terça-feira, 24 de outubro de 2017

Publicação do artigo “Dois liberalismos? Razão e modernidade em Fidelino de Figueiredo e José Guilherme Merquior”

Tenho a alegria de noticiar que o texto comunicado em evento que se realizou em outubro de 2016, em São Paulo, sobre o escritor, professor, pensador e crítico literário português Fidelino de Figueiredo tornou-se artigo constante no livro Fidelino de Figueiredo: travessias: estudos de filosofia e literatura, com organização de Rita Aparecida Santos, Maria Celeste Natário, Renato Epifânio e Luísa Malato. A editora do volume é a Pontes de Campinas-SP.


Nesse pequeno trabalho, discorro sobre as especificidades do pensamento liberal de José Guilherme Merquior e do autor de O medo da história, tomando como referência as reflexões de cada um desses intelectuais a respeito das noções de razão e modernidade. Observo que Fidelino identifica-se com uma corrente do liberalismo mais conservadora e de coloração pessimista, aspecto nitidamente motivado pelo testemunho dos grandes regimes autoritários (fascismo italiano, nazismo alemão, socialismo soviético) e das duas Grandes Guerras. Além disso, ressalto que o liberalismo fideliniano se concentra no campo das reflexões éticas e culturais, ao passo que o merquioriano investe nesse e em outros campos, como o da economia. Também se diferencia o liberal brasileiro do português pela postura mais otimista e reformista, entusiasta notório que foi da razão como instrumento capaz de desvendar as verdades fundamentais e da modernidade como ápice de conquistas sociais, políticas, jurídicas etc.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

“Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas”


Este é o título de outro ensaio de José Guilherme Merquior, publicado na revista acadêmica portuguesa Colóquio/Letras no mesmo ano (1972) do “Para o sesquicentenário de Matthew Arnold”, sobre o qual discorri no post anterior. “Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas” também consta no volume Crítica (1990), antologia de textos situados entre 1964 e 1989 com que o então pensador do liberalismo e doutor em sociologia parecia festejar suas quase três décadas de atividade intelectual iniciada na condição de crítico literário.

Não poderia ser diferente: Machado de Assis instigou valiosas reflexões em Merquior. Registro disso são, além do ensaio acima referido, grande parte do capítulo “Machado de Assis e a prosa impressionista”, encerramento do volume De Anchieta a Euclides (1977), e o breve artigo “Machado de Assis e a filosofia”, publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 1982, e depois republicado em O elixir do apocalipse (1983).

Muito do que Merquior ensina no ensaio da revista Colóquio/Letras se repete nos outros dois, o que parece indicar que realmente o autor se concentrou, no tocante à obra machadiana, na questão do gênero, do estilo e na sua força filosófica, concentrada esta em questões morais e éticas. Na verdade, esses três aspectos se entrelaçam, e evidenciam, em Machado de Assis, “a emergência de uma visão problematizadora inédita na literatura brasileira” (1972, p.12)

Memórias Póstumas de Brás Cubas, marco do amadurecimento literário do escritor carioca, segundo José Guilherme Merquior, “é um caso de novelística filosófica em tom bufo, um manual de moralista em ritmo foliônico”. (1972, p.14) Todavia, adiante, o ensaísta nos garante que
 

O humorismo de Machado de Assis é uma atitude eminentemente filosófica – mas não é uma “filosofia”. Metafisicamente, o humor machadiano não tem conteúdo positivo. Daí, talvez, a sua terrível liberdade [...], a audaciosa liberdade que permite a abordagem cômico-fantástica do real. Neste sentido, a estrutura humorística de um livro como as Memórias póstumas é verdadeiramente consubstancial à visão de mundo machadiana. Machado não emprega o humor para “ilustrar” uma filosofia: ao contrário, o seu humor – fazendo as vezes da inexistente metafísica – é filosofia; e esse fenômeno confere uma notável modernidade à sua obra, porque nada é tão moderno quanto o eclipse das filosofias afirmativas. (p.18-19)

Quanto ao gênero do romance que inaugura uma das vertentes mais sofisticadas da narrativa realista na literatura ocidental, Merquior ensina que se trata de um livro cômico-fantástico, de tradição tão ilustre quanto antiga, caracterizada por apresentar, em linhas gerais:
 

[...] a) a ausência de qualquer distanciamento enobrecedor na figuração dos personagens e de suas ações [...]; b) a mistura do sério e do cômico, de que resulta uma abordagem humorística das questões mais cruciais: o sentido da realidade, o destino do homem, a orientação da existência, etc.; c) a absoluta liberdade do texto em relação aos ditames da verossimilhança [...]; d) a frequência da representação literária de estados psíquicos aberrantes: desdobramentos da personalidade, paixões descontroladas, delírios (como o delírio de Brás Cubas); e) o uso constante de gêneros intercalados – p. ex., de cartas ou novelas – embutidos na obra global (como as historietas de Marcela, de D. Plácida, do Vilaça e do almocreve, nas Memórias póstumas). (1972, p.13-14)

 
Na escala de valores da crítica merquioriana, a qual nunca marginalizou a função de julgamento no trato com a coisa literária e artística, a passagem que negritei consiste num elemento da maior relevância. E ao assim proceder, o ensaísta zelava pela sobrevivência da literatura e da arte na contemporaneidade, já que cobrava dos escritores e dos artistas uma linguagem que, acima de tudo, comunicasse, não cedendo à tentação vaidosa e egoísta de uma elaboração despreocupada com as questões mais cruciais.

Por fim, a respeito do estilo, as Memórias póstumas de Brás Cubas, ao lado de outras obras do autor, convenceram Merquior do impressionismo machadiano, pois nelas se notaria “[j]unto com a sua prosa artística, a sua aguda percepção do tempo e o subjetivismo ‘decadente’ de seus personagens”. (1972, p.19) Porém, “Machado parece até ir além do impressionismo”, uma vez que na narrativa machadiana “o experimentalismo ficcional está animado pelo espírito de zombaria”. (1972, p.19) É precisamente essa lição, que ilumina aspecto pouco explorado pela historiografia e crítica literárias do século passado, que vai se repetir e desenvolver cinco anos depois, em De Anchieta a Euclides.