quarta-feira, 26 de julho de 2017

O social-liberalismo de José Guilherme Merquior

A voga do neoliberalismo nos anos 80, sendo seu mentor teórico maior o economista austríaco Friedrich Hayek e seus mais ilustres praticantes o presidente norte-americano Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, parece ter sido um dos grandes estímulos para que a confusão entre uma parte, o ideário neoliberal, e o todo, a tradição longeva e multifacetada do liberalismo, prosperasse e permanecesse durante tão longo tempo, até hoje.

Talvez por isso, além do fato de ter contribuído na campanha eleitoral à presidência e se envolvido com o governo de Fernando Collor de Mello, vira e mexe se considere José Guilherme Merquior um entusiasta garoto-propaganda do neoliberalismo. Com a palavra, o próprio autor de O argumento liberal:

O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário para a criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue a seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito. (1983, p.94-95)

Uma das primeiras páginas de As ideias e as formas também distingue a espécie de liberalismo em nome da qual o diplomata e membro da ABL militou na última década de sua vida:

Qualquer que seja o sentido da voga neoliberal em outros quadrantes, entre nós [brasileiros] não pode haver liberalismo autêntico que não seja, essencialmente, um social-liberalismo. E isso já impõe a serena ultrapassagem da antiga querela contra o estado. Num país com as nossas carências de capitalização e de serviços sociais, o antiestatismo sistemático não tem como ser um combate liberal, pelo simples motivo de que sua aplicação atrofiaria ou imobilizaria no Estado um dos princípios, senão o principal instrumento de criação efetiva de liberdades – de oportunidades de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população. A crítica “liberal” que não tem olhos de ver isso não é crítica – é preconceito; não visa a promover a liberdade – visa a preservar o privilégio. (1981, p.28-29)

Não terá passado despercebido ao leitor que as duas passagens acima revelam um posicionamento que chega a surpreender tamanha sua atualidade na conjuntura nacional. De fato, se esse social-liberalismo, na verdade, não se viu em quase nada correspondido na gestão collorida, pode-se ao menos verificá-lo como orientação geral dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Afinal, pontuo, sem grandes pretensões, que: a) o enxugamento da máquina pública e o equilíbrio fiscal do presidente tucano consistiriam na tentativa de reduzir a dimensão do Estado, conjugada com um assistencialismo que se efetivou, p. ex., no projeto Bolsa Escola e no assentamento de número razoável de trabalhadores rurais; b) o presidente petista, por sua vez, ampliou e consolidou a política assistencialista, conquanto voltasse a hipertrofiar a máquina estatal; c) fosse como fosse, ambos os administradores federais mantiveram e até mesmo fomentaram a economia brasileira no eixo do mercado capitalista globalizado.

Essa mesma articulação, que procura resultar no equilíbrio entre um Estado de bem-estar social, de matriz keynesiana, e condições as mais favoráveis possível à iniciativa privada, agravou a confusão conceitual. Para Ricardo Antunes, autor de A desertificação neoliberal no Brasil (2005; a 1ª edição desse livro é de 2004), o social-liberalismo não passaria de um “eufemismo designado aos socialistas e social-democratas que praticam o neoliberalismo”. (2005, p.165) Opinião idêntica à que lemos em O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal (2013), de Rodrigo Castelo, segundo o qual o social-liberalismo consistiria numa “variante ideológica” do neoliberalismo. (2013, p.376)

Saliente-se que ambos os autores citados acima declaram-se marxistas. Nesse mesmo posicionamento político-intelectual, Gilberto Felisberto Vasconcellos rotulou, com ironia, o pensamento merquioriano de “neoliberalismo iluminista”, (2004, p.29) no livro O Brazil no prego (2004).

Talvez devamos reconhecer que muitos empreendimentos social-liberais, seja no Brasil, seja no mundo, avancem, de fato, para dentro das fronteiras do neoliberalismo. Isso não implica, todavia, que se trate necessariamente do disfarce de um lobo (o neoliberalismo) sob pele de cordeiro (o socialismo). É que a própria teoria do social-liberalismo prevê uma margem de manobra que permite ao poder público, em vista das conjunturas diversas, pender seja mais para este lado, seja mais para aquele, seja mais para um outro.

O filósofo político italiano Norberto Bobbio, notório defensor do social-liberalismo, tinha consciência dessa mobilidade e o que dela decorria: “Deve-se saber quanto de liberalismo e quanto de socialismo, na prática, pode-se pactuar em uma determinada situação. A dificuldade está, justamente, em determinar a dosagem.” (em entrevista concedida em 1994 a Luiz Carlos Bresser-Pereira; link nas referências bibliográficas)

A veemência, muito mais retórica e sloganesca do que propriamente crítica, com que os marxistas atacam o social-liberalismo parece advir do que José Guilherme Merquior os acusava, por sua vez, de índole dogmática e autoritária. Nesse caso, a teoria política transmutou-se em fôrma, na qual a realidade, à revelia de toda e qualquer contingência, deve ser encaixada, ainda que a golpes de foice e martelo.

O pensamento merquioriano, de índole iluminista (mas será mesmo que também neoliberal?), se valeu do que muito bem definiu o célebre jurista Miguel Reale – de uma racionalidade concreta. Quer dizer, Merquior não se aferrou ou procurou não se aferrar a uma ideologia, engessada por princípios de ordem idealista. O intelectual, que se lançou ao público como teórico e crítico literário ligado a certa tradição marxista nos anos 60, não se permitiu fingir desconhecer os insucessos econômicos, os cabrestos culturais e as atrocidades sociais que todos os exemplos socialistas-comunistas reais (União Soviética, China, Camboja, Cuba, Romênia etc, etc, etc) apresentaram ao longo do século XX. Contudo, a cartilha do neoliberalismo não lhe parecia ser a via de solução para países como o Brasil, povoado de discrepâncias sócio-econômicas.

Um socialista-comunista pensa, no limite, que o mundo deve tornar-se inteiro socialista-comunista. Um neoliberal, que o mundo deve tornar-se inteiro neoliberal. O social-liberalismo pressupõe um leque maior de opções e adaptações por que cada contexto nacional ou mesmo regional clama. Tanto a ambição de remodelar a natureza humana, como o quer o socialismo-comunismo, quanto a permissividade concedida à natureza humana pelo neoliberalismo, seriam caminhos de contornos antidemocráticos.

O social-liberal José Guilherme Merquior sabia que não há nem pode haver soluções simplistas e apriorísticas neste mundo tão complexo e contraditório.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 2005.

CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.


VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Brazil no prego. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

Link da entrevista de Norberto Bobbio: http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/NorbertoBobbio.htm

quarta-feira, 19 de julho de 2017

"Aula de francês": poema de Carlos Drummond de Andrade


Cette Hélène qui trouble et l’Europe et l’Asie,
mas o professor é distraído,
não vê que a classe inteira se aliena
das severas belezas de Racine.
Cochicham, trocam bilhetes e risadas.
Este desenha a eterna moça nua
que em algum país existe, e nunca viu.
Outro some debaixo da carteira.
Os bárbaros. Será que vale a pena
ofertar o sublime a estes selvagens?

O Professor Arduíno Bolivar
fecha a cara, abre o livro.
Ele não os despreza. Ama-os até.
Podem fazer o que quiserem.
Ele navega só, em mar antigo,
a doce navegação de estar sozinho.
Tine a campainha.
Acabou a viagem, no fragor
de carteiras e pés.
O professor regressa ao rígido
sistema métrico decimal das ruas de Belo Horizonte.

(do livro Boitempo III)

terça-feira, 11 de julho de 2017

Ivan Junqueira: sobre três livros de Merquior

O jornalista, crítico literário, poeta e tradutor carioca Ivan Junqueira, falecido em 2014 aos quase 80 anos de idade, considerava José Guilherme Merquior um dos maiores analistas de literatura no Brasil. Sua apreciação altamente positiva sobre a obra merquioriana está registrada em, pelo menos, três prefácios: à segunda edição de Razão do poema (1996) e de A astúcia da mímese (1997) e à terceira edição de De Anchieta a Euclides (1996), todas pela editora Topbooks. O material foi coligido em O fio de Dédalo (1998), reunião de ensaios do célebre tradutor de Baudelaire e T. S. Eliot, sob o título “A astúcia de Merquior”, que consta na sessão “Do ensaísmo e da crítica”.

A sequência principia com o prefácio a De Anchieta a Euclides (primeiramente publicado em 1977). Para Ivan Junqueira, essa “breve [e parcial] história da literatura brasileira” contribui especialmente pelo fato de que, nela,

Merquior, mais do que qualquer outro historiador de nossas letras, faz com que a literatura brasileira dialogue não apenas com as literaturas de outras línguas, mas também com o substrato das ideias que as informam e iluminam ao longo das etapas de sua evolução estética e doutrinária. (1998, p.214)

Com isso, o autor falecido em 1991 teria atendido plenamente ao preceito do “senso da forma” que ele mesmo estabelece em “Ao leitor”, texto introdutório do livro. Mas a obediência merquioriana aos outros dois preceitos, o da “seletividade” e da “acessibilidade”, também recebe aplauso de Ivan Junqueira. Pois este, frente à tentação de abordar o maior número possível de escritores brasileiros do período entre o início de nossa colonização e o início do século XX, assim avalia o reduzido grupo que encontramos em De Anchieta a Euclides: “E para que mais, quando se sabe que, até o fim dos Oitocentos, nossa literatura está vincada de mediocridade ou de embriões que, na imensa maioria das vezes, não chegam a vingar?” (1998, p.215)

O também imortal da ABL, antigo ocupante da cadeira 37, chega a comparar a linguagem de Merquior, empregada numa obra, para todos os efeitos, didática, com a de outros historiadores da literatura, supostamente menos acessíveis ao grande público. A esse propósito, evoca os nomes de Sílvio Romero e José Veríssimo. Não me parece, verdade seja dita, um bom parâmetro. Trata-se de dois críticos do século XIX, cuja concepção de crítica e de escrita não permite a devida comparação. Ivan Junqueira convence mais no cotejo entre Merquior e – aí sim – comentaristas contemporâneos ou mais próximos no tempo do autor de O véu e a máscara, dentre os quais cita Afrânio Coutinho, Astrojildo Pereira, Dirce Cortes Riedel. Pelo menos no tocante a Machado de Assis,

[...] Merquior os supera a todos. Supera-os, de início, quando observa que “a grandeza de Machado de Assis foi ter posto os instrumentos forjados no primeiro Oitocentos [...] a serviço do aprofundamento filosófico de nossa visão poética, em sintonia com a vocação mais íntima de toda a literatura do Ocidente”. E excede-os, ao fim e ao cabo, quando decifra o enigma talvez mais fundo do gênio machadiano: “Deste modo, Machado de Assis, que desprezou até o fim a literatura localista e folclórica, que universalizou mais que ninguém a nossa arte literária, permaneceu fiel a uma componente medular da alma brasileira”. (1998, p.217-218)

Sobre o livro de estreia de Merquior, Razão do poema (1965), conquanto passados mais de 30 anos até a reedição pela Topbooks, o resenhista verifica no volume “uma surpreendente aura de louçania exegética, de atualidade crítico-literária e de coerência estético-doutrinária”. (1998, p.218) Também sublinha os “estreitos vínculos com o pensamento marxista” (1998, p.219) de um jovem autor que, duas décadas depois, publicaria O marxismo ocidental, deste autodecretando-se figadal adversário. Considerado Razão do poema “um dos mais altos momentos a que chegou a crítica literária entre nós”, (1998, p.221) o livro ainda exemplificaria um ensaísmo marcado por “invejável robustez literária, essa mesma robustez que vimos no passado em Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Augusto Meyer ou Sérgio Buarque de Holanda, e que hoje vemos em Wilson Martins, Benedito Nunes, José Paulo Paes, Davi Arrigucci e nesse jovem crítico Antônio Carlos Secchin”. (1998, p.220-221)

É curiosa a menção a Wilson Martins em torno da linguagem merquioriana. Isso porque, no segundo volume de A crítica literária no Brasil, Wilson Martins lançou farpinhas como esta, justamente alvejando Razão do poema: “Escrevendo melhor ou com mais clareza do que José Guilherme Merquior [...]” (1983, p.713) Adelante:   

Por fim, acerca do livro que inspirou o título a essa série de resenhas, Junqueira observa que A astúcia da mímese (1972) esclarece a contento a reflexão em torno da mímese na contemporaneidade (opinião, diga-se de passagem, não compartilhada por Luiz Costa Lima, o teórico brasileiro que mais tem se debruçado sobre o assunto). Também elogia a análise de poemas dos diversos autores, estrangeiros (como Rainer Maria Rilke) e nacionais, especialmente o mais longo ensaio sobre João Cabral de Melo Neto, intitulado “Nuvem civil sonhada”. Todavia, Ivan Junqueira não cala uma ressalva contundente:

A astúcia de Merquior só tropeça quando, no final do volume, de volta a mobilizar todo o seu opulento aparato para avalizar a qualidade dos versos de Capinan e de Francisco Alvim. Concordamos com Merquior quando diz que ambos fogem “a essa discurseira, a esse lamentável alto-falante de coisas óbvias, de clichês demagógicos e de platitudes esquerdeiras” que deitaram a perder considerável parte da messe de nossa poesia de participação social. Mas o exemplário que nos oferece o autor no afã de atestar que Capinan e Alvim se alçaram um pouco além dessa aluvião palavrosa não passa, na maioria das vezes, de um acervo de banalidades, de uma poesia que, transcorrida apenas uma década, envelheceu de forma irremediável. (1998, p.226)

Vinte anos depois de publicado O fio de Dédalo, quem estaria com a razão: Ivan Junqueira ou José Guilherme Merquior? Fica a pergunta.

Referências bibliográficas

JUNQUEIRA, Ivan. “A astúcia de Merquior” in O fio de Dédalo: ensaios. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1998. pp.214-226.


MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil: 1940-1981. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2º vol.