-se “O martinete”, um contra-ataque que o polemista desferia, em resposta às críticas que seu O elixir do apocalipse (1983), então recém-publicado, vinha recebendo de quem, no segundo volume de A crítica literária no Brasil, já tratara com azeda antipatia a linguagem merquioriana, em passagens como esta: “Escrevendo melhor ou com mais clareza do que José Guilherme Merquior, havia, entretanto, um crítico...” (1983, p.713)
Na verdade, O elixir do apocalipse também investe contra Wilson Martins, sobretudo pela presunção deste, segundo Merquior, em reivindicar para si o pioneirismo do que viria a desbravar, com mais alarde, a alemã Estética da Recepção e do Efeito, a partir do final da década de 1960.
A assombrosa erudição de José Guilherme Merquior provocava admiração em uns e irritação (inveja daquelas bravas?) em outros, dentre os quais Wilson Martins, que o acusa de “alienação intelectual e lacunosa familiaridade com as letras brasileiras”. A isso o ensaísta erudito responde, conciliando, de forma esplêndida, modéstia e sarcasmo: “Minha famigerada erudição, já cansei de insinuar, mal passa de uma ilusão de ótica. Na maioria das vezes em que é indigitada, ela parece refletir apenas a ignorância dos que a acusam.” (p.383)
A respeito de seu suposto desconhecimento literário nacional, a réplica estronda como um soco do Mike Tyson no queixo: “Nem é a ele [Wilson Martins] que o Times Literary Suplement, o mais difundido e prestigioso suplemento literário do mundo, costuma encomendar, há dez anos, artigos sobre literatura brasileira.” (p.384)
Merquior não perde a oportunidade, ainda, de revidar as críticas que recebera em A crítica literária no Brasil, cuja “prosa baça” conduz as páginas da “obra mais prolixamente obtusa que já se escreveu sobre a história de qualquer crítica nacional”. (p.384)
A caracterização sumária de Wilson Martins por José Guilherme Merquior é a que consta como epígrafe deste post: “[...] uma alma crítica entortada pelo defeito mais sério que pode ter um oficial de nosso ofício: não sabe, coitado, admirar”. (p.384) Segundo o autor de O elixir do apocalipse, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto, a Estética da Recepção e do Efeito (uma teoria e metodologia literárias que surgiu na Alemanha em fins dos anos 60)... para tudo isso, e muito mais, Wilson Martins entortava o nariz. Reconhecendo o valor dos dois poetas brasileiros e das contribuições dos alemães na compreensão da literatura, Merquior encontra força para desferir o nocaute: um golpe certeiro num nariz torto...  

Referências bibliográficas

Martins, Wilson. A crítica literária no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2º vol (1940-1981).