segunda-feira, 26 de junho de 2017

O crepúsculo de um ídolo: Foucault (e o niilismo de cátedra)

Havia realmente uma necessidade de erguer-se contra a sabedoria convencional daquela nebulosa mentalidade de Kulturkritik que, depreciando tanto a história como a liberdade, por tanto tempo assombrou, como teoria meio crua, o destino do pensamento na França contemporânea.

José Guilherme Merquior (in “O renascimento da teoria política francesa”)

O ataque contra a antiga herança cultural não conduz a uma nova forma de associação, mas somente a uma espécie de alienação. É por essa razão, parece-me, que devemos ser conservadores culturais. A alternativa é um tipo de niilismo que se esconde sob a superfície dos textos de Rorty, Said, Derrida e Foucault.

Roger Scruton (Como ser um conservador)

Foi no ano em que os militares permitiram o retorno de políticos civis à presidência da República brasileira que José Guilherme Merquior publicou Foucault. Era seu décimo sexto livro, originalmente redigido em inglês. Como quase sempre, não tardou a aparecer (já em 1985) edição traduzida. O volume dava mais uma amostra do empenho merquioriano em travar diálogo em âmbito internacional, e certificava a permanência da sua disposição combativa em avaliar as mais influentes linhas de pensamento da época.

Foucault ou o niilismo de cátedra, sem perder o caráter ensaístico – marca da linguagem de Merquior –, constitui um bloco monográfico, um tijolo feito todo da mesma matéria, que Merquior arremessava em direção às cabeças contraculturais do que ele se aprazia em denominar de humanismo irracionalista. A esse livro se seguiriam, com estreitos laços de parentesco, The Western marxism (1986), From Prague to Paris (1986) e Liberalism: old and new (1991). Note-se que os quatro títulos coincidem na língua estrangeira em que foram escritos e na unidade de concepção, quero dizer, foram planejados, ab ovo, para serem livros. E repare-se: os três primeiros comungam da intenção de refutar (respectivamente, a validade científico-acadêmica da obra foucaldiana; a validade político-filosófica do marxismo ocidental; e a validade epistemológica do estruturalismo e do pós-estruturalismo) e o último expressa, por sua vez, uma intenção de afirmar (no caso, a diversidade, a legitimidade e a superioridade da tradição e do ideário liberais. Com isso, as quatro obras formam uma tetralogia irmanada no objetivo de lançar o programa merquioriano de reedificação ideológica do século XXI.

Adotemos a conhecida demarcação cronológica de Eric Hobsbawm, para quem o século passado tem início em 1914, deflagrada a Primeira Guerra Mundial, e fim em 1991, quando se esfacela a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Gosto de destacar coincidências de datas, embora, no mais das vezes, não compreenda tais coincidências como algo muito além de encaixes de calendário, com algum poder simbólico.

Assim: a acima referida tetratologia merquioriana coincide, em termos de período de publicação, com dois eventos capitais, um na história brasileira, outro na história mundial, do “Pequeno Século XX”: respectivamente, o fim do regime civil-militar e o fim da Guerra Fria. O novo cenário cujas cortinas ambos os eventos abriram parecia requerer novo roteiro ou, pelo menos, novas coordenadas de atuação. Eis no que José Guilherme Merquior procura contribuir com aqueles quatro títulos fundamentais de sua obra. Antes de tudo, convencer que os inimigos maiores da modernidade burguesa e capitalista estavam vencidos, na experiência da realidade concreta, conquanto poderosos ainda na esfera mental: o marxismo e o pensamento (ou o antipensamento) contracultural arraigado nas universidades do Ocidente, traduzido então em psicanálise, arte de vanguarda e pós-estruturalismo. Em seguida, esclarecer a história e apresentar as credenciais do liberalismo, em que se enfeixariam as ideias de racionalismo, de ciência, de liberdade, de democracia... ideias essas precisamente desacreditadas pelo conjunto dos estudos de Michel Foucault (1926-1984), um dos pensadores mais influentes da segunda metade do século passado.

De fato, a obra foucaldiana tornou-se importante fundamento para a visão contestadora do establishment ocidental, na medida em que denunciava, em perspectiva arqueológica, toda uma multissecular opressão dos grupos sociais dominantes. Nesse entendimento, os loucos, os criminosos, os estudantes, os operários, os fiéis, os pacientes e o corpo humano eram vítimas preferenciais da estrutura racional e moral burguesa, dentre cujos atos se destacariam o de vigiar e o de punir, numa rede nem sempre sensível e ostensiva (a política e a polícia, p.ex.), mas também sutil e quase imperceptível na microfísica do poder (atuante na psiquiatria, no sistema penal e escolar, nas fábricas, nas igrejas, nos costumes etc).

Antes do livro de 1985, José Guilherme Merquior já tinha enriquecido a recepção brasileira da obra do filósofo (?) francês. Segundo Eduardo Portella, em torno de 1970, quando ainda não se dispunha, no Brasil, de “um conjunto sistemático de textos que descrev[esse] a sua obra [de Foucault] e procur[asse] situá-la nas grandes correntes do pensamento moderno”, (2008, p.9) a convite do recém-falecido editor da Tempo Brasileiro, Sérgio Paulo Rouanet e Merquior entrevistaram o autor de As palavras e as coisas, para que as perguntas e as respostas fossem publicadas em volume. E estas vieram a integrar O homem e o discurso (1971).

Diferentemente do livro de 1985, não se verifica no registro daquela entrevista nenhuma crítica incisiva, seja à abordagem, seja às conclusões da então já bem constituída obra de quem era uma das estrelas de primeira grandeza da França estruturalista. De fato, ambos os entrevistadores mostraram-se mais interessados em obter esclarecimentos relativos à trajetória percorrida e a percorrer do pensamento do entrevistado.

Aliás, por isso mesmo é bem provável que o leitor familiarizado com o texto merquioriano – erudito, assertivo, contestador – estranhe ou se decepcione com sua participação, um tanto quanto harmonizadora. Para dizer a verdade, as perguntas de Rouanet parecem ter mais consistência e despertam mais interesse tanto do entrevistado quanto do leitor do que as de Merquior. Todavia, em depoimento ouvido na ABL a 4 de outubro de 2001, Sérgio Paulo Rouanet garantiu que seu companheiro, nessa entrevista histórica,

[...] disse as coisas mais brilhantes e mais impressionantes, enquanto eu balbuciei meia dúzia de coisas ininteligíveis. Mas, depois, como coube a mim a tarefa de editing, eu arrumei tudo de uma maneira tão tendenciosa que dei a impressão de que as minhas perguntas tinham sido tão inteligentes quanto as de José Guilherme. Foi uma falsificação, porque as únicas coisas inteligentes da entrevista foram as ditas por Foucault e por José Guilherme Merquior. (2001, p.253)

Fosse como fosse, diante da “edição” dessa entrevista, em Foucault ou o niilismo de cátedra, Merquior é quase outro Merquior: para dizer o mínimo, toneladas de páginas mais lido e refletido, e por isso muito seguro dos efeitos nocivos das correntes filosóficas contraculturais em voga na época, especialmente no meio acadêmico e intelectual brasileiro, contaminado este, no fácil diagnóstico de Luiz Costa Lima, pelo “nosso culto da improvisação” e pelo estado de “dependência cultural”. (cf. 1991, p.272-273) Elemento atípico da tabela periódica nacional, José Guilherme Merquior talvez, na condição de ensaísta por natureza, tenha cometido alguns improvisos de ideias. Entretanto, ao longo de toda sua trajetória de crítico e pensador, sempre fez questão de impor sua pessoal independência cultural frente a qualquer novidade importada – é o que comprova, dentre outros títulos de sua lavra, Foucault e o niilismo de cátedra.

Quando Merquior dava a lume esse livro, Michel Foucault tinha falecido havia pouco tempo (em junho de 1984). Todos os títulos importantes do autor francês já estavam publicados. E o ensaísta brasileiro encampou o propósito admirável, hercúleo mesmo, de discutir a totalidade dessa bibliografia ativa, além de munir-se de leitura de diversos comentaristas da obra foucaldiana e outras mais numerosas referências atinentes ao debate.

Antes de avançar nesta resenha do livro em pauta, não resisto a escrever algumas linhas sobre o aguçado faro “editorial” de Merquior. Houve quem o acusasse de se valer, oportunista, dos vários assuntos em moda ao longo de sua vida – Escola de Frankfurt, estruturalismo, psicanálise... – para tornar-se um intelectual famoso. Talvez o objeto dessa acusação não seja falso. Mas isso não implica necessariamente que o ensaísta, assim procedendo, incorresse em atitude recriminável. E vejamos: se a publicação de Foucault coincide com o falecimento recente do próprio Foucault, podemos lembrar aqui também da tese Verso universo em Drummond defendida em 1972, quando o poeta itabirano completava 70 anos de idade. De volta à resenha:

No propósito de apontar as defi-ciências da obra foucaldiana, José Guilherme Merquior a enquadra, logo nos primeiras páginas, numa linhagem que denomina de “lítero-filosófica”, marcada esta por nela “alia[r-se] a brilhantes dotes literários uma teorização desbragadamente liberta de disciplina analítica”. (1985, p.12)

Tal percepção, Merquior foi extraí-la de Ernest Gellner, seu orientador no doutorado em Sociologia pela London School of Economics. Para o famoso teórico da nação e do nacionalismo, citado numerosas vezes no volume do então ex-orientando, evidencia-se nos textos daquela linhagem, prestigiosa na França, um “machismo intelectual”, na medida em que “a força de um argumento não é sustentada por sua qualidade lógica – é transmitida pela inabalável autoconfiança de quem o enuncia”. (1985, p.243)

Sendo assim, talvez possamos aproximar a imagem do pensamento de Foucault delineada no livro de Merquior ao ídolo do teatro, conforme tipologia de Francis Bacon, descrita por Bolívar Lamounier nestas palavras:

Os ídolos do teatro solapam o nosso senso crítico e nos induzem a aceitar certas ideias e teorias não por seu valor intrínseco, mas pelo pretenso saber de quem as enuncia. Essa advertência baconiana diz respeito aos riscos a que podemos ser levados por uma deferência excessiva em relação a determinados autores ou escolas de pensamento, ou por uma admiração devida menos a seu mérito intrínseco que à importância que lhes é socialmente atribuída, ou que eles mesmos se atribuem.” (2016, p.19-20)

Trata-se, está claro, de dimensões distintas – o “machismo intelectual” reside na escrita; o “ídolo do teatro”, na figura autoral), mas sem dúvida elas se tangenciam nesse caso. Seja como for, nota-se que a investida merquioriana contra o filósofo-rebelde francês é dura, desde o primeiro round. A análise campenga, conquanto estilosa e cheia de testosterona, se construiria de perspectivas, informações e interpretações históricas imprecisas ou equivocadas. Mas no peito desse brutamontes argumentativo há um coração que bate. Pois a denúncia, respaldada em Lawrence Stone, Klaus Doerner, entre outros, ao se concentrar na História da loucura, por exemplo, pontua: “Em essência, o livro de Foucault é uma argumentação passional contra aquilo que aprendemos a ver como sendo o humanitarismo do Iluminismo”, (1985, p.40) pois:

A acusação de “sadismo moralizante”, aplicada por Foucault à infância da psiquiatria, é um exemplo de melodrama ideológico. É muito bom tomar posição du côté de la folie [favorável à loucura] – só que, na ânsia de se colocarem os insanos no papel de vítimas da sociedade, pode-se facilmente esquecer que muitas vezes eles são profundamente infelizes e que o flagelo de que padeciam exigia terapia.” (1985, p.40)  

De fato, essa espécie de crítica social – de perigosa ênfase libertária – contra os paradigmas da civilização ocidental, a se autointitular porta-voz dos humilhados e ofendidos pela modernidade, pela sociedade burguesa, como muito bem destaca Merquior, vem a resultar, em última instância, num despautério irresponsável e sujeito, na prática, a ultrajantes contradições e consequências. Facilmente se pode entrever, no espírito compassivo foucaldiano, um substrato de origem cristã. Para falar mais claro: a tomada de partido em favor dos oprimidos, postura que se arrogam autores como Foucault, não parece negar a gênese religiosa que eles mesmos pretendem refutar e combater. Além disso, até aonde nos levaria a consumação do projeto libertário? Pois aí a liberdade dos mais frágeis e desamparados coexistiria com a liberdade dos mais fortes e opressores. No fim das contas, portanto, em vez de se eliminar as condicionantes da violência, esta seria exponencialmente agravada: afinal, por que revoltar-se perante um estupro coletivo de uma garota de 16 anos de idade, se os agentes do crime são “livres” para cometê-lo?

Há outras contradições importantes que José Guilherme Merquior realça. Uma das quais envolve a questão da inexistência da verdade, pauta central das críticas de pretenso caráter nietzschiano do autor de As palavras e as coisas. Quanto a isso, o ensaísta fluminense escreve: “[...] qualquer que fosse o tipo de historiografia que pretendesse fazer – a dos historiadores ou qualquer outra –, Foucault era o primeiro a afirmar que as provas estavam a seu lado.” (1985, p.222-223) Ademais: “[...] no fundo o projeto de Foucault parece atolado num gigantesco dilema epistemológico: se exprime a verdade, então todo saber é suspeito em sua pretensão de objetividade; nesse caso, porém, como pode a própria teoria dar testemunho de sua verdade?” (1985, p.227)

Em contrapartida, Merquior reconhece grandes contribuições e méritos na obra de Michel Foucault, quem, como raros humanistas da época, era “capaz de discutir a gramática de Port-Royal, os naturalistas anteriores a Darwin ou a pré-história do moderno sistema penitenciário”. (1985, p.19) E também:

Examina grande quantidade de vetustas obras poeirentas em cada um desses campos [“linguística, história natural e economia”], e novamente nega aos expoentes mais notórios seus privilégios habituais. Descartes recebe tantas menções quanto obscuros gramáticos; a história natural de Lineu e a economia de Adam Smith são tratadas em pé de igualdade com vários autores muito menos conhecidos hoje em dia. Essa atitude pouco convencional merece louvor, pois possibilita ao historiador do pensamento lançar um olhar novo sobre muitas ligações perdidas ou sepultas. (1985, p.68-69)

Esse reconhecimento de Merquior, aliás, comprova sua visão muito menos submissa ao status quo cultural do que alguns conseguem imaginar. Finalizo este post, já demasiado longo, mencionando pelo menos a polêmica havida entre o autor de As ideias e as formas e seu amigo Sergio Paulo Rouanet em torno da divergência sobre as possibilidades atualizadoras do iluminismo, dentre as quais a obra foucaldiana, no que Rouanet acreditava, mas não Merquior. Parte unilateral (infelizmente) do registro desse valioso episódio da história de nossa inteligência consta no volume, de título tão merquioriano, As razões do iluminismo (1987). Vale a pena a leitura.
  
Referências bibliográficas

LAMOUNIER, Bolívar. Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

LIMA, Luiz Costa. “Dependência cultural e estudos literários” in Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. pp.266-278.

MERQUIOR, José Guilherme. Foucault ou o niilismo de cátedra. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PORTELLA, Eduardo. “Apresentação” in FOUCAULT, Michel et alii. O homem e o discurso: a arqueologia de Michel Foucault. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.


domingo, 11 de junho de 2017

Riquezas de um pequeno baú: O estruturalismo dos pobres e outras questões (4ª parte)



A obra de Gilberto [Freyre] representa a ilustração brasileira de longe mais interessante daquela ponte ideológica entre decadentismo e modernismo [...].

Merquior (As ideias e as formas)

O fato é que, se me perguntarem, como me têm perguntado, o porquê da permanência de Casa grande & senzala, ou mesmo de Sobrados e mucambos, direi, sem exclusão de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos.


Fernando Henrique Cardoso (Pensadores que inventaram o Brasil)

Seis ensaios compõem o livro menorzinho de José Guilherme Merquior, O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975). Não obstante suas restritas dimensões (87 páginas em pequeno formato, na única edição até agora, pela Tempo Brasileiro), o volume apresenta o cardápio, pode-se dizer, completo dos principais interesses do autor. O combate ao formalismo disseminado na crítica literária, na filosofia e nas universidades responde ‘presente’ no primeiro texto, “O estruturalismo dos pobres”, e no quinto, “O idealismo do significante (a Grammatologie de Jacques Derrida)”. O ser, a função e as tarefas da literatura e das artes na sociedade contemporânea aparecem discutidos na sequência “Vanguarda, neovanguarda, antivanguarda: reabrindo o debate”, “Ut ecclesia parnassus: sobre a função social do escritor na civilização industrial” e “Malraux contra Gide”, respectivamente segundo, terceiro e quarto ensaios, nos quais Merquior afirma a conexão fundamental, mediante a mímese, sem prejuízo da autonomia da linguagem artística, entre esta e a realidade social. Por fim, a questão da modernidade e da pós-modernidade, além da atração pela área da sociologia, dividem espaço em “Gilberto Freyre além da modernidade”.

Este que é o último ensaio de O estruturalismo dos pobres e outras questões resenha Além do apenas moderno, livro então recentemente publicado do escritor pernambucano bem mais conhecido pelo título Casa grande & senzala (1933). O assunto central do trabalho gilbertiano, de acordo com Merquior, é “a evolução do mundo contemporâneo [que] se processa[ria] sob o signo de uma verdadeira revolução bio-social”. (1975, p.78) Ao captar esse processo, Gilberto Freyre (1900-1987) balizaria algumas das novidades de uma sociedade que lhe parecia afastar-se do moderno para se estabelecer como pós-moderna.

Eis aí, realmente, um tema de enorme interesse para José Guilherme Merquior, que o ainda abordará, com maior desenvolvimento, em outros textos, a exemplo dos dois primeiros do volume O fantasma romântico e outros ensaios (1980), cujos títulos são “Em busca do pós-moderno” e “O significado do pós-modernismo”. Até o início da década de 80, a ideia do advento da pós-modernidade e mesmo a do pós-modernismo entusiasmará Merquior, que tomava a primeira por uma continuidade, com as atualizações imprescindíveis, da modernidade e o segundo por uma ruptura com os paradigmas estético-ideológicos do alto modernismo europeu. Dali adiante, porém, quando o ensaísta se conscientiza de que se trata – uma e outro –, acima de tudo, de uma negação da modernidade, o ensaísta refutará essas novas direções de paradigma. De fato, em “Aranha e abelha: para uma crítica da ideologia pós-moderna”, texto de 1985 recolhido em Crítica (1990), o autor conclui: “O pós-moderno, seja arte ou teoria, significa ou um modernismo congelado ou uma vanguarda enlouquecida – mas, em ambos os casos, seu significado profundo restabelece a acusação modernista contra a época moderna.” (1990, p.403)

Fosse como fosse, o ensaio que encerra O estruturalismo dos pobres e outras questões é de um autor que pressente bons augúrios no pós-moderno e, assim, endossa a percepção de Gilberto Freyre relativa à aclimatação do fenômeno histórico em terras tupiniquins:
Mestre Gilberto não poupa nada do que, a pretexto de modernização, não só provoque “atrasos no processo de pós-modernização do nosso país”, como lese e mutile nossas virtualidades originais – virtualidades de “gente psico-socialmente e sócio-culturalmente cruzada”, e, no que cruzada, mais predisposta do que outros povos à miscigenação cultural que implica a pós-modernidade – de contribuirmos decisivamente para a implantação humanizadora do pós-moderno. O “saudosista” [que é Gilberto Freye] tem razão: para o Brasil, a pós-modernização é uma questão de memória. (1975, p.85)

Tamanho entusiasmo, do qual se sobressaem as cores verde e amarela, já não consegue – é verdade – contagiar o brasileiro de nossos dias, estes talvez nem mais propriamente consideráveis pós-modernos. De qualquer forma, naquele tempo de pleno milagre econômico do Brasil, José Guilherme Merquior julgava salutar a “contestação simultaneamente futurista e saudosista, arcaica e prospectiva” (1975, p.80) que caracterizaria a pós-modernidade, conforme o laudo sociológico gilbertiano. Essa postura dúplice, inclusive, na avaliação de Merquior, se diferenciaria frontalmente de um presunçoso, velho conhecidíssimo renovador da história humana:

Ao contrário do marxismo de ontem, a mentalidade pós-moderna parece pouco soteriológica: pouco ou nada suscetível de alardear virtudes dogmaticamente redentoras. O espírito pós-moderno não estaria preso, como ainda há pouco o socialismo revolucionário, a essa crença na idade áurea futura, nesse escatológico fim da História como drama [...] – escatologia messiânica, para a qual o “terror da História” deve ser antes ideologicamente abolido do que criticamente enfrentado. (1975, p.80)

Aspecto especialmente positivo de Além do apenas moderno, na visão de Merquior (quem se identificaria, mais tarde, como anarquista em matéria de cultura), é justamente o concílio da face do conservadorismo com a face do anarquismo em Gilberto Freyre, na medida em que o escritor pernambucano “acrescenta ou substitui ao anelo [libertário] nietzscheano de uma ‘transmutação de todos os valores’, o senso sociológico, que reconhece no passado o esboço de valores sufocados pela reificação e massificação do homem na sociedade moderna.” (1975, p.82) Esse seria ou deveria ser, conforme a resenha merquioriana do livro, o ethos da pós-modernidade, na qual se daria um forte vínculo geracional antes entre netos e avós do que entre pais e filhos. Nas palavras do autor de O estruturalismo dos pobres...:

Tradição de avô para neto, com possível curto-circuito na etapa dos pais... eis o que pede Gilberto. Até porque a superação de um certo patriarcalismo não significaria necessariamente a abolição da família como fator de cultura e educação, havendo mesmo futurólogos que veem na família, e não só, talvez, na nuclear, uma espécie de “raiz portátil” de alta valia, como fator de estabilização, para os habitantes de um universo em perpétua, rápida e tumultuária metamorfose, como é o nosso. (1975, p.81) 

A síntese neto-avô corresponderia, pois, ao consórcio anarquismo-conservadorismo. Este enlace há de causar estranhamento à maioria dos leitores. Sobretudo hoje, quando ao já gasto rótulo-xingamento neoliberal, pregado às costas de um amplo espectro ideológico, vem sendo respondido com o recauchutado comunista, cuspido na cara de outro não menos amplo espectro ideológico. Tudo, está claro, em nome de um maniqueísmo sloganesco (adjetivo que aprendi com Merquior), que se oferece como pseudo-recurso tanto à esquerda quanto à direita. Nisso, menos por mérito do autor do que por demérito de ignorância iludida longeva, a obra merquioriana também revela sua atualidade.

Mas o ensaísta carioca não endossou toda a linha de pensamento traçada particularmente em Além do apenas moderno. A postulação gilbertiana de um fracasso social e obsolescência do liberalismo, contraposto à nova solução do libertarismo, definitivamente não poderia encontrar acolhida em nosso maior pensador liberal, que o então defendia nestes termos:

O liberalismo pode ter caducado como filosofia; mas as instituições liberais [...] permanecem algo essencial à dignidade humana numa sociedade diversificada e complexa. [...] Além disso, que melhor instrumento para o libertarismo, em seu combate contra a “tirania organizacional da sociedade”, do que o pleno exercício das instituições liberais? O certo é que, quando os libertarismos elegem outros meios de luta, terminam fatalmente imitando as práticas totalitárias – e isso é o pior que pode acontecer com os libertarismos. (1975, p.83)

Merquior voltará a comentar a obra de Gilberto Freyre mais de uma vez. No artigo-homenagem publicado no Jornal do Brasil a 19 de abril de 1980 (texto coligido em As ideias e as formas), explica, quase repetindo-se, que “o conservadorismo revolucionário de Gilberto não é tradicionalismo à latina, imobilista e reativo; e sim tradição à inglesa, móvel e ativa”. (1981, p. 274) E também acerca da questão liberal pondera, tomando outra perspectiva, a de defesa desse “sociólogo substantivamente escritor”: (1981, p.272)

Sem dúvida, a indiferença de Gilberto ante a sorte da nossa democracia liberal nos últimos decênios – indiferença com a qual não concordo – é responsável por parte da pouca simpatia que lhe votam vários tenores das novas gerações. Mas essa razão me parece bastante superficial, sobretudo quando se leva em conta que mais da metade de seus críticos nesse ponto estão longe de ser eles próprios liberais provados e convictos. No fundo, o que não se perdoa a Gilberto Freyre não é sua frieza face à ordem liberal; é o seu voluntário afastamento em relação ao marxismo e posições afins – como se isso fosse, em si, algum pecado capital. (1981, p.274-275)

Conquanto generalizante, não se negará a ampla parcela de verdade nessa explicação, que houve de ecoar em trabalhos recentes como o do professor Juremir Machado da Silva, segundo o qual: “Vítima de oponentes marxistas, Freyre teve a sua sofisticada interpretação simplificada, adulterada e manipulada.” (2010, p.71)

Em 1987, José Guilherme Merquior publicará também “Gilberto e depois”, originalmente redigido em espanhol, e que virá a figurar, traduzido com revisão do autor, na antologia Crítica. Nesse ensaio, o assunto da pós-modernidade reaparece, e, ademais, se reconhece o sociólogo anarco-conservador o introdutor, no Brasil, do “tema do pós-moderno, em sentido estritamente antipuritano”, (1990, p.347) isto é, numa linguagem própria de um “humanista brincalhão, que terminou seus dias como um sábio algo impudico”. (1990, p.348)

Gilberto Freyre conhecia tanto a pessoa quanto a obra de Merquior, e parecia admirar igualmente a ambas. Notório estudioso de Joaquim Nabuco, o autor de Ordem e progresso lisonjeou o “magistral crítico literário e de ideias que é o Professor José Guilherme Merquior”, (2010, p.78) ao mencioná-lo em artigo sobre o célebre abolicionista.

Embora houvesse divergências entre os dois não apenas acerca de Nabuco – Gilberto chegou a noticiar, todo orgulhoso de si, que Merquior havia acatado a uma correção sobre o tema –, o trecho seguinte, sem as referências, gera dúvidas quanto a por qual deles – se pelo autor de Casa grande & senzala, se pelo autor de O véu e a máscara – teria sido escrito:

Porque a tendência, em certos meios brasileiros, vem sendo para diplomarem-se mestres, bacharéis, doutores, por caridade: fechando-se os olhos à sua ignorância. Tendo-se pena dos coitadinhos que querem diplomas sem estudos. Por conseguinte: considerando-se uns tiranos, uns arbitrários, uns desumanos, os professores que exigem dos alunos um mínimo de conhecimento. Um mínimo de honestidade intelectual.

Referências bibliográficas:

FREYRE, Gilberto. Em torno de Joaquim Nabuco. São Paulo: A Girafa, 2010.

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.


SILVA, Juremir Machado da. “Gilberto Freyre, o clássico injustiçado”. ALCEU. v.10, n.20, pp-70-81, jan-jun de 2010. PUC-RIO.