sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

José Arthur Giannotti: uma polêmica com Merquior

A GloboNews exibiu ontem, ao vivo, no programa Diálogos com Mário Sérgio Conti, entrevista com o filósofo e professor da USP José Arthur Giannotti. O assunto em foco foi a política brasileira, nestes tempos conturbados, em que tramita processo de impeachment contra a presidente da República Dilma Rousseff, sucedem as investigações e julgamentos das chamadas operação Lava-Jato e Zelotes, e a economia nacional padece uma de suas piores crises no século atual.

Giannotti, em setembro de 1987, publicou na revista Novos estudos CEBRAP artigo intitulado “O tema da ilustração em três registros”, no qual comenta os livros Ensaios de filosofia ilustrada, de Rubens Rodrigues Torres, As razões do iluminismo, de Sérgio Paulo Rouanet, e O marxismo ocidental, de José Guilherme Merquior, todos então recém-publicados.
No texto, o docente universitário se aplica a distinguir as obras em questão em dois gêneros específicos: o propriamente acadêmico-científico, rótulo adequado ao livro de Rubens Rodrigues Torres, e o ensaístico-retórico, classificação atribuída aos de Rouanet e Merquior. Quanto a este último autor, considerando sua fama de polemista altamente numeroso em matéria de publicações, Giannotti asseverava:
 

É ser tolo e contraproducente torcer o nariz diante deste fenômeno muito novo que atravessa a cultura de massa contemporânea. Milhares de intelectuais gostariam de ocupar a posição de José Guilherme Merquior no panorama de nossas letras, mas, infelizmente, existe só um Merquior. Antes de combatê-lo como inimigo da cultura [?], cabe elogiar o trabalho de dissolução que ele faz com mestria, afirmando um liberalismo e uma liberdade de espírito de que a cultura brasileira carece, e muito. Para que haja o filósofo é necessário o sofista, para que haja o estadista é necessário o militante, um é complemento do outro. Aqueles que pretendem ser filósofos precisam compreender essa dualidade e ressaltar em Merquior o que ele tem de produtivo: ele é um mestre indiscutível da retórica. Não cabe comparar seus livros com teses de doutoramento, pois esta não é sua intenção nem sua função. Também na cultura vale o ditado: cada macaco no seu galho. (Giannotti, 1987, p.11-12)
 
É evidente que José Arthur Giannotti aí desqualificava a validade de O marxismo ocidental e mesmo do conjunto da obra merquioriana como contribuição efetiva ao avanço do conhecimento, – avanço exclusivamente, segundo o filósofo paulista, de competência de professores de universidades, da espécie do próprio Giannotti e do conhecido tradutor de Nietzsche, Rubens Rodrigues Torres. Portanto, o único galho concedido aos autores simiescos de Verso universo em Drummond e de Mal-estar na modernidade era o da difusão-dissolução do conhecimento conquistado pela academia.

A fundamentação dessa crítica enfática perfumada de um reconhecimento pouco lisonjeiro se respalda, no caso de Merquior, na acusação de que “O marxismo ocidental estropia um filósofo atrás do outro”, (Giannotti, 1987, p.12) e de que “a oposição clássica razão-irrazão”, à qual os pensamentos merquioriano e rouanetiano se aferram, na defesa desabrida do primeiro termo, só poderia, em pleno século XX, “ser meramente retórica” porque “deixa de ter sentido”. (1987, p.13) Desse modo: “[...] tanto a polêmica de Merquior quanto o programa racionalizador de Rouanet necessitam duma rede categorial mais fina.” (1987, p.14)
Polemista vocacional, José Guilherme Merquior não deixaria o xará sem interlocução. Três meses depois, a mesma revista publica “Retórica ex cathedra”. Nesse pequeno artigo, explicita os prejuízos semânticos da tradução brasileira de O marxismo ocidental – “longe de ser perfeita” –, (1987, p.9) e rebate, com a veemência típica de sua verve, “a mimosa qualificação de sofista e retórico”, (1987, p.10) acusando o filósofo paulista de ter apresentado “apenas mais uma peça de auto-advocacia universitária”, munida de um
 

[...] argumento, enfim, ostensivamente retórico, baseado no sofisma segundo o qual a origem dos textos filosofantes – ou, o que é pior, a intenção que o crítico arbitrariamente lhes atribui – é o elemento determinante do seu grau de rigor e seriedade. (Merquior, 1987, p.10)

Apesar de assim ter reagido em defesa da própria obra, desqualificada nos seus propósitos intelectuais diante de uma linguagem acadêmica tida como cientificamente mais válida e confiável, em confronto que me parece uma variante da campanha-polêmica travada por Afrânio Coutinho contra a crítica literária impressionista entre os anos 40 e 60, José Guilherme Merquior, curiosamente, não contesta José Arthur Giannotti no tocante à questão do racionalismo/irracionalismo. Por que esse silêncio?, impõe-se ao leitor a pergunta.
Quase três décadas mais tarde, contudo, Giannotti posicionou-se, no programa da GloboNews de ontem, de modo a chegar ao consenso, não no campo filosófico, mas no político-econômico, com Merquior. É que o fundador do Partido dos Trabalhadores se autoidentificou como voz de certa esquerda que não comunga do populismo latino-americano em fase de franco esgotamento nesses últimos anos. Para o professor da USP, as políticas sociais são necessárias em países como o Brasil, mas só são possíveis  graças à criação de riqueza, e são apenas sustentáveis, hoje, com o bom funcionamento do capitalismo. É justamente esta a consciência que caracteriza o social-liberalismo defendido nos anos 80 por José Guilherme Merquior.  

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Não parece referir-se a Merquior? (1)

Autor da introdução ao livro Tigres no espelho (2009), coletânea de textos de George Steiner publicados na revista The New Yorker, entre 1967 e 1997, Robert Boyers, ao refutar a acusada visão museificadora do crítico francês sobre a literatura, esclarece:


Steiner dedicou a vida não só a examinar os clássicos [...], mas também a estabelecer um contato dinâmico e sempre fértil com o novo e o difícil. Steiner, com o que [Edward] Said chamou de “desdém tory pela especialização”, com seu contagioso “fascínio pela engenhosidade verbal” e sua capacidade de entrar “no âmago de um discurso, uma disciplina, uma língua, um autor, e então transmiti-lo aos não iniciados, sem perder a intimidade nem a agudeza clareza de cada campo”, retomando, Steiner jamais transmitiu uma impressão de imobilidade ou monumentalidade distante nas várias centenas de obras que abordou. Muito pelo contrário. Tudo o que ele olha constantemente vibra de possibilidades, de perspectivas genuínas de se revelar fresco, palpitante, surpreendente ou purificador. O novo é tomado como um desafio a ser enfrentado, e quando sua encarnação numa determinada obra parece espúria, pretensiosa ou fácil, o instinto de Steiner não é apenas descartá-lo, mas também expor como não se deixar impressionar indevidamente pela mera aparência de novidade. (2012, p.14)

Não estaria acima, ajustadas algumas frases, caracterizado também o pensamento crítico de José Guilherme Merquior? Pois o autor brasileiro:

a)      apontou muitas desvantagens na especialização profissional do conhecimento – em A natureza do processo: “[...] com frequência o reino do diploma cria rigidez e ineficiência. Antigamente, por exemplo, os colunistas econômicos dos grandes jornais brasileiros eram economistas, profissionais ou amadores. Hoje eles têm que ser obrigatoriamente formados em ‘comunicação’ – e, em consequência, pouco entendem da matéria sobre a qual vão escrever...” (1982, p.26) E Merquior já se havia inflamado, em Formalismo e tradição moderna, contra o “pensar” “ilhado do especialista”, este “modelo da pesquisa científica inconsciente das suas raízes culturais”. (2015, p.250);


b)      Não obstante sua própria convicção, declarada em ensaio de Razão do poema, de que a crítica literária e a literatura “se conservam como funções distintas”, (2013, p.201) e o eventual desagrado de alguns com sua linguagem, como Wilson Martins, que cita, em tom de farpa, a observação de B. Woodbrige a respeito do livro de 1965 (“Sua densidade de redação nem sempre facilita a leitura.”), (cf. 1983(a), p.712-713) José Guilherme Merquior foi um estilista da língua portuguesa, algo amplamente reconhecido de muitos que o leram. Por exemplo, Marcos Vinicios Vilaça, que o qualifica como “escritor de forma elegante”; (2011, p.4) Eduardo Portella, que pontua o fato de que, na obra merquioriana, “A língua deixa de ser um mero instrumento de que se serve o argumento para se expressar, porque se amplia no conluio procriativo da palavra instada pela imaginação”; (2011, p.7) e, por fim, Celso Lafer, para quem Merquior escreveu “mesclando uma arte e um conhecimento que exprimia no seu texto a virtuosidade da vivacidade do seu espírito”. (2011, p.30)


c)      Essa mesma linguagem, que se plasmou de arguta capacidade interpretativa e analítica e se aparelhou de hercúleo mobilização bibliográfica, também se caracterizou, em vários títulos, como “aquém do jargão, além do chavão”, (1982, p.10; 1983(c), p.11) num propósito pedagógico por excelência, tanto mais admirável por ter se embrenhado em diversificadas áreas e em diversos autores e obras.


d)     Também o autor de O marxismo ocidental não se rendeu, diferentemente do que tem sido a tradição acadêmica brasileira, aos ditames da última novidade intelectual – demarcando sistematicamente uma autonomia de pensamento, que se impôs, simultaneamente, pelo esforço tanto em atualizar-se acerca das correntes e das teorias mais recentes e mesmo em voga, quanto em submetê-las a uma recepção crítica rigorosa. Essa postura valeu não apenas para as matérias de ordem filosófica e teórica, mas também para as artes e a literatura. Curiosamente, se, segundo Robert Boyers, “Steiner foi o primeiro crítico na imprensa periódica americana a defender autores como Thomas Bernhard, Leonardo Sciascia”, (2012, p.15) quanto a este último, José Guilherme Merquior, em texto recolhido em O fantasma romântico e outros ensaios (1980), declarou com entusiasmo similar: “Vários autores contemporâneos são, como Leonardo Sciascia, críticos sociais independentes. Significativamente, o ídolo de Sciascia é Voltaire: não tanto, é claro, por suas idéias, mas por ser uma espécie de arquétipo da literatura crítica e reformista [...].” (1981, p.39) Aliás, é inevitável não observar que Boyers, sempre no tocante à crítica de George Steiner, cita o conselho de Elias Canetti, de que “o escritor devia ‘se colocar contra’ a própria ‘lei’ de sua época e fazer uma oposição ‘sonora’ e insistente.” (2012, p.20) A mesma que Merquior recorda como síntese de sua própria compreensão política da literatura, em ensaio de O elixir do apocalipse dedicado ao prêmio Nobel de 1981. (cf. 1983(b), p.45)

Mas o que diria o próprio Merquior dessa aproximação? O nome de George Steiner aparece nos textos do brasileiro, num primeiro período, como referência acatada, para posteriormente tornar-se referência quase que atacada. A mudança se dava como efeito da militância merquioriana, a partir do início da década de 80, contra o tenebrismo semântico da arte de vanguarda, abençoado pelo crítico francês. Em ensaios do reeditado este ano Formalismo e tradição moderna, que publicou em 1974, por exemplo, Merquior considera Steiner “um dos melhores críticos firmados na última década”, com direito ao acréscimo: “embora bem menos festejado no Brasil do que as vedetes estruturaloides e seus jargões pseudocientíficos”. (2015, p.342) Muito porque o ensaísta que dissecou a vida e o organismo do Kitsch promove um brinde à denúncia steineriana do “recuo da posição hegemônica da expressão verbal na cultura contemporânea”, que teria como “resultado global” “a new illiteracy de Richard Palmer Blackmur: a paradoxal rusticidade retórico-literária da sociedade... alfabetizada”. (2015, p.342) O entusiasmo com Language and Silence (1967) dá lugar, no pensamento de Merquior, a certa antipatia com os títulos posteriores, como “o pretensioso After Babel” (1983(b), p.27), livro de 1975, e On difficult and other essays, 1978, no qual é apontada, com dedo indicativo e judicativo, a sombra da “asa negra do pássaro Heidegger”, para dizer dos “grandes críticos [que louvam] o estilo das trevas e sua guerrilha contracultural”. (1990, p.362)

Referências bibliográficas:

MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil (1940-1981). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983(a). 2º vol.
MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983(b).
______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. 2ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2015.
______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983(c). pp.44-47.

______. “O significado do pós-modernismo” in O fantasma romântico e outros ensaios. 1980. pp.27-41.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

VILAÇA, Marcos Vinicios (coord. geral). Mesa-redonda em homenagem aos 70 anos de José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

6º encontro GEM 2015

O GEM reuniu-se ontem para ainda discutir “Crítica, razão, lírica”, ensaio que integra a segunda parte, dedicada à estética, de Razão do poema (1965). Também se oficializou o ingresso de mais um integrante no grupo, o graduando do curso de Licenciatura Plena em Letras Português da UESPI, campus de Bom Jesus-PI, Lucas Negreiros França.
 
O texto em pauta refere-se às três frentes fundamentais do sistema literário, coincidentes com a hoje clássica definição de Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira: 1) autor, 2) obra e 3) público. No tocante ao primeiro elemento, que envolve mais especificamente a criação do texto lírico, o poeta, para o jovem José Guilherme Merquior, precisa estar convicto do papel da razão, que deve coordenar e supervisar a participação da fantasia, das sensações e dos sentimentos. Empreendendo um “ataque contra a abundância e preeminência do elemento sensorial”, (2013, p.191) aspectos estes comprometedores da qualidade da maior parte da tradição poética brasileira, o ensaísta endossa a escrita de “uma poesia do pensamento”, que, de qualquer forma, nem por isso renuncia a uma necessária “vibração emotiva”. (2013, p.190)
 
Quanto ao segundo termo acima discriminado, Merquior ratifica a autonomia da poesia frente à realidade – “é consideração do mundo, mas sem sujeição aos seus dados, sem pura descritividade” –, (2013, p.193) sendo que a lírica se vale de “uma razão que enfrenta o mundo disposta a extrair dele um significado”, instaurando assim uma “pura significação nascente”. (2013, p.193)A observação desse enfrentamento do mundo pela poesia, segundo Merquior, pretende evidenciar a tensão entre arte e sociedade, que talvez possamos explicar, para fins didáticos, da seguinte maneira: o poeta escreve num ato de crítica (não no sentido de rejeição, mas de compreensão avessa a qualquer gesto de passividade e aceitação dogmática) da realidade, para que a obra escrita, conquanto autônoma em relação ao que semanticamente a motivou, estabeleça diálogos com aquela mesma realidade social. Donde o autor ensinar tanto que a)“A poesia discute valores, não já simplesmente os funda; e o lirismo, que era já um tipo especialíssimo de consciência emocional, agora aparece como emoção ante um mundo-problema” (2013, p.196) quanto que b) “Na lírica a subjetividade está essencialmente a serviço do coletivo, a serviço dos homens, pois só assim se pode compreender que seja, como é, atividade constitutiva de sentido.” (2013, p.194) Em outras palavras, às quais gostaríamos de dar maior destaque:

[...] a literatura, mesmo autônoma e específica como atividade, não existe sem realizar-se na direção de uma necessária causa final, e [...] essa finalidade, é a sua grandeza, [...] esta é, sem dúvida possível, “a profundidade e a riqueza das suas relações com a realidade-afetiva”. (2013, p.200)

Finalmente, sobre o terceiro elemento, no ensaio representado pela crítica literária, esta também não está dispensada de munir-se de uma postura por excelência compromissada com a razão, pois “A leitura do poema intelectualizado [...] parece exigir a atenção da inteligência leitora”. (2013, p.193) Como gratamente esclarece Eduardo Portella a respeito do contexto de publicação de Razão do poema, José Guilherme Merquior, com esse livro, manifestava-se contrário à recaída impressionista da crítica no momento (década de 1960), decerto estimulada por soluções literaturizantes como remédio ao secular complexo de inferioridade dos críticos diante da literatura. Nesse ensaio de Razão do poema, Merquior apontava para outro caminho, assim pensando:

À crítica sempre competiu fazer a “política” da literatura nova. Quando falhou nessa missão, foi preciso que os poetas se tornassem críticos: Pound e Eliot; mas essa não é decerto a melhor solução. Crítica e poesia, crítica e literatura, não são, nem nisso, estanques: mas se conservam como funções distintas. (2013, p.201)

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

5º encontro GEM 2015

Ontem ocorreu o quinto encontro do GEM em 2015, para dar prosseguimento à discussão de “Crítica, razão, lírica”, ensaio contido em Razão do poema (1965), de José Guilherme Merquior. Nesse texto o autor defende que o poeta deve escrever com a convicção de que a razão precisa prevalecer e/ou supervisionar a participação eventual do sentimento, da emoção, da sensação e da fantasia, no propósito de alcançar a mais alta qualidade literária. Ao crítico, por sua vez, também cabe o dever de interpretar a obra à luz da razão, examinando todo o mecanismo semântico por trás da linguagem poética.
 
No fito de tornar o mais evidente possível o resultado de uma criação pautada na razão predominante e de uma criação pautada, sobretudo, no sentimentalismo, que Merquior lamentava comprometer a tradição lírica brasileira, pelo menos, até o modernismo, o grupo analisou comparativamente quatro  textos de natureza propositalmente bem diversa: duas letras de música ("Escreve aí", cantada por Luan Santana, e "Construção", de Chico Buarque) e dois poemas ("Amor e medo", de Casimiro de Abreu, e "Tecendo a manhã", de João Cabral de Melo Neto).
 

A análise procurou evidenciar o fato de que tanto os versos de “Escreve aí”, contemporâneos, quanto os de “Amor e medo”, românticos, constituem-se de mero senso comum a respeito dos jogos amorosos, não iluminando nenhum aspecto novo relativo ao tema. Diferentemente, a passagem de “Construção” e o poema “Tecendo a manhã” despertariam o leitor para uma realidade de que nem sempre está consciente (o orgulho principesco de um operário em comer arroz com feijão; a indiferença-irritação perante a morte alheia) ou para uma realidade insuspeita (em vez de a manhã motivar o canto dos galos, são os galos que “tecem” a manhã) ou ainda para um significado não óbvio (a manhã, no sentido de um novo tempo, como resultado de um esforço conjunto). Para Merquior, o autêntico poeta deforma o real, poeticamente, para criticamente melhor compreendê-lo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

"Guia-me a só razão": um poema de Fernando Pessoa

Guia-me a só razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão?
Só ela me alumia.

Tivesse Quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
“Cego, fora eu bendito”?

Como o olhar, a razão
Deus me deu, para ver
Para além da visão –
Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,
Pensar um descaminho,
Não sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.

(Ficções do interlúdio. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. p.97)

sábado, 17 de outubro de 2015

Merquior: um aluno repetente da escola de morrer moço?

Admirados e espantados pela quantidade e pela qualidade do legado intelectual de José Guilherme Merquior (cerca de duas dezenas de livros, numerosos textos esparsos, uma bibliografia ainda influente e atual), e entristecidos pelo falecimento precoce do autor (aos nem 50 anos de idade), à mente de muitos de nós costumam vir palavras como: “Parecia que ele tinha pressa em ler, aprender e escrever muito porque pressentia a própria morte para muito em breve.”

São palavras pertencentes à mesma espécie dos lugares-comuns ouvidos em velórios: “desta vida não se leva nada; para morrer basta estar vivo”, etc. Ou seja: é um pensamento boboca, bem ao gosto ultrarromântico, que explicou, no século retrasado, a morte de um Álvares de Azevedo, aos 20 anos, mas que desagradaria, irritaria o próprio Merquior, homem de razão, avesso a elucubrações de ordem mística ou de inconsciente, ainda mais em estado de clichê.
O que houve foi uma mera, e sim, é verdade, trágica coincidência de mais servira se não fora para tão longa obra tão curta vida. Beethoven morreu aos 57 anos e compôs, em termos numéricos, significativamente menos do que Mozart, que morreu aos 35; idade em torno da qual Rossini abandonou a carreira de compositor, para só vir a falecer aos 68 – caso semelhante, na literatura, ao de Rimbaud. Johannes Brahms, ultraperfeccionista, deixou obra bem menor que a de Beethoven, e deixou a vida 10 anos mais velho.

Aos cinquenta, em 1875, Camilo Castelo Branco já tinha escrito uma das maiores obras literárias em língua portuguesa. Se o Romancista de Ceide, como Balzac, se estafou com a pena em punho, fosse porque pressentisse que iria morrer cedo, fosse porque vivia desse ofício pouco rendoso, contou com mais quinze anos, durante os quais escreveu mais outra prateleira. Outro titã da tinta e do papel, em Portugal, foi Teófilo Braga, cuja existência longeva (entre 1843 e 1924) resultava, já cinquentão, numa obra filosófica e de crítica literária, pelo menos quanto ao volume, de impor respeito. Para ficarmos em território nacional, podemos mencionar a contribuição de Assis Brasil. Nascido em 1932 (hoje, portanto, aos 83 anos), o escritor piauiense se consagra com uma das mais volumosas obras literárias produzidas por brasileiro (ultrapassa os 100 títulos).
José Guilherme Merquior escreveu e publicou tanto simplesmente por ter se disposto intelectual e fisicamente para essa tarefa. Uma platitude, eu sei. Se não tivesse sido levado pelo câncer, é muito provável que continuasse a escrever e publicar. Ou não, como diria o por ele intitulado “intelectual de miolo mole”. Não importa. O importante é a lição de Merquior, o professor da escola de viver o melhor e mais sensatamente possível, que ensinava ser um obscurantismo anacrônico, uma infância mental peter-panesca nos deixarmos assombrar, já no século XX e ainda no XXI, pelos velhos fantasmas românticos do irracionalismo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Notícias do evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”

Realizou-se à noite de ontem (1º de outubro), no auditório do campus Dom José Váquez Díaz da UESPI, o evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”, organizado pelo GEM, sob coordenação do prof. Dr. Adriano Lima Drumond, com apoio da PREX/UESPI. Foram proferidas três conferências, que, no conjunto, objetivavam não somente divulgar e discutir a tradição e as concretizações do liberalismo segundo Merquior, mas também apresentar nosso grupo à comunidade acadêmica local e noticiar nossa produção nesses dois anos de atuação oficial.

O prof. Dr. Nouga Cardoso Batista, reitor da Universidade Estadual do Piauí, pronunciou as palavras de abertura e de encerramento, tendo destacado a relevância das informações e a qualidade das discussões ouvidas por público composto por alunos e professores do campus, além de outros interessados. A autoridade maior da UESPI ainda aventou a possibilidade de se realizar o mesmo evento em outros campi da instituição, como forma de incentivar a extensão e a pesquisa em diferentes municípios do Estado.

prof. Dr. Nouga Cardoso Batista (Reitor da UESPI)
 
Na primeira conferência, intitulada “José Guilherme Merquior: lições de um crítico das ideias”, Adriano Lima Drumond, docente do curso de Licenciatura Plena em Letras Português, forneceu aos presentes os dados biográficos e bibliográficos principais do autor em questão, discerniu os conceitos de liberismo (visão restrita ao âmbito econômico) e de liberalismo (uma visão abrangente, que envolve ideias como as de democracia, liberdade, igualdade, desenvolvimento, progresso, ciências, razão, Estado de Direito), bem como esclareceu a proposta liberal adotada e propagandeada por Merquior: a de social-liberalismo, conforme a qual o Estado se compromete, em condições de disparidades socioeconômicas, como no Brasil, a servir como promotor de condições mais igualitárias, contudo respeitando a autonomia do mecanismo do mercado e estimulando a eficiência e a expansão da iniciativa privada.

prof. Dr. Adriano Drumond, falando ao microfone
 
A conferência do prof. Adriano Drumond também ensejou a doação particular, que se tornou solene e orgulhosamente pública, de 11 exemplares dos seis títulos de publicação recente pela editora É Realizações para a biblioteca do campus Dom José Vásquez Díaz. O acervo contém Razão do poema, Verso universo em Drummond, A estética de Lévi-Strauss, De Anchieta a Euclides, O liberalismo: antigo e moderno e Formalismo e tradição moderna.

prof. José de Arimateas de Sousa Nunes, falando ao microfone
 
Em seguida, o prof. José de Arimateas de Sousa Nunes, também pertencente ao quadro docente do curso de Licenciatura Plena em Letras Português e integrante do GEM, expôs o panorama histórico que José Guilherme Merquior traçou do liberalismo em seu último livro (1991), desde o protoliberalismo, que se manifesta na Idade Média, até suas vertentes consolidadas no século XX. Como conclusão de sua conferência, especialmente aplaudida pelo Magnífico Reitor, o prof. Sousa Nunes convidou o público, de modo lúdico e provocativo, a orar o “Credo liberal”.

O juiz e prof. Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz
 
Por fim, Dr. Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz, professor do curso de Bacharelado em Direito do campus, juiz titular da Vara do Trabalho de Bom Jesus-PI e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Arquidiocese de Teresina-PI, interpretou, sob a ótica jurídica, o texto “Liberalismo e constituição” que Merquior publicou em Constituição de 1988: o avanço do retrocesso (1990), livro organizado por Paulo Mercadante. Entre concordâncias e divergências de visão sobre o assunto em pauta, o prof. Nery da Cruz reforçou que o pensamento liberal deve defender não somente um Estado de Direito, que pode ocorrer e ocorre em regimes autoritários, como na Coreia do Norte ou em Cuba, mas, mais especificamente, um Estado democrático de Direito.

público do evento, no auditório do campus (UESPI)
 
da esquerda para a direita: professores Carlos Wagner, Nouga Cardoso, Adriano Drumond,
Raimundo Isídio, José de Arimateas e Gasparino Batista
 
 
Esse evento, que o GEM planeja ser o primeiro de muitos, em realizações anuais, nos deixou imensamente satisfeitos e felizes. Acreditamos que o público (mais de cem pessoas) saiu do auditório com entendimento, no mínimo, menos depreciativo e caricato de liberalismo e do valor da obra de José Guilherme Merquior. Cumpre ressaltar a presença, que mais ainda nos prestigiou, do diretor do campus, prof. Dr. Gasparino Batista de Sousa, e do pró-reitor da PRAD (Administração e Recursos Humanos), prof. Ms. Raimundo Isídio de Sousa.

os professores Carlos Wagner, Adriano Drumond e José de Arimateas
 
Na condição de coordenador do GEM, gostaria de agradecer especialmente, neste espaço, a colaboração dos integrantes discentes Daniel Nogueira do Nascimento, Denise Bezerra Leal, Nicélia Oliveira Campos, Silvania Maria de Sousa Brito e da graduada Thaís Amélia de Araújo Rodrigues, e manifestar minha felicidade e entusiasmo com o engajamento do grupo nesta nossa empreitada acadêmica. Por motivos de força maior, a aluna Daniela Ferreira Martins não pôde estar presente, mas decerto nos ajudou com sua torcida para que no evento tudo desse certo.
GEM (da esquerda para a direita): Daniel Nogueira, Adriano Drumond, Nicélia Campos,
Denise Leal, Silvania Brito, Thaís Amélia e José de Arimateas
 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”

O GEM promoverá, nesta quinta-feira (1º de outubro), das 19h às 21h30, no auditório do campus Dom José Váquez Díaz da UESPI, o evento “José Guilherme Merquior: um pensador do liberalismo”. Três professores da Casa (Adriano Lima Drumond, José de Arimateas de Sousa Nunes e Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz) pronunciarão, respectivamente, as seguintes conferências: “José Guilherme Merquior: lições de um crítico das ideias”, “O liberalismo de José Guilherme Merquior” e “A Constituição de 1988 segundo José Guilherme Merquior”.

A proposta geral do evento é tanto divulgar, no âmbito universitário local, a obra do autor em discussão quanto consolidar as atividades de nosso grupo de estudos, que vem atuando, oficialmente, desde fevereiro de 2013. Quanto ao tema que consta no recorte, objetiva enriquecer o entendimento dos discentes do campus, público-alvo principal, a respeito da tradição e das concretizações sociopolíticas e culturais do liberalismo.

Esta próxima oportunidade de interlocução contará, orgulhosamente, com a participação do prof. Dr. Nouga Cardoso Batista, Reitor da Universidade Estadual do Piauí, quem pronunciará as palavras de abertura do evento.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Pré-estreia do documentário José Guilherme Merquior – paixão pela razão! e lançamento de Formalismo e tradição moderna

Logo após ter assistido ao José Guilherme Merquior – paixão pela razão!, não me contive e confessei ao Edson Manoel de Oliveira Filho, editor da É Realizações: “Estou muito... muito emocionado.” Com este sentimento, ainda vivo em mim passados quatro dias da pré-estreia em São Paulo, peço que me permitam noticiar como foi o evento de maneira mais pessoal e subjetiva do que o costume neste blog.

De início, destaco a surpreendente heterogeneidade – e não somente etária – do público ali presente, o que comprova a vitalidade e dimensiona o alcance do pensamento de Merquior. Localizado à rua França Pinto, 498, o aconchegante espaço da É Realizações recepcionou oferecendo, como aperitivo, não apenas o que os garçons traziam nas bandejas: podia-se degustar também retratos do grande pensador, antiga reportagem de jornal com entrevista histórica, realizada no início do governo Sarney, e amostra da farta correspondência do autor com, dentre outros nomes, Carlos Drummond de Andrade, Antonio Candido, Luiz Costa Lima, Leandro Konder e Glauber Rocha. Abrilhantou ainda mais o evento a presença de familiares do diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras: a filha Julia Merquior, o irmão Carlos Augusto Merquior e a sobrinha Helena Merquior.

Foi exibido vídeo institucional, parte das comemorações dos 15 anos da É Realizações, ao qual se seguiu, pode-se dizer, uma aula de João Cezar de Castro Rocha sobre Formalismo e tradição moderna, mais recente lançamento da Biblioteca José Guilherme Merquior, publicada pela editora paulista. O professor da UERJ e coordenador desse projeto editorial situou o livro – sua primeira edição data de 1974 – junto com Razão do poema (1965) e O liberalismo: antigo e moderno (1991), como manifestação enfática do posicionamento crítico e visionário do autor frente ao diagnóstico de uma crise da cultura, cujos efeitos seriam sentidos mais hoje do que décadas atrás. Castro Rocha ainda defendeu a funcionalidade de se comparar o Formalismo e tradição moderna, para efeitos de uma contextualização não limitada à esfera nacional, com dois outros livros publicados no mesmo ano: Os filhos do barro, do mexicano Octavio Paz, e Teoria da vanguarda, do alemão Peter Bürger. Nessa perspectiva, o Professor concluiu que José Guilherme Merquior foi um dos maiores pensadores ocidentais da segunda metade do século XX.

Quanto ao documentário, que se impõe desde já como uma das peças fundamentais da história do pensamento merquioriano, a produção de cerca de meia hora conta com depoimentos de Celso Lafer, Nélida Piñon, Alberto da Costa e Silva, José Mario Pereira, Julia Merquior e comentários de João Cezar de Castro Rocha. Particularmente me comoveu a oportunidade de, pela primeira vez, ver e ouvir José Guilherme Merquior falar, em trechos de entrevista televisionada de raro acesso, mesmo nesta era do Youtube. Vale noticiar que rasgos irônicos de Merquior, ao por exemplo concordar que parecia ter lido mais sobre psicanálise do que indignados interlocutores numa certa polêmica acerca do assunto, arrancaram irresistíveis gargalhadas do público.

Prof. Adriano Drummond
 
Representando o GEM, estivemos presentes na pré-estreia do documentário e lançamento do livro a licenciada em Letras Thaís Amélia Araújo Rodrigues e eu, coordenador do Grupo.
Não consigo resistir à tentação de dizer que Julia Merquior, Carlos Augusto Merquior e Helena Merquior são pessoas adoráveis, assim como João Cezar de Castro Rocha e Edson Manoel de Oliveira Filho.
 

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

1ª entrevista GEM: Marcus Vinicius de Freitas

No esforço de fazer nossas reflexões aqui veiculadas integrarem a pesquisa e a interpretação atuais da obra de José Guilherme Merquior, entrevistamos o professor Marcus Vinicius de Freitas, 55, natural de Belo Horizonte-MG. Docente titular de Teoria da Literatura na UFMG, é também ele crítico, poeta e romancista, tendo publicado, entre outros, os livros Contradições da modernidade (UNICAMP, 2012, ensaio) e Peixe morto (Autêntica, 2009, romance).
Agradecemos-lhe imensamente a oportunidade de publicarmos, neste blog, as informações, a compreensão, o esclarecimento e as opiniões expressos na entrevista que se segue, realizada ao longo dessas duas últimas semanas.
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QMM: Marcus, gostaria de começar esta entrevista perguntando em que momento e circunstâncias de sua vida se deu o primeiro contato com o nome e a obra de José Guilherme Merquior. E, dessas “impressões iniciais” para os dias de hoje, houve alguma significativa alteração de sua compreensão sobre a figura e o pensamento desse autor?

M: Bem, comecei a estudar literatura em 1982, em meio à febre estruturalista e desconstrucionista no Brasil. Nessa altura, os textos do Merquior não chegavam aos graduandos. Seu nome aparecia aqui e ali, mas sempre sob o véu da desconfiança. Ou seja, era um nome barrado por e para quem quisesse parecer superior. Obviamente, muitos anos depois, ao conhecer a obra do autor, ficaram claros para mim os motivos daquela ausência, daquele sequestro, que não eram outros senão o fato de que ele, desde muito antes, era um ácido crítico da moda teórica. Basta lembrar que Estruturalismo dos pobres e outras questões é de 1975. Comprei meu primeiro livro do autor, De Praga a Paris, em 1997 ou 1998, por aí. Essa história do Estruturalismo havia sido publicada em português em 1991, mesmo ano da morte de Merquior. Ou seja, apesar de ter começado a estudar literatura dez anos antes de sua morte, só vim a conhecer seu texto depois de completados meus anos de formação. Mesmo as polêmicas da década de 1980, que estavam no Jornal do Brasil, não me chamaram a atenção, porque Merquior ficava fora do nosso radar de estudantes naqueles anos, o que, de maneira geral, acontece até hoje. Lembro muito de um caso: um colega de geração, mestrando de filosofia, que escrevia dissertação sobre Foucault, leu, por dever de ofício, ali à volta de 1987, o Michel Foucault ou o niilismo de Cátedra, que saíra em 1985, e nos confirmou que não deveríamos perder tempo com aquele conservador. Portanto, não o lemos, e nos sentimos o máximo com essa rebeldia de analfabetos. Não ler Merquior era sinal de superioridade intelectual (rio ou choro?). Conto essa história porque ela me parece exemplar da formação de toda uma geração, não apenas da minha pessoa. Fui iniciar minha leitura do Merquior em 1997, por conta própria, quando fazia doutorado na Brown University, e quem me apresentou o autor foi David Hirsch, no livro Deconstructing Literature: criticism after Auschwitz, uma demolidora crítica da filosofia e da teoria literária francesas pós-68, livro esse em que Merquior constitui uma referência central. Dessas impressões iniciais, a figura dele só cresceu para mim. Ao voltar do doutorado, em 2000, aos poucos fui tomando mais contato com a obra, usando alguns de seus textos em sala de aula. Em especial, depois de 2004, quando deixei a disciplina Literatura Portuguesa (na qual eu já usava um artigo instigante dele sobre Pessoa) e passei a ensinar Teoria da Literatura, sua bibliografia foi ficando mais familiar. Desde lá, passei a usar sistematicamente o texto “A natureza da lírica” (que está em A astúcia da mímese) nas aulas de teoria da poesia, e De Praga a Paris, que me guiou em repetidos cursos de mestrado sobre as tendências críticas do século XX. Nesse percurso, fui catando aqui e ali um ou outro livro que encontrava, até que, em 2010, decidi ir atrás de todos eles de uma vez. Com os sebos virtuais, não foi àquela altura muito complicado, e logo juntei tudo, já pensando em fazer um trabalho sistemático sobre o autor, que fosse um projeto de pesquisa ou uma disciplina de doutorado. Mas a oportunidade ainda levou alguns anos para se cristalizar de alguma forma.

QMM: E neste segundo semestre letivo de 2015, você ministra, no doutorado da Faculdade de Letras da UFMG, uma disciplina que tem por referência central justamente o pensamento de Merquior, sobretudo a partir da publicação de As ideias e as formas (1981). Em sua opinião, o que esse autor tem a nos ensinar de mais relevante, nestas primeiras décadas do século XXI?

M: Como eu disse, depois de juntar todo o material, comecei a estudá-lo aos poucos (pois é uma obra vasta e multifacetada, por isso difícil), ainda por cima em meio a outras demandas, o que dificultava e ainda dificulta um trabalho sistemático. Mas, desde 2013, vi que já tinha alguma segurança para propor uma disciplina, o que é sempre uma oportunidade de estudar mais e de atrair outras pessoas para o mesmo estudo, e assim poder avançar de maneira mais consistente. A primeira ideia era fazer um curso monográfico (proposta que ainda tenho em mente), mas achei que seria mais produtivo, num primeiro momento, colocar a obra do Merquior no contexto maior de suas próprias leituras, e assim nasceu a disciplina ora em curso, que se chama “Crítica Liberal”, cujo texto motivador é o artigo intitulado “Tarefas da crítica liberal”, de As ideias e as formas, ao lado de artigos sobre pós-moderno e sobre liberalismo que estão no mesmo livro, e também em O fantasma romântico e outros ensaios (1980) e em O argumento liberal (1983). O caso é que, para compreender Merquior, fui atrás de suas referências, e aí um mundo se abriu. A relevância da sua obra, portanto, pode ser aquilatada, no mínimo, por esses dois aspectos: por um lado, sua proposição de uma crítica liberal (entendida como a grande síntese do seu pensamento) é fundamental para este momento, em especial no Brasil, quando o combate ao sectarismo ideológico e o resgate da racionalidade crítica, os dois pilares de sua proposta, são necessidades prementes nesse começo de século XXI; por outro lado, a obra de Merquior coloca o leitor em face de uma bibliografia riquíssima, solenemente ignorada nos departamentos de humanidades no Brasil, bibliografia esta que, a cada dia, se revela mais fundamental para entender nossa situação contemporânea.

QMM: De fato, no conjunto e mesmo em suas partes, a obra de J.G.M. abarca um  universo de bibliografias e de áreas do conhecimento acadêmico: crítica e teoria literárias, filosofia, sociologia, economia, política, havendo ainda articulações fundamentais entre o político e o cultural. E como fica, a seu ver, esse desafio crítico de lidar com uma obra assim constituída?

M: Como eu disse antes, ao procurar entender a obra de Merquior, fui ler as suas leituras, e daí um mundo se abriu: Ernest Gellner, Daniel Bell, Friedrich Hayek, Ludwig Von Mises, Luc Ferry, Alain Renaut, Raymond Aron, Ortega y Gasset, Isaiah Berlin, Helmut Schoeck, Lionel Trilling, Frank Kermode, David Hirsch, Roger Scruton, René Girard, o próprio Tzvetan Todorov - em processo de auto-avaliação muito bem captada pelo Merquior -, entre muitos outros nomes, além de autores que não estão nos seus textos, mas que lhe fazem excelente companhia, tais como André Comte-Sponville, Alan Sokal, Jean Bricmont, Eric Voegelin, Thedore Dalrymple, Eduardo Gianetti da Fonseca, João Cezar de Castro Rocha, Daphne Patai, Will Corral, Alfred Schütz, Stefan Sweig, Thomas Sowell, John Ellis, Marjorie Perloff, Anthony O'Hear, Robert Grant, Bryan Boyd, todos foram incorporados ao processo de investigação de sua obra no contexto da disciplina, e por isso passaram a constituir o corpus do curso que propus e que ora sigo ministrando. Uma disciplina assim constituída pode, a princípio, contribuir muito mais para a compreensão do autor do que uma visão monográfica sobre seu trabalho, o que poderia, inadvertidamente, reiterar seu isolamento em nosso meio intelectual.

QMM: Ao planejar a oferta dessa disciplina, que expectativas você tinha relativas à recepção por parte dos alunos? Essas expectativas vêm se concretizando?

M: Alguns dos onze alunos do atual seminário, entre doutorandos e mestrandos, chegaram a comentar que se interessaram pelo curso pelo fato inédito e curioso de não conhecerem e nunca terem lido um autor sequer de todos aqueles mencionados, o que mostra a importância da oferta. Eu tinha expectativas baixas. Pensava que não teria mais do que dois dos meus orientandos em sala, que fariam o curso em deferência ao orientador (risos). Para minha grata surpresa, o grupo é bem maior do que isso, e muitíssimo interessado. Um dos alunos, que conhecia previamente um bocado da bibliografia, e que ansiava por um curso dessa natureza, chegou a dizer que o curso significava para ele a Queda da Bastilha (risos).Com certeza não é para tanto, mas entendo a hipérbole, porque a renovação da bibliografia é uma necessidade premente, e constitui o melhor que um professor pode fazer neste instante.
QMM: O fato de Merquior não ter se concentrado numa única área de intervenção intelectual (a crítica literária, por exemplo) não teria colaborado para a menor lembrança de seu nome em áreas específicas? Ou o senhor discorda dessa constatação?

M: Discordo. Se fosse assim, Roland Barthes ou Michel Foucault não teriam a fortuna crítica que tiveram. Não se trata, portanto, de uma menor lembrança, mas de um “esquecimento” sistemático.

QMM: Há quem tenha afirmado e ainda afirme que Merquior não chegou a elaborar pensamento próprio, sendo antes uma espécie de divulgador professoral de ideias alheias. Qual sua opinião sobre esse tipo de comentário?

M: É muito curioso que essa afirmação seja tão recorrente, e que venha sobretudo de críticos alinhados com o pós-modernismo e o desconstrucionismo, tão afeitos à bricolage e à citação, ou ao “trabalho da citação”, para usar o termo de Compagnon.Não há como não discordar. Não vejo Merquior como um bricoleur, e muito menos como um divulgador, ainda que se deva creditar a ele uma participação decisiva na introdução, entre nós brasileiros, de muitas discussões teóricas de largo fôlego, como o Estruturalismo, o Desconstrucionismo, a Escola de Frankfurt ou o pensamento de Walter Benjamin, por exemplo, o que constitui mérito, não demérito. Merquior, ao contrário, foi um articulador de sínteses muito pessoais, como tem reiterado, e com toda a razão, João Cezar de Castro Rocha, editor da merquiorana, ora em processo de resgate. Aliás, aproveito a oportunidade para saudar publicamente esse trabalho importantíssimo que o João Cezar está fazendo ao assumir a tarefa urgente e difícil de reeditar o Merquior. Voltando às sínteses feitas por Merquior, sua visão do Marxismo Ocidental, ou sobre os liberalismos antigo e moderno são profundamente originais, e dão um salto à frente na compreensão dessas ideias de largo alcance. O mesmo pode-se dizer de sua história do Estruturalismo. O modo como ele avança as ideias de Daniel Bell sobre a contracultura modernista, ao mostrar os seus efeitos específicos na colonização da Teoria pela arte do Alto Modernismo, é igualmente muito pessoal. Esses são apenas alguns exemplos.

QMM: No caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, edição de 23 de agosto deste ano, uma das mais recorrentes qualificações atribuídas a José Guilherme Merquior é “conformista”. Gostaria de que avaliasse a validade e a permanência desse termo com que, via de regra, nos deparamos em textos sobre o ensaísta.

M: Merquior não foi nada “conformista”, e muito menos conservador, no sentido rasteiro de alguém que não aceita a mudança, e que elogia a tradição como oposição ao presente e ao futuro. Isso é apenas o estereótipo, o rótulo com o qual mais facilmente se desqualifica um oponente poderoso. O fato é que Merquior não era socialmente nem politicamente revolucionário, e sim um reformador. Aliás, muito ativo como reformador, inclusive como homem de estado. Mas, desde cedo, ele se vacinara contra a doença ideológica do revolucionarismo, ou seja, desde sempre combateu a contracultura modernista e antimoderna. E como nossa paisagem intelectual é povoada por esse fantasma, aqueles que não fazem vênias a tal simulacro são vistos como “conformistas”, quando é exatamente o contrário. Para usar o símile platônico, Merquior sempre propôs, para si mesmo e para todos nós, que saíssemos da caverna, mas a força das sombras sobre o muro é mesmo muito forte, e explica o rótulo indevido de conformista.

QMM: A polêmica marca a obra de Merquior não apenas em episódios de confrontos com interlocutores específicos, dentre os quais se contaram inclusive amigos do autor, como Sergio Paulo Rouanet, em torno de Foucault e o Iluminismo. Livros como O marxismo ocidental, De Praga a Paris parecem revelar que a polêmica estruturava o discurso do pensamento merquioriano, sistematicamente ansioso por estabelecer diálogos. Julga que o “caráter polêmico” constitua entrave para uma compreensão melhor dessa obra atualmente?

M: Entendo que não. Merquior compreende a polêmica como processo de instituição do espaço público. Se a sua obra se reduzisse a essa vertente erística, não teria efeitos duradouros. E, mesmo no interior de sua argumentação, a verve polêmica e o humor possuem também a função de anácrise, de levar o interlocutor a expressar sua posição, com vistas ao avanço do debate em busca da verdade, nunca como puro gosto sofístico pela polêmica. Sob esse ponto de vista, a obra de Merquior é, por excelência, dialógica, para usar o termo bakhtiniano.

QMM: Poderia apontar algum aspecto da obra de Merquior, seja no âmbito político, seja no literário ou cultural, que estivesse datado? E o que pensa a respeito da militância do ensaísta contra a arte de vanguarda?

M: Estamos em um momento de redescoberta do pensamento e da obra de Merquior. O que se revela, a cada página relida, é uma visão muito consciente, e mesmo visionária, dos objetos em análise, sejam eles a política, a literatura ou a cultura. Para responder à sua pergunta, vai ser preciso, primeiro, revisitarmos a obra em detalhe, o que mal está começando. Nesse momento, diria que nada me parece datado. Um ponto que talvez fique no passado é o desdém com que ele, seguindo Gellner, avaliava a hipótese sombria de Daniel Bell sobre a possível massificação contemporânea da atitude contracultural da vanguarda modernista. Bell achava que o radicalismo contracultural do Alto Modernismo, restrito ao gueto artístico, estava em vias de se massificar na sociedade pós-industrial, o que poderia levar a uma estetização da violência. Merquior, na esteira de Gellner, achava essa hipótese improvável, e afirmava que o radicalismo da vanguarda ficaria sempre restrito aos vanguardistas, fazendo da cultura contemporânea apenas uma cultura irônica, em que o sujeito quer mudar o mundo, destruir a arte e acabar com a ciência só até a primeira dor de barriga, quando ele corre em busca dos ganhos da sociedade moderna. A permanência da vanguarda na contemporaneidade seria uma espécie de cultura do feriado, relaxamento de fim de semana, sem grandes efeitos sobre a sociedade moderna. Mas eventos como os de 2013 no Brasil, comuns a outras paragens, dão margem a pensar que Bell podia estar certo, e Merquior errado. O fato de Merquior não ter conhecido a rede mundial de computadores é relevante para pensar sobre o que ficou ou não datado em sua análise da cultura.

QMM: Há marcas decisivas na obra de Merquior, nos anos 80, motivadas por estudos em solo britânico. Como se sabe, o diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras doutorou-se também pela London School of Economics, orientado por Ernest Gellner.Você obteve o seu PhD nos Estados Unidos, na Brown University. Essa experiência acadêmica em território anglófono provocou alguma modificação significativa em sua visão histórica e política de Brasil? Qual ou quais?

M: Em relação especificamente ao Merquior, como já disse, foi nos EUA que o descobri de fato, através de um professor de Brown, chamado David Hirsch. Em um sentido mais amplo, aquela experiência de quatro anos foi decisiva para mim, mas tem algo de acaso. A Teoria francesa, colonizada pelo caráter abstrato do Alto Modernismo, ou seja, a teoria do pensamento que “não quer dizer nada” (como propunha Derrida na Gramatologia, e como bem nos lembra Luc Ferry em sua crítica do Pensamento 68), essa teoria que se quer puro pensamento performático e puro indício, e que se construiu em torno do maio de 68 na França, invadiu a partir dos anos 80 a academia anglófona (Roger Scruton dá um bom retrato dessa invasão em seu artigo intitulado “Confessions of a Skeptical Francophile”, que pode ser acessado no site do autor). Sendo assim, minha chance de fugir dela no Brasil e reencontrá-la nos EUA era enorme. No entanto, dei a sorte de ir para um departamento de Estudos Brasileiros e Portugueses onde alguns dos professores eram e são profundamente críticos dessa invasão, não por xenofobia, é óbvio, mas por ver nela um exercício de tolice. George Monteiro, meu orientador de doutorado, e Onésimo Almeida estão entre estes críticos, assim como David Hirsch, Tom Skidmore, e alguns outros. Com essa sorte, pude abrir os meus ouvidos e a minha cabeça para uma tradição de pensamento anglófono, na qual eu era virtualmente analfabeto, mas que intuitivamente eu buscava, e que me serviu ao mesmo tempo como antídoto contra a colonização contracultural da teoria, e como guia para uma compreensão mais organizada da nossa realidade. Essa compreensão tem dimensões históricas, culturais, filosóficas, sociais e econômicas. Uma vez imerso nessa nova realidade, o Brasil se me apareceu como um país que recusa sistematicamente a modernidade. Marcelo de Paiva Abreu, um dos grandes economistas brasileiros, formado pelo London School of Economics, costuma dizer, seguindo uma metáfora encontrada em Conrad, que o Brasil não consegue ultrapassar a linha de sombra que demarca, na vida de um indivíduo ou de uma sociedade, a separação entre a juventude e a idade adulta. O Brasil quer permanecer adolescente, e essa é a nossa tragédia, que tanto incomodava o Merquior.

QMM: Por fim, acredita que o social-liberalismo defendido por José Guilherme Merquior poderia hoje ditar as diretrizes do melhor projeto político para o Brasil?

M: Não tenho pretensões de reformador, como Merquior tinha, nem estofo para isso. Quero mesmo é escrever romances. Mas concordo, de maneira geral, com o centro da posição dele, que defendia uma sociedade economicamente liberal, sem ingenuidades de laissez faire. O liberismo de Merquior ultrapassava a social democracia à europeia, que durante um tempo parece ter sido seu ideal. Roberto Campos, profundo admirador de Merquior, gostava de citar Vaclav Havel para o seu amigo e pupilo, dizendo que a social democracia acaba sempre como o caminho mais curto para o terceiro-mundismo. Campos foi não apenas admirador, mas de certa maneira tutor de Merquior em matéria econômica (foi sob a embaixada de Campos que Merquior fez sua tese na London School com Ernest Gellner). Para Campos, e para o liberismo de Merquior, o estado se mantém forte, mas apenas como provedor de externalidades – educação básica, saúde pública, que é antes de tudo saneamento, e ainda justiça e segurança –, não mais do que isso, deixando a produção de riqueza ao empreendedorismo privado. Sob esse ponto de vista, melhor do que a social democracia (que se propõe como um avanço do socialismo) é a democracia social (que constitui um avanço do capitalismo), o que não se trata apenas de jogo semântico, mas de radical diferença de ponto de partida. Merquior era mais constitucionalista, Campos tinha horror a constitucionalice. Uma visão à la Merquior, mitigada pela crítica de Campos pode ser talvez o caminho. Para alcançar essa sociedade mais rica e mais aberta, como ambos imaginavam, vai ser preciso antes que o Brasil incorpore as melhores tradições da cultura e os avanços da ciência, deixando de lado o voluntarismo espasmódico, o delírio interpretativo, o chauvinismo cultural, o revolucionarismo inconsequente.