terça-feira, 21 de maio de 2019

“O modernismo e depois do modernismo na literatura brasileira” [Parte 2]: perguntas e respostas após a comunicação


No post anterior (publicado em 7 de maio), comentamos a comunicação “Le modernisme et après le modernisme dans la littérature brésilienne”, pronunciada por José Guilherme Merquior no Colóquio de Cerisy (França) de 1978. Neste de hoje, nossos comentários se referem às respostas do autor de O véu e a máscara às perguntas e aos questionamentos que lhe dirigiram professores ali presentes.
Destes a lista não é curta; nela constam franceses, brasileiros, argentinos, além de outras nacionalidades. Ao todo, eram eles: Norberto Gimelfarb, Andrée Mansau, Ligia Chiappini M. Leite, Eligio Calderón, Jacques Leenhardt, Claude Namer, Roger Duvivier, Elqui Burgos, Neide Luzia Rezende, Olivia Gomes Barradas, Michèle Sarrailh e Arturo Arias.
Uma das perguntas mais provocativas partiu do argentino Norberto Gimelfarb. Tendo constatado quase não haver referências a teóricos brasileiros na reflexão de Merquior sobre a literatura do Brasil no século XX, Gimelfarb interrogou-lhe se a lacuna decorreria de eles não existirem. Merquior respondeu que, embora houvesse teóricos e “pseudo-teóricos” brasileiros em fartura, nenhum deles, porém, teria até então produzido teorização histórica do porte de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido.
A resposta não consiste no único registro da alta conta na qual Merquior teve tanto o recém-falecido professor da USP quanto sua opus magna publicada em 1959. Como esse livro se atém ao arcadismo (século XVIII) e ao romantismo (século XIX) nacionais, Merquior disse ter precisado, para discutir a literatura brasileira do século XX, recorrer quase se exclusivamente a teóricos europeus, como Theodor Adorno e Walter Benjamin.
Os franceses Gimelfarb e Andrée Mansau manifestaram especial interesse nas relações entre os modernismos brasileiro e europeu. Merquior se limitou à menção do futurismo italiano, que teria cumprido “le rôle de détonateur” [“o papel de detonador”], e do surrealismo, que no Brasil teria se apresentado de “une forme modérée” [“uma forma moderada”]. Também afirmou que a influência de Blaise Cendrars entre Mário, Oswald e outros era “exagerada”, pois os modernistas paulistas se informaram da arte moderna europeia por meio de revistas estrangeiras, publicadas no Brasil desde o século XIX.
Andrée Mansau inquiriu ainda a respeito da relação dos nossos modernistas com a sociedade brasileira, a descoberta do espaço urbano, da população negra e das minorias. Sobre isso José Guilherme Merquior assinalou que o modernismo brasileiro se teria distinguido do europeu por se conduzir por um “facteur d’intégration et de légitimation culturelle” [“fator de integração e de legitimação cultural”], e não por um “facteur de rupture et de négation” [“fator de ruptura e de negação”]. Integração e legitimação de “expériences multi-raciales et multi-culturelles” [“experiências multi-raciais e multiculturais”]. (p.203) Também ressaltou o autor de Verso universo em Drummond que o modernismo surgiu por aqui sob a motivação da modernização social e o desejo de “rénovation technique de la littérature” [“renovação técnica da literatura”] (p.203)
Uma particularidade do nosso modernismo em face da história literária brasileira, segundo Merquior, é sua “verve particulièrement créatrice et non comme une simple double” [“verve particularmente criativa e não como uma simples duplicação”], o que teriam sido antes o romantismo e o realismo entre nós.
A brasileira Ligia M. Leite fez dois questionamentos a José Guilherme Merquior. Um acerca da suposta seriedade excessiva dele ao tratar do modernismo, uma estética nutrida de muita gozação (o termo empregado, em português, na fala em francês da professora é esse mesmo). O outro questionamento disse respeito aos trabalhos desenvolvidos por pesquisadores orientados por Antonio Candido, que já enfocavam a literatura modernista no Brasil.
Merquior respondeu a Ligia M. Leite que, não obstante a postura gozadora do modernismo, não caberia aos estudiosos do assunto assumi-la, e sim “prendre une distance historique, même s’il s’agit de la tradition vivante des lettres brésiliennes” [“tomar um distanciamento histórico, ainda que se trate da tradição contemporânea das letras brasileiras”] (p.204) Sobre o outro questionamento, Merquior insiste que “au niveau théorique il n’y a pas encore de texte majeur sur la nature et la signification du modernismo (sic)” [“em nível teórico não há ainda nenhum texto proeminente sobre a natureza e a significação do modernismo”].
O também francês Claude Namer perguntou a Merquior se o modernismo brasileiro teria sido de fato um movimento popular, quais teriam sido suas relações com a literatura de outros países latino-americanos e se concordava que as artes plásticas contemporâneas no Brasil teriam herdado algo do modernismo.
Merquior concordou com o professor Namer a respeito da influência modernista sobre as artes plásticas, especialmente sobre a arquitetura, como ilustraria a concepção de Brasília. A respeito da efetiva popularidade do modernismo, José Guilherme Merquior esclareceu que houvera, sim, um caráter popular na estética modernista, mas que isso não implicaria o envolvimento efetivo da população na força do movimento. O crítico brasileiro, a propósito, destaca a baixa escolaridade e o alto índice de analfabetos no País naquela época.

terça-feira, 7 de maio de 2019

“O modernismo e depois do modernismo na literatura brasileira” [Parte 1]


C’est au « modernismo » que revient la gloire d’avoir mis fin à la prépondérance de pareille gratuité ornamentale. En ce sens, le « modernismo » a été [...] le premier style dont les auteurs ont dépassé une conception de l’art littéraire au profit d’une orientation plus critique. [Deve-se reconhecer ao modernismo brasileiro a glória de ter dado fim à preponderância de equivaler-se a uma gratuidade ornamental. Nesse sentido, o modernismo brasileiro foi o primeiro estilo cujos autores ultrapassaram uma concepção cultual da arte literária em benefício de uma orientação mais crítica.]
José Guilherme Merquior

O título deste post traduz “Modernisme et après-modernisme dans la littérature brésilienne”, comunicação que José Guilherme Merquior proferiu em um dos Colóquios de Cerisy (França), realizado em 1978. Para dimensionarmos a importância desse evento, basta mencionar os nomes do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e o do teórico da literatura búlgaro Tzetan Todorov (1939-2017), que também dele participaram com comunicações.
Modernismo foi um dos assuntos pelos quais Merquior mais se interessou. Seu livro de estreia, Razão do poema (1965), registra, aliás, mais do que um interesse; ali não se disfarça o entusiasmo em relação ao legado modernista brasileiro, o qual àquela altura, conquanto já encerrado, ainda aguardava mais amplo reconhecimento.
A compreensão geral do modernismo brasileiro exposta na comunicação de Cerisy não difere substancialmente do que Merquior ensina em outros textos, como “O modernismo brasileiro (esquema)”, publicado em O fantasma romântico e outros ensaios (1980).
Na verdade, o percurso é sempre o mesmo:

Ø 1º passo: Diferencia a literatura do século XIX, marcada por uma “conception religieuse du rôle de la création esthétique” [“concepção religiosa do papel da criação estética”] (p. 190), da literatura moderna, esta governada por um “esprit de ludisme” [“espírito lúdico”]. (p.191)

Ø 2º passo: Esclarece que o caráter lúdico da literatura moderna se apresenta, no nível do conteúdo, no “sens de l’humour et de la parodie – bref, du grotesque” [“no sentido do humor e da paródia, isto é, do grotesco”], (p.191) nisso distanciando-se os escritores modernos da “vision tragicisante” [“visão tragicizante”] (p.191) comum entre os escritores vitorianos. No nível da forma, o caráter lúdico se apresenta como “désacralisation de l’oeuvre” [“dessacralização da obra”], sendo que a obra de arte modernista “est devenue le lieu géometrique des techniques expérimentales” [“tornou-se o local geométrico das técnicas experimentais”], nisso se contrastando com “l’aura sacrale de l’oeuvre-fétiche, dépositaire de la solemnité sotériologique de l’Art” [“a aura sacra da obra-fetiche, depositária da solenidade soteriológica da Arte”]. (p.191)

Ø 3º passo: Aponta na literatura moderna “l’exacerbation de l’antagonisme entre les valeurs dominantes de l’art avancé et celles de la culture bourgeoise et de la société industrielle” [“a exacerbação do antagonismo entre os valores dominantes da arte avançada e aqueles da cultura burguesa e da sociedade industrial”]. (p.192) Essa postura antagônica, para o autor, descamba para “l’incompatibilité radicale entre modernisme et modernité” [“a incompatibilidade radical entre modernismo e modernidade”]. (p.192)

Ø 4º passo: Um dos aspectos dessa incompatibilidade radical se concretiza na “polysémie à caractère énigmatique” [“polissemia de caráter enigmático”], (p.192) por assim dizer, visível na “obscurité viscérale d’une si grande partie de la haute littérature contemporaine” [“obscuridade visceral de uma grande parte da alta literatura contemporânea”]. (p.192)

Ø 5º passo: Recorre ao surrealismo como termo de identificação geral do modernismo europeu. Não no sentido de uma escola ou de um movimento específico, mas surrealismo no sentido de uma “essence de tout art moderne dans la qualité de répresentation indirecte du refoulé” [“essência de toda arte moderna na qualidade de representação indireta do que é reprimido”]. (p.193) Surrealismo, enfim, no sentido de uma escrita “cryptoallégorique” [“cripto-alegórica”]. (p.193)

Ø 6º passo: Verifica até que ponto os modernistas brasileiros se enquadram nas características acima explicitadas. Considerando o panteão do nosso modernismo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Graciliano Ramos, Cornélio Penna, entre outros –, Merquior reconhece nesse conjunto o caráter lúdico, tanto no nível da forma quanto no do conteúdo. Em contrapartida, não observa entre eles a forte atração para o enigmatismo, para a obscuridade, como no modernismo vanguardista europeu.

Ø 7º passo: Ensina que, no Brasil, a criatividade inovadora do modernismo se sentiu bem mais seduzida pela “assimilation esthétique de la réalité brésilienne” [“assimilação estética da realidade brasileira”]. (p.194) Essa disposição teria afastado nosso modernismo de assumir “la fonction contraculturelle du modernisme [européen]” [“a função contracultural do modernismo europeu”], (p.195) em benefício de um “nationalisme et régionalisme [lesquelles] avaient une portée foncièrement universaliste” [“nacionalismo e regionalismo que alcançavam um patamar claramente universalista”]. (p.196)

Sobre a literatura posterior ao modernismo, cujo período histórico se esgotaria na década de 40, Merquior distingue dois momentos literários, no Brasil e lá fora: o neomodernismo e o pós-modernismo.
Quanto ao primeiro, se os escritores europeus já não se fascinavam tanto pelo “élément surréalisant, cryptoallégorique, de l’écriture” [“elemento surrealizante, cripto-alegórico, da escritura”], (p. 196) os escritores brasileiros põem-se a desbravar o caminho inverso: Clarice Lispector e Guimarães Rosa, por exemplo, considerados neomodernistas por Merquior, ter-se-iam embrenhado no rumo da criptoalegoria. Louvável exceção no cenário neomoderno nacional, segundo o autor de A astúcia da mímese, seria João Cabral de Melo Neto, com o seu “mythe de la clarté dans la poésie” [“mito da claridade na poesia”]. (p.196)
Sobre o pós-modernismo brasileiro, a caracterização geral na comunicação de Cerisy se assenta no conceito de hiperrealismo, “au sens général d’un art ‘mimétique’ à vocation métonimique” [“no sentido geral de uma arte mimética com vocação metonímica”]. (p.196) O leitor familiarizado com o pensamento merquioriano sabe que tais qualificações constituem um elogio, cujo significado, escrevendo mais claramente talvez, é o de uma arte atenta à realidade social, disposta mais a refletir sobre o mundo do que refletir o mundo (“mimética”), mas de um modo parcial, “oblique et indirect” [“oblíquo e indireto”], sem pretender alcançar uma compreensão totalizante do mundo (“metonímica”). (p.197)
José Guilherme Merquior ainda expressava esperança de que as letras pós-modernistas, tanto lá fora quanto aqui, prometiam um “retour aux lumiéres” [“retorno às luzes”], impelidas que seriam por um afã neoiluminista. (p.199) Diga-se de passagem, essa esperança não demoraria a se frustrar, conforme se constata em textos do autor publicados poucos anos depois.
Sendo um crítico literário que nunca quis abrir mão de avaliar, de julgar, Merquior aquilata o legado modernista brasileiro como extremamente positivo e produtivo. O trecho da comunicação, recortado para ser epígrafe deste post, assevera que a literatura no Brasil, a partir do modernismo, assume postura crítica, e assim se distancia do comportamento ornamental típico do século XIX.
Cumpre atentar às menções a Nelson Rodrigues e a Clarice Lispector no texto destinado ao Colóquio de Cerisy – pois se trata de escritores pouco comentados e/ou referidos por Merquior. Possivelmente explique esse silêncio a pouca conta em que sempre tomou o ensaísta carioca o neomodernismo brasileiro, à exceção de João Cabral de Melo Neto.

  Outro silêncio chamativo, na comunicação, envolve o concretismo dos irmãos Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto e outros. Também se sabe que a poesia concreta jamais empolgou José Guilherme Merquior, parece que menos ainda do que a geração de 45 – um dos grupos mais atacados pelo crítico-polemista.