segunda-feira, 12 de maio de 2014

De Anchieta a Euclides: crítica literária e história da literatura

Bem-vindo seja, para muito em breve, o quarto volume da Biblioteca José Guilherme Merquior da editora É Realizações, com organização do prof. João Cezar de Castro Rocha. O título: De Anchieta a Euclides, cuja primeira edição data de 1977 (pela editora José Olympio), havendo ainda outras duas, a de 79 (também pela José Olympio) e a de 96 (pela Topbooks). Tivemos a grata honra de contribuir com um texto nessa edição, intitulado “Merquior ou a rebeldia com razão”,[i] e aqui gostaríamos de acrescentar comentários em torno desse mesmo livro, objetivando situá-lo no contexto da crítica literária e do pensamento do próprio Merquior, de modo bastante sintético.


A história das literaturas nacionais consagrou-se como gênero de destaque na crítica literária do século XIX, espécie de correspondente da epopeia para a poética clássica, credencial de maior respeitabilidade que poderia laurear seu autor. Assim como Francesco Petrarca e Cláudio Manoel da Costa ambicionaram ser reconhecidos, sobretudo, por respectivamente África e Vila Rica, dois poemas épicos frustrados e sobrepujados pelo estro lírico dos poetas itálico e mineiro, com mais felicidade Teófilo Braga em Portugal, Sílvio Romero e José Veríssimo no Brasil realizaram-se como críticos literários, sobretudo, porque legaram suas monumentais histórias da literatura portuguesa o primeiro e da literatura brasileira os dois últimos.

Dois eventos básicos e ideologicamente irmanados estabeleceram as diretrizes conceituais e o prestígio desse gênero crítico ao longo do oitocentos. Um foi a consolidação da própria história como disciplina de estatuto protocientífico, sob estímulo do racionalismo iluminista da segunda metade do século anterior, o XVIII. Desde essa mesma época, vinha se constituindo fenômeno político-cultural tipicamente moderno, a nação, cujo destino e influência se podem medir por episódios como a Revolução Francesa (1789) e as guerras de independência das colônias europeias nas Américas. Ambos os eventos mencionados no início deste parágrafo atestavam o decisivo abalo da concepção clássica de universalidade, no âmbito tanto geográfico quanto cronológico. Era um contexto que incentivava pensar o transcurso do tempo e das ações do homem através da ótica relativista, privilegiando as particularidades identitárias que cada pátria procurava, a partir de uma esfera discursiva, sem dúvida, restrita a uma elite, encarnar. De qualquer forma, se, no Ancien Régime, aristocratas de diferentes reinos sentiam-se mais próximos, em termos de identificação, uns com os outros do que com o extrato popular de seus respectivos reinos, a modernidade político-cultural delineada pela ideia de nação – muito bem resumida no lema revolucionário da liberté, égalité et fraternité – disseminava o sentimento superior de nacionalidade.

O despertar das consciências nacionais no Ocidente do século XIX se serviu largamente da literatura, a qual o romantismo libertava dos preceitos retóricos universais do classicismo, passando a direcioná-la conforme projetos de índole patriótica ou nacionalista, a exemplo do que se passou no Brasil, com a obra de Gonçalves Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, e em Portugal com a de Almeida Garrett e Alexandre Herculano. O grande artista clássico se tinha manifestado pela obediência aos modelos, na manipulação engenhosa da imitatio e da aemulatio. Já o grande artista romântico, compreendido como gênio, era a expressão do Volksgeist (o espírito do povo).

No decorrer do século XIX, crítica literária e história da literatura – esta, aqui, não somente na acepção de gênero textual – confundiram-se. Madame de Staël, cuja obra se impôs como uma das mais influentes na primeira metade da centúria, compreendia a literatura em relação às civilizações, chegando a propor mapeamento em que o sul europeu, ensolarado (condição de estímulo a uma visão racional) se caracterizava pela propensão ao clássico, ao passo que o norte do continente, brumoso (condição de estímulo a uma visão onírica) se caracterizava pela propensão ao romântico. Álvares de Azevedo, em Literatura e civilização em Portugal, seguindo a lição de Staël, afirmará que “Mudai as relações do país e a literatura muda”. Conquanto o poeta da Lira dos vinte anos tenha destoado no tocante à afirmação nacionalista romântica da literatura brasileira, sua perspectiva e seus pressupostos não se distinguem muito dos que, como Joaquim Norberto, que planejou escrever nossa primeira História da literatura brasileira, e Nunes Ribeiro, argumentavam em favor da nacionalidade autônoma, em relação a Portugal, da produção literária do País então recém-independente.
O recorrente respaldo biográfico, à maneira de Brunetière, que apontava na intenção autoral o significado a ser desvendado na obra, era outro elemento do primado histórico da crítica da época, sem ainda, geralmente, perder-se de vista o teor patriótico ou nacionalista ou, pelo menos, da nacionalidade em questão. A segunda metade do século, menos metafísica e mais positivista, que abraçou a perspectiva de Hypolite Taine, não foi menos apegada à história (agora aliada da geografia e da biologia), ao apontar no meio, na raça e no tempo as condicionantes da constituição literária, cada uma delas, adotadas com maior acento, respectivamente, em terras tupiniquins, por Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo.

Logo nas primeiras décadas do novecentos, novas correntes dos estudos literários golpearam a credibilidade da história como perspectiva central de análise. O formalismo na Rússia, o New Criticism nos Estados Unidos e a estilística na Europa questionaram a tradição crítica do século anterior, acusada de concentrar-se em aspectos extratextuais, como a vida do autor (biografia e contexto histórico), para explicar o objeto literário. Empolgava os formalistas o objetivo morfológico-descritivo de reconhecer o que constituiria a literariedade, isto é, o que diferenciava o texto literário do não literário, assim como estabelecer fronteiras formais entre conto, novela e romance, por exemplo. O New Criticism norte-americano igualmente se aventurou em busca de compreensão imanentista da literatura. Denominaram de “falácia da intenção” a autoria concebida como chave interpretativa do texto, e postularam o close-reading, a leitura cerrada, desatenta a tudo que não fosse o próprio texto, como orientação metodológica de análise. Interessada acima de tudo na dimensão fonética, lexical, sintática e tópica do objeto literário, a estilística, se não eliminou de todo a perspectiva histórica, pelo menos procurou fugir ao problemático propósito totalizador das tradicionais histórias da literatura, preferindo eleger aspectos específicos a serem rastreados em determinado período, via de regra, em âmbito antes cosmopolita que nacional, como é o caso de Mímese (1946), de Erich Auerbach, e Estrutura da lírica moderna (1956), de Hugo Friedrich. Cumpre, todavia, observar que os formalistas russos também, em estágio posterior de suas reflexões, concluíram que a exclusividade da perspectiva imanente não bastava para a compreensão satisfatória da literatura, uma vez que o conceito de estranhamento ou de desautomatização perceptiva apenas se poderia dar dentro de uma série literária, ou seja, o significado de uma obra pressupunha obras anteriores e contemporâneas.

Quanto à segunda metade do século XX, principalmente no tocante às décadas de 60 e 70, a crítica literária do estruturalismo descartou mais ostensivamente a dimensão histórica, incentivada pelo suposto primado da sincronia saussuriana. Em compensação, em conferência pronunciada em 1967, na Universidade de Constança, Alemanha, Hans Robert Jauss dava à luz nova corrente da crítica conhecida como estética da recepção, que restaurava – embora sem a mesma repercussão avassaladora do estruturalismo – o lugar da história nos estudos literários. A teoria que Jauss anunciou centralizava o papel do leitor ou, mais especificamente, do público-leitor na constituição histórica do significado do texto, conjugando o corte sincrônico, para apreender-se o impacto da obra no contexto de publicação, com o corte diacrônico, para avaliar-se como a obra vai sendo lida de uma época para outra.

Essa falta de lugar ou essa reacomodação da história dentro da crítica literária era consequência de uma problematização maior, que reavaliava a história mesma como disciplina legada ao novo século pela filosofia metafísica e pelo positivismo, perpassada pelos discursos teleológicos e nacionalistas. De fato, o pensamento pós-moderno (sendo Lyotard uma dessas vozes) viria a decretar a falência das grandes narrativas, fazendo a historiografia mergulhar mais fundo no relativismo dos vencidos e das minorias que até então não puderam ter voz nos registros oficiais. Nos embalos dos Cultural Studies, abalava-se, assim, a própria ideia de cânone, um dos fundamentos que a perspectiva das histórias literárias, cumpre dizê-lo, já começara no século XIX a comprometer, ao focalizar preferencialmente os autores nacionais aos autores considerados universais, na contracorrente da prerrogativa da episteme clássica.

Ao lado do Formalismo Russo, da Estilística, da Estética da Recepção, correntes nas quais a dimensão histórica ainda encontrava lugar, deve-se mencionar as propostas da literatura comparada, os próprios Estudos Culturais em ascensão, e, de maior duração e penetração nos três quartéis iniciais do século XX, a crítica de instrução marxista e sociológica, a de George Lukács, a de Walter Benjamin, a de Theodor Adorno, mais sofisticadas e inovadoras em relação à reflexologia que acabava por incorrer em mais proximidade do que distanciamento da tradição crítica oitocentista, praticada especialmente atrás da Cortina de Ferro.

De Anchieta a Euclides, publicado em 1977, enfrentou a complexidade desse contexto que acima pretendemos ter esboçado. Talvez o fato de não ter se desviado propriamente das linhas tradicionais das histórias da literatura explique a fria recepção que o livro de José Guilherme Merquior encontrou na época. Algo lamentado, no calor ou na gelidez do momento, por Carlos Felipe Moisés, para quem “o livro em pauta constitui um dos mais importantes acontecimentos literários e culturais dos últimos anos”. (1979, p.8) Porém, cabe a pergunta: o que o volume – uma “breve história da literatura brasileira” – efetivamente trazia de contribuição aos estudos literários nacionais?

Uma coisa é certa: o gênero “história da literatura”, no Brasil daquele período (meados da década de 1970), parecia mesmo manifestar sinais de redução de prestígio. Consideremos o arco de 1967 a 1978, ou seja, os nove anos antes e o ano depois da publicação de De Anchieta a Euclides. À guisa de amostragem, podemos citar o aparecimento massivo de reedições: de A literatura no Brasil, organizada por Afrânio Coutinho, de Formação da literatura brasileira de Antonio Candido, da História da literatura brasileira de Antônio Soares Amora, da Pequena história da literatura brasileira de Ronald de Carvalho, da História da literatura luso-brasileira de Francisco da Silveira Bueno, da História da literatura brasileira de Nelson Werneck Sodré, da Presença da literatura brasileira de José Aderaldo Castello e Antonio Candido, da História da literatura brasileira de Lucia Miguel-Pereira, da coletânea da Cultrix, composta pelos volumes Manifestações literárias do período colonial, de José Aderaldo Castello; O romantismo, de Antônio Soares Amora; O realismo, de João Pacheco; O simbolismo, de Massaud Moisés; O pré-modernismo, de Alfredo Bosi; e O modernismo, de Wilson Martins, da História da literatura brasileira de Artur Mota, além da mais antigas História da literatura brasileira de Sílvio Romero e a de José Veríssimo; e da 1ª à 6ª edições da História concisa da literatura brasileira de Alfredo Bosi. Fiquemos por aqui. Dessa lista, que pretendemos seja significativa, parece-nos correto concluir, por um lado, que a demanda editorial por livros desse gênero, marcadamente didático, justificava a publicação de um título como o de José Guilherme Merquior. Por outro lado, que a maior parte dos que acima elencamos tinha vindo a público na década de 1960 ou mesmo antes. Desse modo, De Anchieta a Euclides poderia se propor, de início, como contribuição à atualização da nossa historiografia literária, ou, nas palavras que intitulam outra resenha (de Márcio Almeida) sobre o livro, um “re-conhecimento da literatura brasileira” (1978, p.10)

Conquanto nele se tenha apontado equívocos de informação,[ii] De Anchieta a Euclides cumpria papel, menos textual do que contextual, de um manifesto antiformalista, de modo que se tratava de trabalho em plena sintonia com a campanha de seu autor, incomodado com a sedução do estruturalismo na crítica literária da década de 70, especialmente no Brasil. A data do prefácio do livro, 1974, é, aliás, significativa: nesse mesmo ano, José Guilherme Merquior publica Formalismo e tradição moderna e o artigo “O estruturalismo dos pobres” no Jornal do Brasil. No ano seguinte, redigiria “Os estilos históricos na literatura ocidental”, contribuição para o volume Teoria literária, organizado pelo amigo Eduardo Portella, e publicaria traduzida A estética de Lévi-Strauss. Essas quatro intervenções se voltavam para um mesmo propósito: a defesa de abordagem crítica na qual a história sociocultural fosse captada na forma do objeto literário, a exemplo do que teria realizado, sob aplauso de Merquior, expresso em nota à segunda edição do prefácio a De Anchieta a Euclides, Roberto Schwarz, em Ao vencedor as batatas, livro publicado naquele mesmo ano de 1977.

A meta do crítico, na visão de Merquior, era “saber ler a história no texto, em vez de dissolver o texto na História”, conforme advertia no volume, citando Ezio Raimondi e esclarecendo que tanto o sociologismo herdado do século XIX, que dissolvia ainda no XX as obras literárias na condição de mero reflexo da ambiência histórica (como o vinham fazendo muitos marxistas), quanto considerar o texto não em sua autonomia, mas sim numa espécie de autarquia (como o vinham fazendo os estruturalistas) eram soluções incapazes de compreender adequadamente o fenômeno literário.

Em ensaio de homenagem a Antonio Candido, coligido em Esboço de figura, organizado por Celso Lafer, por ocasião da aposentadoria do grande professor da USP, em fins da década de 70, José Guilherme Merquior informará com orgulho sobre Formação da literatura brasileira:

Símbolo fecundo como poucos, e a justo título inspirador de toda uma inteligência de nosso passado literário. Pessoalmente, foi nele (para não falar de várias outras sugestões de Mestre Candido) que me inspirei (em De Anchieta a Euclides) ao tentar divisar a função latente do momento seguinte na história de nossas letras: o pós-romântico visto como fase de sofisticação técnico-intelectual do nosso sistema literário; como nele tornaria a me inspirar, ao debuxar o perfil da função do modernismo como aprofundamento do potencial de autognose da cultura brasileira. (p.124)

Para Merquior, o livro de 1959 de Candido, ademais, realizava modelarmente a postura crítica frente à literatura, consoante a concepção de que o texto é resultado, isto é, a obra dialoga necessariamente com a sociedade onde é produzida, porém o social converte-se em forma na criação literária. Citemos ainda o ensaísta carioca: “No fundo, Antonio Candido subscreveria sem hesitar o lema do jovem Lukács [...]: o social, na obra de arte, é antes de tudo a forma.” (p.123)

Já mais ao fim do ensaio, intitulado “O texto como resultado”, José Guilherme Merquior cobrava um avanço em relação ao legado do professor da USP, no sentido de “sublinhar mais e melhor as variáveis externas codeterminantes da obra de arte literária”, “usando[-se] com maior empenho os recursos das ciências sociais”. (p.128) Essa cobrança parece-nos satisfeita pelo próprio autor em De Anchieta a Euclides, na medida em que o volume se aparelha de consistentes conhecimentos sociológicos, com base nos quais se reflete a respeito da literatura como manifestação, antes de tudo, sócio-cultural. Exemplo disso é a explicação merquioriana para o artesanato virtuosístico da linguagem pós-romântica (o parnasianismo de Bilac, mas também de Cruz e Sousa), motivado pela tentativa de afirmação aristocratizante de autores pertencentes, no mais das vezes, à pequena burguesia.

De Anchieta a Euclides também ratificava a validade dos estilos de época, tão atacados ainda hoje, mas, no fim das contas, sempre acatados como abordagem contextualizadora de abrangência. Acerca da questão, ensinava Mestre Merquior, em texto contido em Teoria literária, organizado por E. Portella:

Tanto quanto os estilos de autor, os estilos epocais existem – por mais esquivos que sejam ao arsenal classificatório da história da literatura. Podemos aprimorar os instrumentos lógicos utilizados para compreendê-los, porém não temos o direito de fingir que se trata de puras fantasias arbitrárias, imotivadas pela realidade da literatura.
Se os conceitos periodológicos parecem com tal frequência meros flatus vocis, é porque se insiste em atribuir-lhes uma pretensão essencialista, em conferir-lhes um estatuto lógico-epistemológico que na verdade nunca possuíram. (1975, p.40)

Esse reconhecimento dos estilos de época fundamentava-se nas averiguações da relação entre texto e contexto, o primeiro compreendido como resultado do segundo, consoante a fórmula de Antonio Candido. Trata-se de perspectiva, com efeito, não enrijecida, mas elástica, conforme José Guilherme Merquior observa na citação acima. Tanto assim é, que ele, em reflexões reunidas no volume O fantasma romântico e outros ensaios, por um lado, corrobora a existência do modernismo brasileiro, não obstante a pluralidade estilística do suposto movimento, mas por outro lado assinala a coexistência de uma literatura propriamente modernista e de uma literatura moderna, na Europa do século XX inicial.

É, de fato, uma pena não se ter cumprido a promessa do segundo volume daquela “breve história da literatura brasileira”.[iii] Tanto o modernismo ocidental quanto o modernismo brasileiro interessaram e marcaram sempre o pensamento merquioriano.

Ficamos a nos perguntar se hoje seria possível escrever uma história da literatura brasileira, seja nas proporções hercúleas de um Sílvio Romero, seja nas sintéticas do próprio José Guilherme Merquior. Em A literatura no Brasil, Afrânio Coutinho encarava a realidade modesta do crítico novecentista, que dificilmente poderia dominar satisfatoriamente tal número de autores, tal número de obras, tais períodos percorridos pela cultura de todo um país, sobre os quais vinham aparecendo trabalhos mais específicos e mais aprofundados. Saber tudo de tudo não passaria de uma presunção de diletante, aos olhos – nisso especialmente lúcidos – do professor baiano.

A possibilidade e a importância da historiografia literária têm sido confirmadas, em nossos tempos. De início, porque livros como Literatura brasileira hoje (2004), da Publifolha, devem ser avaliados principalmente segundo critérios que levem em conta o leitor alvo. Acreditamos que, no Brasil, país de educação precária e, ainda assim, em declínio no tocante talvez não à quantidade, mas decerto à qualidade, vale muito a lógica das obras literárias adaptadas. É melhor ler Graciliano Ramos adaptado do que não ler Graciliano Ramos nenhum. Pois, quem sabe a adaptação não desperta o interesse para o romancista alagoano puro sangue? O professor, o pesquisador e o crítico que torcem o nariz para as adaptações literárias sofrem de síndrome da torre de marfim; parecem desconhecer – e não desconhecem – o fato desalentador de que lutamos para instruir uma sociedade para a qual a leitura é um sacrifício a ser evitado, a todo custo. Se, diante desse descaso governamental e dessa ignorância social arraigadas, já fica difícil acusar qualquer livro, ou melhor, a leitura de qualquer livro de superficialidade, nocividade ou desserviço intelectual, quanto mais as bem intencionadas histórias da literatura brasileira.

Também se confirmam a possibilidade e a importância das histórias da literatura brasileira no viés da revisão e do questionamento, caso emblemático da trilogia de Flavio R. Kothe, composta de O cânone colonial, O cânone imperial e O cânone republicano. Não concordamos com certos aspectos da perspectiva de Kothe nessa empreitada. Exigir dos sonetos de Camões, um poeta clássico, originalidade é incorrer em anacronismo crasso. Cobrar da “Canção do exílio” de Gonçalves Dias similitude entre expressão poética e veracidade histórico-biográfica é cometer injustiça absurda contra a autonomia artística. Mesmo assim, os livros de Kothe têm o mérito de instigar o debate em torno do cânone literário nacional e dos fundamentos políticos que o instituíram ao longo dos séculos de nossa história. Um ponto ferido pelo tradutor de Walter Benjamin é, especialmente, sério: devemos ler e incentivar a ler, nas escolas, José de Alencar, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Lima Barreto, Mário de Andrade somente ou principalmente porque são autores brasileiros? Sim, o nacionalismo subjacente ao discurso da historiografia literária de um país requer o policiamento atualizador de nossa análise. Mas igualmente o requer o estético como valor e critério de seleção ou canonização.

Nas últimas páginas de sua Introdução à historiografia da literatura brasileira, Roberto Acízelo de Souza, docente universitário de reconhecida preocupação com questões didáticas em torno da literatura, enceta uma breve, mas convincente defesa da história literária como etapa inicial de conhecimento (ou re-conhecimento, para retomarmos o termo de Márcio Almeida) da nossa literatura. O professor manifesta plena consciência de que o nacionalismo e a narrativa historiográfica tradicional sofrem, nestes dois séculos mais recentes, de descrédito e desprestígio no meio intelectual. Todavia, nas palavras de Acízelo de Sousa,

[...] salvo demonstração em contrário, não há como construir um entendimento do objeto cultural chamado literatura pelo caminho exclusivo da teoria, sem uma constante remissão à contínua reconfiguração desse objeto segundo decurso do tempo, isto é, conforme o ritmo da história”. (p.151)

Merquior, igualmente preocupado com o presente e o destino de nossos estabelecimentos de ensino superior, com certeza subscreveria as conclusões do professor Acízelo de Souza. De Anchieta a Euclides o atesta.

Referências bibliográficas

Almeida, Márcio. “De Anchieta a Euclides: o re-conhecimento da literatura brasileira” in Suplemento Literário de Minas Gerais. v. 13, n. 601, p. 10, abr. 1978.
MERQUIOR, José Guilherme. “Estilos históricos na literatura ocidental” in PORTELLA, Eduardo et alii. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.40-92.
______. “O texto como resultado (notas sobre a teoria da crítica de Antonio Candido)” in ARINOS, Afonso et alii. Esboço de figura: homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979. pp.121-131.
SOUSA, Roberto Acízelo de. Introdução à historiografia da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007.



[i] À altura em que redigimos esse texto, desconhecíamos a resenha de Carlos Felipe Moisés sobre De Anchieta a Euclides, publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais de fevereiro de 1978 (vol. 13; no. 644). Aí o resenhista já havia detectado a aplicabilidade do que ensinava Merquior a respeito do estilo e da abordagem críticas de Araripe Júnior sobre o próprio Merquior, citando passagem que nós também citamos antecedida por comentário semelhante. Como compensação pela decepção de termos descoberto que não fomos o primeiro a dizê-lo, tal plágio involuntário nos deixa feliz, por reforçar a validade da observação comum. 
[ii] Infelizmente, não nos recordamos nem do título da resenha, tampouco do autor que assinalava tais problemas no livro de Merquior.
[iii] Inicialmente, o plano, proposto por Adonias Filho, era que Merquior redigisse o primeiro volume dessa história da literatura brasileira, contemplando do período colonial até fins do séculos XIX e princípio do XX, e Eduardo Portella se encarregaria, no segundo volume, do século XX. No entanto, Portella declinou do convite, pois uma “progressiva intolerância [...] foi tomando conta de mim diante dos vícios do historicismo”, conforme relatou, por ocasião da comemoração dos 70 anos de nascimento de Merquior, promovida pela Academia Brasileira de Letras.