quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Publicação de dois artigos sobre Merquior

Temos a satisfação de noticiar a publicação recente de dois artigos de autoria do prof. Dr. Adriano Lima Drumond em revistas acadêmicas de divulgação na internet: a 18 de agosto, o texto intitulado “A pedagogia da polêmica: o pensamento de José Guilherme Merquior e a forma ensaio”, no periódico de estudos literários REVELL da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) [disponível neste endereço], e ontem (dia 30) “Murilo Mendes: a merquioroscopia de um visionário”, na Araticum da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) [disponível neste endereço].

O primeiro artigo apresenta uma noção que se propõe a compreender o mecanismo discursivo geral do pensamento de Merquior, considerando especialmente sua formulação ensaística, sua disposição para a polêmica e sua proposição pedagógica. Dados os limites ao texto, ativemo-nos a identificar três aspectos do que denominamos de pedagogia da polêmica.

Aproveitamos o ensejo para informar aqui algumas erratas relativas a esse texto, de que apenas depois nos demos conta:

  • à 2ª página, 13ª linha: onde se lê “De Anchieta a Euclides (1974)”, deve-se ler De Anchieta a Euclides (1977)”;
  • à 5ª página, 8ª linha: onde se lê “de um lado, explica a natureza dialógica”, deve-se ler, com negrito, “de um lado, explica a natureza dialógica”; e 13ª linha: onde se lê “Em posfácio a mais recente”, deve-se ler “Em posfácio à mais recente”;
  • à 7ª página, 7ª linha: onde se lê “mas, também, o contexto”, deve-se ler “mas também o contexto”; 9ª linha: onde se lê “métodos de análises literária”, deve-se ler “métodos de análise literária”; e penúltima linha: onde se lê, “se renderem”, deve-se ler “se render”;
  • à 10ª página, 23ª linha: onde se lê “nouveau roman francês”, deve-se ler “nouveau roman francês”;
  • à 13ª página, 4ª linha: onde se lê “entre duas vozes autorais”, deve-se ler “entre duas vozes autorais (ou mais)”;
  • à 16ª página, 17ª linha: onde se lê “(MERQUIOR, 1983. (p.232)”, deve-se ler “(MERQUIOR, 1983, p.232)”.
O segundo artigo se dedica a rastrear elementos que atestariam a congenialidade entre a poesia de Murilo Mendes e o pensamento de José Guilherme Merquior, congenialidade verificada (mas não exatamente esclarecida) por Luciana Stegagno Picchio. Sabe-se que o autor de Saudades do carnaval distinguiu três poetas modernos brasileiros na sua admiração e preferência: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e o juizforano. Todavia, é na poética deste último, de fato, que o ensaísta carioca parece ter encontrado uma visão crítica muito similar à sua. O texto consiste em parte adaptada de capítulo do livro Os poemas da razão: José Guilherme Merquior e o modernismo brasileiro (Drummond, Cabral e Murilo), a ser publicado – esperamos – em breve.

Não podemos deixar de expressar nossa imensa gratidão aos respectivos editores e pareceristas de ambos os periódicos pela oportunidade preciosa de veicular alguns dos resultados parciais da pesquisa que vimos conduzindo e realizando desde fevereiro de 2013, com sede no campus Dom José Vásquez Díaz da Universidade Estadual do Piauí (município de Bom Jesus), com a atual colaboração dos discentes do Curso de Licenciatura Plena em Letras Português Daniela Ferreira Martins, Denise Bezerra Leal, Lucas Negreiros França, Nicélia Oliveira Campos e Silvânia Maria de Sousa Brito.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

100 anos de Cleonice Berardinelli

Ontem (28 de agosto) Cleonice Berardinelli completou 100 anos de vida. Seu aniversário é motivo de comemoração tanto de quem a conhece pessoalmente (familiares, amigos, ex-alunos) quanto de quem aprecia a belíssima literatura portuguesa. Pois trata-se de uma mulher que representou um marco para a história dos estudos de Camões, de Camilo, de Eça, de Fernando Pessoa no Brasil. Sua contribuição e importância nesse âmbito equivalem ao de Afrânio Coutinho para a renovação da crítica literária brasileira no século XX, por ter instruído, formado e orientado, em graduação e pós-graduação, boa parte dos primeiros professores universitários brasileiros de literatura portuguesa. Nisso Berardinelli conduziu adiante o legado de Fidelino de Figueiredo, intelectual português que, como professor da USP, se empenhou admiravelmente para que houvesse, na instituição, condições mínimas necessárias ao desenvolvimento do estudo e da pesquisa em torno do assunto. Fidelino enxergou em Dona Cleo, à época bastante jovem, a docência potencial e a encaminhou num trajeto que a consagraria como uma das mais respeitáveis lusitanistas brasileiras.


Num dos dias do Congresso Internacional Fidelino de Figueiredo: filosofia e literatura ("um homem na sua humanidade"), realizado em 2015 e 2016, uma de suas ex-alunas - a profa. Gilda da Conceição Santos -, em adorável alusão a minha comunicação comparativa sobre o liberalismo de José Guilherme Merquior e o do homenageado, encerrou o evento noticiando a todos os presentes que também o autor de Formalismo e tradição moderna havia sido aluno de Cleonice Berardinelli, elo de uma corrente que o levaria ao escritor português.


O centenário de dona Cleo (informalidade carinhosa, mas respeitosa), uma imensa alegria para muitos brasileiros, portugueses, falantes e leitores da língua de Camões, acaba tendo para mim aquele ressaibo, que posso traduzir nestes termos: que pena o ex-aluno Merquior não poder prestar, com seus 75 anos de idade, sua homenagem certa à eterna e divina professora.   

terça-feira, 26 de julho de 2016

Três equívocos comuns em torno de Merquior

A extensão, a pluralidade, a erudição e a complexidade da obra de José Guilherme Merquior, nada fácil nem simples de se dominar por completo, parecem ocasionar equívocos comuns, cometidos mesmo por quem já estabeleceu intimidade com o pensamento do grande ensaísta.

Um que se deve eliminar com urgência, por conotar escabroso desleixo, é a pronúncia “Meuquior”, não poucas vezes ouvida, seja da boca de jornalistas, seja da de comentaristas da obra de Merrrrrrrrrquior. Há, sim, a variante do sobrenome “Melquior”, mas cumpre – prescinde dizê-lo – respeitar, na fala, a grafia onomástica dessa família. Não me furto a divulgar, a propósito disso, o trocadilho que minha esposa soltou, ao tomar conhecimento desse feio deslize: “ei, olha o meu ‘qui ó!”

Outro equívoco comum, este de fato decorrente das dificuldades em lidar com o conjunto titânico dos textos do autor, é rotulá-lo de neoliberal (assumo: eu mesmo o cometi há alguns anos). A não ser que entendamos neoliberalismo em sentido elástico, como toda e qualquer versão mais recente de liberalismo. José Guilherme Merquior, particularmente no último decênio de vida, foi um pensador liberal, que se identificou com o ideário do social-liberalismo, uma vez que preconizava o equilíbrio entre a liberdade da economia de mercado, a mais eficaz forma de produção de riqueza, e a igualdade social, a ser promovida ou preservada por intervenções do Estado. Sendo assim, a solução de Merquior não é nem o Estado mínimo do neoliberalismo, nem o Estado máximo do socialismo-comunismo. A respeito do tema, deve-se ler “Tarefas da crítica liberal” de As formas e as ideias (1981) e os vários ensaios de O argumento liberal (1983).

O terceiro equívoco comum foi cometido por ninguém menos do que Sergio Paulo Rouanet, um dos mais próximos amigos de José Guilherme Merquior, sobre o qual afirma que “[...] descartando Freud, Merquior abriu mão de um valiosíssimo aliado na cruzada iluminista. Freud é o último e mais radical dos iluministas” e ainda: “Por ignorar Freud, Merquior privou-se da ajuda desse Voltaire da alma, e reduziu seu poder de fogo diante dos verdadeiros inimigos do espírito.” (2014, p.366 – destaques meus)

Rouanet tem em vista, nesse seu texto de homenagem ao autor falecido tão jovem, a célebre pergunta retórica e introdutória de As ideias e as formas: “É possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?” (1981, p.11) Contudo, note-se que a frase não diz “Freud”, e sim “psicanálise”, assim como não diz “Marx”, e sim “marxismo”. Merquior anunciava, naquele livro aparecido juntamente com o início da década de 80, que passaria a investir contra, nas palavras certas de Rouanet, aquilo “em que a psicanálise se transformou”, e não propriamente contra o legado freudiano. Para termos a certeza dessa distinção, e de que Merquior compreendia o pai da psicanálise, sim, como um iluminista, e não o contrário, basta lermos as primeiras linhas de “O avestruz terapêutico”, ensaio contido em O elixir do apocalipse (1983):

Muita gente boa ainda pensa que a psicanálise é uma teoria do distúrbio mental. Isso é o que ela promete, mas não cumpre. No duro mesmo, a psicanálise não é uma medicina da mente – é uma enfermidade do intelecto, um projeto iluminista que virou superstição burguesa. (p.63 – destaque meu)

Não obstante o deslize tão localizado, o texto de Sergio Paulo Rouanet não deixa de oferecer uma bela chave de compreensão do pensamento merquioriano, compreensão que será incrementada, aliás, com a leitura de livros como As razões do iluminismo (1987), título que por si só nos força a recordar o nome do ensaísta de Razão do poema.

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Vale aqui noticiar a publicação recente de Rouanet 80 anos: democracia, modernidade, psicanálise e literatura, pela editora É Realizações, volume que registra as discussões ouvidas em simpósio dedicado ao intelectual, realizado no Rio de Janeiro, em 2014. Conferir nesta página.

Referências bibliográficas

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.


ROUANET, Sergio Paulo. “Merquior: obra política, filosófica e literária” in MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. 3ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2014. pp.360-370. 

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Vai, Merquior!... desafinar o coro dos descontentes: sobre “Sobre a doxa literária”

Um dos meus textos preferidos da lavra merquioriana é o “Sobre a doxa literária”, publicado pela primeira vez em número da revista portuguesa Colóquio Letras de 1987, e constante na antologia do autor intitulada Crítica (1990). O ensaio, portanto, expressa um pensamento que, ao longo de toda a década de 1980, militou em nome da razão liberal, atacando, como adversários principais, o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda, conforme o próprio autor havia anunciado mais de um lustro antes, em As ideias e as formas (1981).

Há efetivamente uma mudança significativa entre a crítica de José Guilherme Merquior nos anos 70 e nos 80. Em Formalismo e tradição moderna (1974), os dois termos desse título “figuram neste livro como pólos antitéticos”, como “irmãos inimigos”, (2015, p.39) uma vez que o autor aí compreende um enfrentamento entre a arte moderna, na qual se enquadrariam as vanguardas modernistas, o alto modernismo europeu, e a crítica estruturalista, cuja perspectiva de análise – um “rito alienado” (2015, p.40) – concentrar-se-ia na forma, na imanência do texto, alheando-se da “significação humana e crítica” do objeto literário. Todavia, na apresentação de sua antologia de 1990, Merquior esclarecerá sua atualização de pensamento, em que se conscientiza da “ligação íntima entre os dois movimentos [a crítica formalista e a arte de vanguarda] que antes tentara ingenuamente contrapor”. (1990, p.II)

Não obstante essa reorientação de visão sobre a arte de vanguarda e a tradição moderna, a mudança no pensamento merquioriano em tela se ateve ao âmbito das conclusões, não tendo-se alterado os pressupostos. Pois o ensaísta preserva sua postura crítica relativa ao formalismo (visto, então, não apenas nos estudos literários, mas também na literatura do alto modernismo) e mantém sua exigência à literatura, proclamada desde os primeiros estudos, de comunicação e de contato com a realidade.

Em “As contradições da vanguarda”, artigo publicado em 1965 nos Cadernos brasileiros, José Guilherme Merquior não atacava toda e qualquer arte vanguardista, mas separava o joio do trigo: caso não acatasse ao “primado do produzir sobre o experimentar” (1965, p.5) e a uma “orientação para o realismo” (1965, p.5-6) – realismo no sentido de “exprimir a realidade da experiência cotidiana, não necessariamente de maneira sociologística, documental, mas, ao contrário, frequentemente, de forma visionária, fantástica, alusiva e simbólica” e de “apreender, ao lado dessa realidade do cotidiano, as condições concretas em que se dá, na atualidade, a experiência estética”, (1965, p.6) – a vanguarda corria o risco de se apresentar como vã-guarda, isto é, “improdutiva e incomunicante”. (1965, p.5)

Razão do poema, estreia em volume do autor no mesmo ano do ensaio acima referido, reforçava as exigências do jovem crítico, especialmente no tocante à poesia, da qual proclamava a “necessidade de recorrer a símbolos da inteligência comum”, no propósito de efetivar uma “comunicação, por via consciente, de significados de fundo coletivo, porque a poesia não pode ser um jogo de obscuridade e de inconsciência totais”. (2013, p.183)

“As contradições da vanguarda” questionava a validade sócio-artística do concretismo brasileiro, por este ignorar que “a frase, o discurso, não são abastardamentos da língua, são seus componentes estruturais”, (1965, p.17) e do Nouveau roman francês, que se renderia à ingenuidade de ambicionar “apresentar a face pura das coisas, sem as deformações impostas pela homem”, produzindo um discurso pretensamente “isento de todo preconceito de toda projeção subjetiva”. (1965, p.18) Por outro lado, com óculos lukácsianos, o ensaísta enxergava em Franz Kafka, James Joyce, Bertolt Brecht realizações “onde ética e estética se sintetizam”, (1965, p.10) mergulhadas que seriam elas na “consciência problemática da realidade”. (1965, p.20)

Parte dessa avaliação se modificará uma década e meia depois. Além de continuarem desqualificados, no julgamento merquioriano, o concretismo brasileiro e o Nouveau roman, exemplarmente o Ulisses de Joyce, marco da estética vanguardista ocidental da primeira metade do século XX, passará a ser considerado, nos termos da epígrafe de “Sobre a doxa literária”, um livro que, “sem negar que seja interessantíssimo, duma profunda literatice”. Tendo-se em vista o sentido do ensaio de Merquior, essas palavras zombeteiras de Mário de Andrade não significam apenas no âmbito do que estritamente dizem; o fato de tratar-se seu autor de um modernista brasileiro tão representativo prefigura a distinção valorativa na qual José Guilherme Merquior virá a insistir: diferentemente do “alto modernismo europeu”, o modernismo no Brasil, em geral, não consumou a emancipação da lógica, da retórica, da comunicação; não almejou a libertação do significante; não imergiu na “tenebrização dos sentidos”; não foi “um rito de negação da história”, nem um enfrentamento cheio de nojinho da modernidade.

Em síntese, “Sobre a doxa literária” discute uma conjuntura cultural e acadêmica onde uma certa tradição moderna e a estética vanguardista do alto modernismo europeu e suas ramificações geopolíticas (de Mallarmé a Franz Kafka, James Joyce, T. S. Eliot, Ezra Pound) foram alçadas à condição de modelo hegemônico em matéria de literatura. É esta a doxa, o consenso, o senso comum que Merquior demoniza, numa de suas mais desenvoltas performances de crítico polemista. E o faz porque detecta, dentre outros prejuízos desse discurso, a injusta subvalorização de autores como Robert Musil, André Gide e Henrik Ibsen, contemporâneos dos primeiros citados neste parágrafo.

Há quem faça careta ao ouvir o nome de Merquior, com condenação na ponta da língua por ele ter sido colaborador intelectual da campanha eleitoral e da presidência de Fernando Collor de Mello. Muitos que assim reagem, contudo, não exprimem o menor desconforto na reverência a Martin Heidegger, filósofo que, por sua vez, validou o regime nazista, deste sendo entusiasta e beneficiado por um bom tempo. Essa incoerência de postura, verifica Merquior, traduzida nas “afinidades entre modernismo e autoritarismo”, sustentaria placidamente a “doxa literária”, que não seria, muitas vezes, só simpática a fascismos (a exemplo de Ezra Pound), (1990, p.367) mas também por natureza “uma apologia do elitismo”. (1990, p. 366) Em tal disposição, a arte moderna teria se retirado da “arte-na-cultura” e se refugiado na “arte-cultura”, isto é, “uma cultura estética que se quer autárquica, e se orgulha de rejeitar globalmente o código de valores da cultura social”. (1990, p.369)

Tenebrizados seus sentidos, fetichizadas suas formas, aristocratizada sua recepção, como se surpreender que um sentimento de crise da cultura se instalasse na mentalidade que postulou os termos da doxa literária contemporânea? É verdade que, nos anos 70, José Guilherme Merquior acreditou na realidade dessa crise, Leitmotiv de dois importantes volumes de sua autoria: Saudades do carnaval (1972), uma “introdução à crise da cultura”, e Formalismo e tradição moderna (1974), de subtítulo “o problema da arte na crise da cultura”. A respeito do primeiro livro, o autor ele mesmo o designará “estudo imaturo”, em O argumento liberal. (1983, p.230-231) Quanto ao segundo, onde consta “Kitsch e antikitsch (arte e cultura na sociedade industrial)”, ensaio-chave do volume, cuja pegada adorniana registra uma crítica de fundo marxista, às voltas com pressupostos como os de alienação e de indústria cultural, José Guilherme Merquior elegerá de todo o livro apenas dois textos: “O dia em que nasci moura e pereça” e “A interpretação estilística da pintura clássica”, para reaparecerem na sua antologia de 1990. Observe-se que, assim como este último, subintitulado “um desafio para o método formalista”, o ensaio “O dia em que nasci moura e pereça” é uma análise também estilística, nos moldes de Augusto Meyer e Ernst Robert Curtius, de famoso soneto de um poeta também clássico, ninguém menos do que Luís Vaz de Camões. Uma estocada dupla, não?, na crítica formalista e na arte de vanguarda, sob as bênçãos de “Tia Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, [que] era bem mais sensível, bem mais escrupulosa, em face do discurso poético [do que a tradição estruturalista]”. (1975, p.10)

“Paladino da racionalidade concreta”, conforme alcunha precisa de Miguel Reale, Merquior viria a refutar a existência de uma crise cultural, somente atestável na ótica da arte moderna, em nome da qual se disseminou, no destaque de Antoine Compagnon, a “hostilidade enfrentada por um artista [como] o sinal de sua glória futura e, inversamente, de seu rápido sucesso, a prova de sua mediocridade”. (2003, p.31) Aos mitos da arte moderna e à máxima de Rimbaud, José Guilherme Merquior, em “Sobre a doxa literária”, retrucou com o brado: “Cumpre ser absolutamente racional”.


Referências bibliográficas

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Tradução de Cleonice P. B. Mourão, Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MERQUIOR, José Guilherme. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. Formalismo e tradição moderna: a problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2015.

______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.


______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Murilo Mendes: um caso de identificação merquioriana

Já se reparou mais de uma vez na capacidade de José Guilherme Merquior de caracterizar uma obra ou um pensamento alheio, parecendo nisso caracterizar o seu próprio. João Cezar de Castro Rocha, coordenador da reedição da obra completa do ensaísta carioca pela editora É Realizações, notou a duplicidade desse gesto no caso de Carlos Drummond de Andrade, cuja poesia o autor de Verso universo em Drummond descreve assim: “além de universal”, “é também muito atual”, sem perda de “suas origens”. Ao que o professor da UERJ considera: “Ora, o perfil de Merquior parece bem delineado nessas palavras!” (2012, p.16) Certa descrição de Araripe Júnior, em De Anchieta a Euclides, provocou em mais de um autor a sensação de que aquelas palavras diziam respeito ao próprio Merquior, e não apenas ao grande crítico do século XIX:

Araripe Júnior [e Merquior, notem bem] se apoiava numa sólida posição no campo da teoria literária, num gosto sintonizado com o movimento vivo da arte ocidental da época, e numa sensibilidade especial para a dialética dos modelos artísticos do Ocidente e as inclinações íntimas da cultura brasileira. E com todo esse raro equilíbrio entre o senso da forma [e] a percepção sociológica, entre o respeito pelas qualidades específicas do texto literário e a necessidade de interpretá-lo em termos culturais e humanos, Araripe ainda arranjou modo de ser um crítico-escritor, um ensaísta dotado de estilo [...]. (2014, p.308)

Um terceiro nome que, com muita justiça, reivindica presença nessa lista de identificações merquiorianas é o modernista Murilo Mendes, do qual, segundo Luciana Stegagno Picchio, José Guilherme Merquior seria “um dos críticos mais queridos e congeniais do poeta”. (1994, p.26) Ao afirmá-lo, porém, a autora italiana não esclarece o porquê na sua introdução ao volume Poesia completa e prosa do poeta mineiro pela Nova Aguilar. Quanto a querido, sabe-se que com a pessoa de Murilo o ensaísta carioca manteve próximo convívio e mesmo laços de amizade. Uma relação que se beneficiou certamente do fato de ambos terem morado na Europa.

Mas por que congenial? De início, pode-se assegurar que José Guilherme Merquior contribuiu para a fortuna crítica muriliana de uma maneira que a destaca e diferencia ainda hoje. Pois no caso do escritor mineiro, Merquior não se limitou a desvendar ou interpretar o significado de seus versos, evidenciando aspectos que consistirão na caracterização consagrada em análises futuras de outros críticos. O autor de Razão do poema também se dispôs – mais do que com Drummond e mais do que com Cabral – a conectar a poesia de Murilo Mendes com uma realidade cultural e política em forte sintonia com sua própria visão de mundo.

Um primeiro (e notável) vestígio da congenialidade entre Murilo Mendes e José Guilherme Merquior: assim como o poeta posicionou-se, segundo Laís Corrêa de Araújo, “permanentemente insatisfeito com toda forma de acomodação ou institucionalização da poesia”, (2000, p.115) o crítico das ideias jamais se satisfez com qualquer forma de acomodação ou institucionalização do pensamento. Tanto um quanto o outro foram franco-atiradores, resistentes a embarcar em navios levados pelos ventos da moda cultural. A chave para se compreender mais adequadamente essa postura muriliana, congenial à merquioriana, segundo o próprio Merquior, seriam duas noções: a de surrealismo e a de poética visionária.

A noção de poética do visionário, apresentada em ensaio de Razão do poema, serve para evidenciar o anseio não de fugir, mas sim de enfrentar o mundo concreto. A poética do visionário é o surrealismo muriliano, o qual, segundo Merquior, se manifestaria claramente na “audácia das aproximações insólitas” e no “choque do super-real”. (1981, p.151) Tal audácia e tal choque, porém, não bastariam para singularizar esse que foi um comportamento comum a todos os surrealistas. No caso de Murilo Mendes, contudo, o “extremismo do elemento surreal” (1994, p.12.) não se opôs a “um constante impulso de estar no mundo”, (1994, p.13.) e se posicionou “em plano-protesto com a realidade mesma negada pela força do visionário”. (1994, p.13.) Nisso, principalmente, residiria a idiossincrasia do surrealismo muriliano, com que o poeta, aliás, atendeu perfeitamente às conhecidas exigências de Merquior relativas à dialética entre a autonomia da literatura e a ligação desta com a realidade.

De fato, apura-se, no conjunto dos textos merquiorianos sobre o poeta de Juiz de Fora, que a poética visionária em questão compõe-se de um complexo, e inaudito, amálgama de surrealismo e realismo, de erotismo e cristianismo. Erotismo e cristianismo? Apesar da curiosidade que desperta, especialmente esse último enlace, tenho de adiar sua abordagem para outra oportunidade. Quanto ao primeiro, também aparentemente paradoxal, o ensaísta carioca saudou em Murilo Mendes um poeta que, embora “preso à matéria viva de seu tempo, atento à questão social”, (1981, p.152.) se revelou consciente de que “a verdadeira realidade não se esgota na superfície dos gestos humanos, e [...] dele é parte eminente o subterrâneo dos impulsos reprimidos”. (1981, p.152.) Como se sabe, essa camada profunda de nossa mente consistiu em motivo fundamental da poética surrealista em todos os quadrantes. O ensaísta carioca também alertava que: “O essencial é não pensar em surrealismo contra realismo, tomando este, não na acepção de estilo histórico, mas de virtude gnoseológica”, (1980, p.152) assim como que o surrealismo “Não é escapismo – é uma forma imaginária de realismo”. (2013, p.78.)

A poética visionária de Murilo Mendes configura o segundo conjunto de poemas da razão que, no tocante à poesia brasileira, mais obteve o aplauso do exigente crítico carioca. O poeta mineiro teria mantido, frente ao surrealismo e ao catolicismo, autonomia similiar à que Merquior ostentou frente ao estruturalismo, ao marxismo, à contracultura, à arte de vanguarda etc. Ares semelhantes aos da “atmosfera de sortilégio e prodígio”, “característica do estilo visionário de Murilo”, (1997, p.219.) respirou o autor convidado por Manuel Bandeira a selecionar a antologia modernista para o volume A poesia do Brasil, no qual o jovem ensaísta se jactava de ter aprendido bastante da “atitude artística e crítica de 22”, (1963, p.8.) sem dúvida igualmente uma das fontes para a formação da identidade poética muriliana.

Sendo assim, a poética muriliana assume relação de enfrentamento crítico com a realidade; ou seja, nem é propriamente avessa a referências miméticas, nem renuncia a uma atitude de intervenção (interpretativa) sobre essa mesma realidade. Convém ressaltar que a individualidade da poesia de Murilo Mendes não coincidiria, para Merquior, com o significado romântico de originalidade, altíssimo valor para as vanguardas euromodernistas, sobretudo na primeira metade do século XX, mas noção em progressivo desprestígio desde os últimos decênios da centúria passada. É, aliás, essa lógica que devemos aplicar ao próprio autor de O véu e a máscara, teimosamente acusado de não ter formulado um pensamento original, mas, acima de tudo, apenas comentado obra alheia, angariando notoriedade e repercussão graças a modismos intelectuais. O que não passa de uma visão estereotipada e míope da autêntica contribuição intelectual de José Guilherme Merquior.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antiuniverso debruçado, ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes” in O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. pp.151-160.

______. “A pulga parabólica (pulex irritans)” in A astúcia da mimese: ensaios sobre lírica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: É Realizações, 2014.

______. “Murilo Mendes ou a poética do visionário” in Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013. pp.71-90.

______. “Nota antipática” in BANDEIRA, Manuel. A poesia do Brasil. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963. pp.7-8.
______. “Notas para uma muriloscopia” in MENDES, Murilo. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.11-21.

PICCHIO, Luciana Stegagno. “Vida-poesia de Murilo Mendes” in MENDES, Murilo. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.23-31.


ROCHA, João Cezar de Castro. “José Guilherme Merquior: aqui e agora” in Verso universo em Drummond. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2012. pp.13-24.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Merquior: de direita ou de esquerda?

Em entrevista a edição da revista VEJA de 1981, José Guilherme Merquior declarou que “uma atitude intelectualmente séria é não tratar com categorias maniqueístas”, e à pergunta – “Entre a esquerda e a direita, onde é que o senhor fica?” – respondeu nestes termos que ainda hoje têm algo a ensinar:

Alguém definiu admiravelmente bem as pessoas de minha posição ideológica. Foi o polonês Leszek Kolakowski, num texto que é uma pérola – “como ser conservador, liberal e socialista”. No fundo da visão conservadora, existe um elemento muito positivo, que consiste em acreditar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais. Do lado liberal, a ideia básica, também verdadeira, é que a finalidade do Estado é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual. Enfim, o socialismo tem de válida a ideia de que o pessimismo antropológico, por trás da posição conservadora, não deve ter o poder absolutista de evitar as reformas sociais citadas pelo reformismo esclarecido.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Liberalismo e democracia na lição de Norberto Bobbio


“[...] o estado liberal é o pressuposto não somente histórico, mas jurídico do estado democrático. Estado liberal e estado democrático são interdependentes de dois modos: na direção que vai do liberalismo rumo à democracia, no sentido em que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta, que vai da democracia rumo ao liberalismo, no sentido em que é necessário o poder democrático para garantir resistência e persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e, por outro lado, é pouco provável que um estado não democrático esteja em condições de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica dessa interdependência reside no fato de que estado liberal e estado democrático, quando caem, caem juntos.”

(in Il futuro della democrazia. 3ª ed. Turim: Corriere della Sera, 2010. p.15)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Duas "Políticas literárias": Carlos Drummond de Andrade e Cacaso


“Política Literária” (Carlos Drummond de Andrade)

O poeta municipal
Discute com o poeta estadual
Qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
Tira ouro do nariz.

“Política Literária” (Cacaso)

O poeta concreto
discute com o poeta processo
Qual deles é capaz de bater o poeta abstrato.

Enquanto isso o poeta abstrato
tira meleca do nariz.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O liberalismo de Fidelino de Figueiredo e o de José Guilherme Merquior

Apesar de já ter transcorrido um mês, ainda deve valer noticiar que, nos dias 14 e 15 de março, no auditório do CEDEM (São Paulo-SP), realizou-se o Congresso Internacional Fidelino de Figueiredo: filosofia e literatura (“Um homem na sua humanidade”). O evento, que integrou parte de uma homenagem maior, envolvendo outras datas e outras localidades no Brasil e em Portugal, contou com a organização dos professores Paulo Motta Oliveira (USP) e Luciene Marie Pavanelo (UNESP).

Fidelino de Figueiredo (1888-1967), pensador e crítico literário português, contribuiu enormemente para a história da cultura acadêmica brasileira, especialmente entre 1938 e 1951, quando exerceu o cargo de professor na então recém-fundada Universidade de São Paulo e na então chamada Universidade do Brasil (hoje UFRJ). O autor de obra volumosa foi professor e grande responsável pelo início da ilustre carreira acadêmica de Cleonice Berardinelli, maior estudiosa brasileira da literatura portuguesa (quem, aliás, por sua vez, lecionou para o nosso José Guilherme Merquior). Dizer que Fidelino exerceu o papel de mentor intelectual e estimulador profissional de Dona Cleo é já por si só dimensionar a importância da contribuição por parte do autor de Um colecionador de angústias para os estudos de literatura portuguesa no Brasil. 
No segundo dia do congresso, pronunciei a comunicação “Dois liberalismos? – razão e modernidade em Fidelino de Figueiredo e José Guilherme Merquior”. De fato, ambos os autores inseriram-se na longeva tradição liberal, e ilustram como o liberalismo assumiu diversificadas facetas ao longo de sua existência, que remonta ao início da história moderna. Pertencentes a gerações distintas, tendo Fidelino de Figueiredo produzido a maior parte de sua obra na primeira metade do século XX, e Merquior na segunda metade do mesmo século, observam-se também diferenças contundentes no liberalismo de cada um.

Em termos esquemáticos, impostos pelos limites de tempo do evento, situei o pensamento liberal de Fidelino numa linhagem marcada pelo que identifiquei como pessimismo conservador, e o de Merquior numa outra linhagem, marcada pelo otimismo pessimista. Tal caracterização, diga-se de passagem, teve toda a cautela em evitar sugestionar qualquer juízo de valor. Acresceu-se que o liberalismo fideliniano impôs-se, acima de tudo, como visão de mundo direcionada por uma ótica predominantemente ética. Desse modo, em pleno contexto da Guerra Fria, o escritor português criticou tanto o autoritarismo de origem marxista quanto o desdobramento econômico do liberalismo, isto é, o capitalismo. Por outro lado, José Guilherme Merquior abraçou o ideário liberal, especialmente durante a década de 80, numa perspectiva ampla (cultural, social, política, ética), na qual se incluía, sem temor, o aspecto econômico. Para o autor brasileiro, o capitalismo era sim superior, em seus resultados históricos, à alternativa socialista/comunista, conquanto fosse vantajoso senão impositivo, a depender das circunstâncias nacionais, implementar-se uma espécie de conjugação dialética entre as duas soluções, encerrada nos termos do social-liberalismo. Com essa plataforma Merquior, na companhia de outros autores, procurava fazer equilibrar a ênfase na liberdade (do cidadão e do mercado), preconizada pelo capitalismo liberal, e a ênfase na igualdade social, almejada pela utopia marxista, na tentativa de não permitir que a política nacional recaísse no libertício das ditaduras comunistas (URSS, Cuba, Coreia do Norte, China), mas tampouco no darwinismo social de um Estado de intervenção mínima.
Importar informar que me baseei, de Fidelino de Figueiredo, especificamente em quatro títulos: O dever dos intelectuais (1935), Um colecionador de angústias (1951), O medo da história (1956) e Diálogo ao espelho (1957); de José Guilherme Merquior, especialmente os títulos O argumento liberal (1983) e O liberalismo: antigo e moderno (1991).     

terça-feira, 12 de abril de 2016

Lançamento de livro: O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial (Murilo Marcondes de Moura)

Neste sábado (dia 16), Murilo Marcondes de Moura lançará, em Belo Horizonte-MG, o livro O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial, pela Livraria Scriptum. O professor de literatura brasileira da USP, autoridade nacional em matéria de poesia modernista, focaliza no estudo a produtiva e angustiada reação de poetas do Brasil a um dos episódios mais sanguinários e catastróficos da história humana, sucedido entre 1939 e 1945, que envolveu todos os continentes do Planeta. Para se dimensionar a relevância do tema, podemos citar versos de ninguém menos que Vinicius de Moraes (“A rosa de Hiroshima”), de Murilo Mendes (cuja obra é um dos maiores interesses do xará Marcondes de Moura) e de Carlos Drummond de Andrade (A rosa do povo).

segunda-feira, 28 de março de 2016

Dossiê José Guilherme Merquior na revista Café Colombo

Nesta quarta-feira (dia 30), na livraria da É Realizações (São Paulo-SP), ocorrerá lançamento de edição especial da revista Café Colombo, que conta com dossiê sobre José Guilherme Merquior, em que constam textos críticos de João Cezar de Castro Rocha, Fábio Andrade, Peron Rios, Joel Pinheiro da Fonseca e Eduardo Cesar Maia. Durante o evento, será exibido o documentário José Guilherme Merquior – paixão pela razão!.

No Facebook, a Revista noticia que a edição (5) será comercializada em breve, em livrarias e bancas.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Socialismo, comunismo e anarquismo: uma diferenciação conceitual

Tendo em vista que muitos alunos me solicitam a diferenciação entre os termos acima, posto transcrição de trecho da introdução a O socialismo brasileiro, coletânea de textos organizada por Evaristo de Moraes Filho. Na passagem abaixo, o autor – diga-se de passagem, militante socialista – considera especialmente o contexto de meados do século XIX até meados do XX, e esclarece que:

“Em certos momentos e em determinados casos extremos, torna-se mais fácil distinguir entre anarquismo, comunismo (marxismo) e socialismo. Apelava o primeiro para a ação direta, para a violência, para o terrorismo, se necessário, e para a plena liberdade do indivíduo, com total supressão do Estado, sempre opressor e de classe. Isto em sua forma típica, pura. O segundo reconhece na luta de classe a força propulsora da história, acreditando que a natureza e a sociedade podem dar saltos, fazendo da revolução o instrumento de ascensão do proletariado e seus aliados, instalando-se a sua ditadura, como período indispensável ao desaparecimento das classes e advento definitivo do regime comunista. Só então o Estado se tornará desnecessário e inútil, por não haver mais classe dominante e classe dominada. O terceiro prega também a socialização dos meios de produção e da propriedade em geral, concorda com os anarquistas quanto à ação direta (greve) e quanto aos comunistas no que se refere à luta de classes, mas não concorda com a revolução como único caminho de mudanças e nem com a ditadura do proletariado. Quer acabar com as classes e instalar uma sociedade verdadeiramente socialista, mas que o seja também verdadeiramente humanista e democrática, livre, aberta, pluralista, mas desde que se respeite o princípio fundamental da socialização da propriedade.” (p.55)

(MORAES FILHO, Evaristo de. O socialismo brasileiro. Biblioteca do pensamento político republicano. Brasília: Editora UnB, 1981.)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

“A trincheira”, de Vicente Huidobro

Sobre o canhão
Cantava um rouxinol
                        Perdi meu violino

A trincheira
Circunda a Terra
                        Que frio
                                   Todos os pais vestidos de soldado

Alguém assobia atrás de sua própria vida
CROANA                  VERDUN                  ALSÁCIA
                            Formoso branco é a lua

A sombra de um soldado
Jazia num agulheiro
            Pode ver-se no solo ensanguentado
            O aviador que feriu a cabeça contra uma     
                                               estrela apagada

E melhor que um cão
O canhão vigia
                                   Às vezes ladra
                                   À
                                                           LUA

Todas as estrelas são agulheiros de obuses.

Halalí, 1914

(Trad. Antônio Risério in HUIDOBRO, Vicente. Altazor e outros poemas. São Paulo: Art Editora, 1991. p.183)