sábado, 29 de março de 2014

Um leitor ideal de poesia

São esses os termos com que José Guilherme Merquior se refere, no primeiro ensaio de seu primeiro livro, Razão do poema, a Augusto Meyer, em dedicatória, sinalizando assim o que considerava a abordagem, a metodologia as mais adequadas para o exercício da crítica literária. Além disso, identifica Merquior em nota ao mesmo texto, “Uma canção de Cardozo”: “Augusto Meyer é, como pesquisador e degustador de poesia, a síntese perfeita de informação com sensibilidade, da ‘escavação’ mais segura com a leitura mais sutil, reveladora e penetrante.” (p.28-29)

Não foi sozinho que o autor de O véu e a máscara incensou Meyer. Este, nas palavras algo semelhantes de Antonio Candido, “é e ficará, em nossa história literária, um dos mais altos críticos, um dos espíritos mais penetrantes e fecundos”. Rachel de Queiroz reconhecia, no mesmo diapasão: “Na minha opinião, o mais completo homem de letras do Brasil é Augusto Meyer”.[i] Tendo iniciado suas publicações no gênero ensaístico na década de 1920, e falecido em 1970, os elogios o colocavam em pé de igualdade ou superioridade em relação a contemporâneos da estirpe de um Álvaro Lins (1912-1970), um Alceu Amoroso Lima (1893-1983), um Afrânio Coutinho (1911-2000), um Mário Faustino (1930-1962).

Por uma daquelas coincidências curiosas nas quais o absurdo da vida, às vezes, se deixa cair, o último livro de Meyer, A forma secreta, foi publicado no mesmo ano de Razão do poema (1965). Talvez, frente a tal fato, nos acometesse a tentação da pressa e da simplificação de apontar o pensador carioca como herdeiro do crítico gaúcho. Todavia, conquanto haja efetivamente afinidades em termos de concepção poética entre os dois nomes, cada um deles perseguiu trajetória intelectual bem distinta. Para nos limitarmos ao mais elementar, nem Merquior arriscou a publicação de versos, como o tinha feito Meyer com certo reconhecimento, nem Meyer expandiu, em sua obra, a área de interesse para além da literatura como o faria Merquior com admirável domínio.


Seja como for, o ensaísmo merquioriano, em índole avessa à especialização acadêmica sobre todas as coisas, que começava a direcionar a maneira de se criticar a literatura na época, parece resgatar ou dar continuidade ao que havia de literariamente mais livre na prosa crítica de Augusto Meyer. Esse aspecto, assinalado por quem se ocupou da obra do poeta e crítico gaúcho, foi mais recentemente observado em artigo da revista O eixo e a roda (2010), onde Nelson Ricardo Guedes dos Reis comenta especialmente a respeito de A forma secreta: “Na maioria dos textos que compõem o livro, há uma quase eliminação dos limites institucionalmente instaurados entre literatura e crítica”, textos esses que transitariam, segundo o articulista, entre a “crítica-ensaio” e a “crítica-conto”. (p.141)

Não se verifica tal ruptura de gêneros em Camões o bruxo e outros estudos, volume publicado em 1958, consultado e propagandeado elogiosamente em Razão do poema e Formalismo e tradição moderna. Assumimos não sermos profundo conhecedor da obra crítica do autor gaúcho. É que, com base naquele único livro seu, iremos aqui levantar alguns aspectos que nos parece poderem esclarecer o entusiasmo de Merquior com a metodologia analítica de Meyer. Também não dispomos de tempo suficiente, em meio às tarefas da docência, para sanarmos essa lacuna de nosso repertório. Contudo, acreditamos que os ensaios contidos no pequeno volume podem propiciar, a contento, o alcance do modesto objetivo aqui traçado.
Augusto Meyer integra uma geração de críticos, nascida entre fins do século XIX e princípio do XX, que teve de lidar, por um lado, com os resquícios da crítica da segunda metade do oitocentos, legado de Sílvio Romero e de José Veríssimo, resquícios esses traduzidos na perspectiva biográfico-psicológica e na historiografia literária de base positivista e nacionalista. Por outro lado, com o modernismo que a Semana de 1922 irradiaria, demarcando, no âmbito literário, o efetivo começo do novecentos na literatura brasileira. Nessa geração podemos enquadrar, além do próprio Meyer, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Tasso da Silveira, Mário de Andrade (não apenas poeta modernista, mas também crítico do modernismo) e outros.

Na condição dupla de Mário de Andrade (assim como Milliet), o Augusto Meyer poeta modernista certamente colaborou para o acolhimento e a compreensão que o Augusto Meyer crítico dispensou ao movimento de renovação das letras nacionais. Entretanto, o crítico operou independentemente do poeta e, mais do que o poeta, contribuiu, ao reforçar o coro dos que procuravam se pautar na objetividade do primado textual. Por aquela altura dos anos 40 e 50, pensava-se em estrutura (antes do estruturalismo, propriamente; sem, portanto, ter o mesmo sentido que virá a ter e se disseminar na década de 1960), a exemplo do livro fundamental de Hugo Friedrich, publicado dois anos antes de Camões o bruxo e outros estudos. Mencionar Friedrich, autor sempre enaltecido por Merquior, vem mesmo a propósito. Pois a estilística germânica, que o autor de A estrutura da lírica moderna, juntamente com Erich Auerbach, Leo Spitzer e Ernst Robert Curtius, entre outros, constituíram, abriu um veio de análise pelo qual Augusto Meyer enveredou para ler a poesia camoniana, atento aos efeitos expressivos da sintaxe, do léxico, do ritmo, da rima, dos topoi quinhentistas, assim como, talvez sua contribuição maior, redirecionar o foco da recepção machadiana brasileira para além ou fora da tradicionalmente alardeada linguagem castiça.

O contexto nacional de publicação de Camões o bruxo e outros estudos está traçado, sumariamente, na passagem abaixo de Wilson Martins, em A crítica literária no Brasil:

Mas, em 1956, a Estilística, sob as formas mais variadas, estava sendo intensamente praticada [...]; lembrem-se, por exemplo, publicados nesse ano, Crítica de estilos, por Aires da Mata Machado Filho; A análise matemática do estilo, [...] por Tulo Hostílio Montenegro; Preto & branco, de Augusto Meyer [etc.]. (p.642)

Fosse como fosse, questões centrais para a estilística – a revalidação do interesse pela mímesis e o reconhecimento da mescla de estilos na condição de marco da modernização literária, como em Auerbach; o enfoque estrutural, como em H. Friedrich[ii] – não ocupam lugar menos importante no pensamento crítico de José Guilherme Merquior. No tocante à mescla estilística, nada menos é do que um aspecto central que o pensador carioca ilumina na poesia do mais famoso itabirano, em Verso universo em Drummond, tese de doutoramento defendida em junho de 1972. Em título de livro também de 72, consagrara a expressão de sabor hegeliano “astúcia da mímese”, com a qual queria destacar a presença da realidade social no texto literário, de forma autônoma em relação à mesma realidade social, bem como, em Formalismo e tradição moderna, de 1974 (livro, aliás, dedicado a Meyer), distinguia: “[...] o objeto da nossa firme condenação não é, de modo nenhum, a análise estrutural, e sim a sua perversão formalista. Conforme assinala Cl. Lévi-Strauss, o iniciador da extensão extralinguística do método estrutural, estruturalismo não é formalismo.” (p.235. grifos do autor)

Consciência correspondente e similar, no seu próprio contexto, apresenta Meyer, nestes termos:

Melhor ainda é a observação de Goethe: “A essência traz consigo a forma e não existe forma sem essência.” Por isso mesmo, parece arbitrária qualquer tentativa de redução da obra poética a uma dessas vertentes e seus declives: ou a pura “mensagem”, o ideário, o tema, as intenções emotivas, a experiência do autor e suas confissões veladas; ou o simples documento literário e análise estilística do mesmo, desligado de suas raízes. (p.42)

Haveria defesa mais merquioriana? A plataforma crítica da análise que se obriga a não desfazer o enlace entre as formas e as essências, ou as ideias, como preferiria dizer o autor de A natureza do processo, está toda naquelas linhas transcritas acima do primeiro ensaio do livro de Meyer, que ainda aí ensina uma das melhores lições de estilística:

[...] a sugestão rítmica depende do significado e não pode ser desvinculada arbitrariamente da sugestão poética, assim como os fonemas em si, aproveitados na teia de assonâncias e aliterações, não possuem nenhuma virtude melódica própria, servindo apenas de reforço à intenção do poeta. (p.17)

Em outras palavras, a faceta formal do poema, no caso especialmente em sua dimensão de significante, não se divorcia da realidade que, poeticamente, se autonomiza na dimensão do significado. Compreende-se melhor, desse modo, porque, no ensaio panfletário “O estruturalismo dos pobres”, publicado no Jornal do Brasil, em 1974, Merquior desqualifica a moda estruturalista nos cursos de Letras do País, insatisfeito sempre com a generalizada “indigência de análises genuinamente imanentes” realizadas pelos universitários, para recobrar, em certo parágrafo, que “‘Tia’ Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, era bem mais sensível, bem mais escrupulosa, em face do discurso poético”. (p.9-10)

Falando tanto em ideias quanto em formas, é incrível como a linguagem do crítico gaúcho (num mundo às avessas), por vezes, lembra a linguagem do crítico carioca. Nesta passagem, por exemplo, referente às rimas em “ando” de certa estrofe camoniana, lemos: “Só aos pobres olhos de um Parnasiano pareceriam pobres estas rimas tão simples: elas estão impregnadas de sentido e ressonância emotiva, e da sua pobreza quase nua consegue o Poeta extrair o máximo de intensidade encantatória”. (p.19) Decerto José Guilherme Merquior assinaria, sem pestanejar, essas duas frases, elegantemente construídas com adjetivação, sintaxe e ironia muito suas.

Um dos estudos do livro de Meyer se dedica a um dos topoi analisados por Curtius em Literatura europeia e Idade Média latina, a propósito obra traduzida no Brasil em 1957. Referimo-nos a “o mundo às avessas”, antevisão poética de ocorrências que transtornariam a ordem natural ou comum das coisas. Conforme instrui o próprio pesquisador alemão e repassa Meyer, esse topos, de larga tradição clássica, frequentemente se associava a temas de frustração amorosa ou do que se denomina de florebat olim, isto é, a disposição em enaltecer o passado, em vista dos desconcertos do presente. Assim, poderíamos pensar num eu-lírico que, desgostoso da morte de sua amada ou de sua infidelidade, assevere que, a partir de então, o sol nunca mais vai ressurgir, sempre será inverno, as estrelas cairão dos ceús etc. Augusto Meyer adota a abordagem tópica como chave de leitura de poemas da literatura gaúcha, em Camões o bruxo e outros estudos. José Guilherme Merquior verifica, no ensaio de abertura de Razão poema, aquele mesmo topos no poema de Joaquim Cardozo analisado,  sublinhando em nota que Meyer teria corrigido Curtius, ao enxergar mais insistente plasmação, na tradição literária, do “mundo às avessas” na temática amorosa do que na de florebat olim, o que valeria o comentário do jovem autor: “[...] é uma verdadeira demonstração de força em matéria do que pode produzir a erudição literária no Brasil, no terreno da tópica ou em qualquer outro.” (p.28) Mas também em outro ensaio, de Formalismo e tradição moderna, Merquior tanto instrumentaliza o mesmo topos para interpretar um soneto de Camões quanto insinua, mais uma vez em nota, que “a agudeza pioneira de Camões o bruxo [e outros estudos] no terreno da estilística do estrato fônico em Camões” (p.106) o estimulara na interpretação que ali desenvolvia.

Cumpre assinalar igualmente a universalidade que norteou a estilística germânica, orientação manifesta, sobretudo, na atração pela literatura românica. Os alemães Wilhelm Storck e Carolina Michäelis, os maiores estudiosos no século XIX da poesia camoniana e quinhentista portuguesa, certamente são os antepassados intelectuais de Erich Auerbach, especialista em Dante Alighieri e Charles Baudelaire; de Hugo Friedrich, leitor perspicaz de versos franceses e espanhóis; de Leo Spitzer, autor de análise exemplar de um poema de São João da Cruz; de Ernst Curtius, erudito de toda uma literatura europeia. Augusto Meyer não se difere, embora inverta os papéis. Falante do alemão, pôde ler esses críticos no original, sentindo-se à vontade para interpretar poemas escritos nesse idioma, em francês, com a mesma desenvoltura e minúcia que tratava de textos da literatura gaúcha. Prescinde repetir menção ao empenho de José Guilherme Merquior nesse mesmo sentido. Seu livro de estreia basta para atestá-lo (Bocage, Daniel Arnaut, E.T.A. Hoffmann, Petrarca...). Todavia, acrescentemos a comparação que, em De Praga a Paris (1986), realiza entre Roland Barthes e Walter Benjamim, no propósito de salientar a superioridade deste sobre aquele:

Em primeiro lugar, apenas Benjamin foi um legítimo crítico ocidental, quero dizer, uma mente capaz de lidar com a literatura moderna de um ponto de vista cosmopolita. Enquanto a esfera de ação de Benjamin incluía ampla gama de autores franceses e russos, além da, é claro, literatura alemã, a de Barthes era claramente menos abrangente. Seu corpus crítico – Racine, Voltaire e Sade; Chateaubriand, Balzac, Stendhal, Michelet; Baudelaire e Flaubert; Proust e Gide; Sartre e Camus; Robbe-Grillet e Sollers – revela dois hiatos fundamentais. Um, a poesia (escreveu sobre Baudelaire, mas não sobre seus poemas; sobre Racine, mas não sobre seus versos). [...] O outro hiato é a literatura estrangeira, com a exceção única de Brecht. [...] Barthes era profundamente provinciano no que diz respeito ao seu alcance intelectual. (p.214)

Augusto Meyer, apenas em seu livro publicado três anos após sua análise Le bateau ivre: análise e interpretação, contempla a poesia italiana, espanhola, francesa, alemã, na autoridade de quem domina, com erudição de filólogo, tais idiomas. Como crítico, Meyer participava, mais à frente, do que ele mesmo, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, pronunciado 19 de abril de 1961, constatava:

Começou a afirmar-se aos poucos o verdadeiro espírito universalista, que é a essência do humanismo. Por enquanto, parece manifestar-se apenas com a ingenuidade das contradições, como proliferação de nacionalismos destemperados. Não importa; é a conquista para melhor.

Esperamos que o exposto acima, não obstante as deficiências evidentes de nosso texto, tenha contribuído no esclarecimento do título que Merquior conferiu a Augusto Meyer, este “leitor ideal de poesia”.


Referências bibliográficas:

FRIEDRICH, Hugo. Die Struktur der modernen Lyrik: von der Mitte des neunzehnten bis zur Mitte des zwanzigsten Jahrhunderts. Hamburg: Rowholt, 2006.

MARTINS, Wilson. Crítica literária no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. vol.II.

MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris: o surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. São Paulo: Forense, 1974.

______. “O estruturalismo dos pobres” in: O estruturalismo dos pobres e outros ensaios. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.7-14.

______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
MEYER, Augusto. Camões o Bruxo e outros estudos. Rio de Janeiro, São Jose: 1958.

______. “Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras”. Disponível em: <<HTTP://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12269&sid=175>>

REIS, Nelson Ricardo Guedes dos. “Augusto Meyer: o discurso poético na crítica literária” in: O eixo e a roda. vol.10, no. 19, Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2010. pp.135-152.




[i] Excertos citados da orelha de Camões o bruxo e outros estudos, na edição da Livraria São José (1958).
[ii] Assim define Friedrich define estrutura, para os fins analíticos de seu livro mais conhecido: “[...] die Gesamtgestalt einer Gruppe zahlreicher lyrischer Dichtungen, die einander keineswegs beeinflusst zu haben brauchen und deren einzelne Eigentümlichkeiten dennoch zusammenstimmen und auseinander erklärt werden könnnen, jedenfalls so häufig und in gleicher Lagerung vorkommen, dass sie sich nicht als Zufälle ansehen lassenn.“ (p.12) Em minha tradução meia boca: “A forma global de um conjunto de poemas líricos numerosos que, em caso nenhum, precisam ter influenciado uns aos outros e dos quais determinadas particularidades, todavia, conjugam-se e podem ser esclarecidas separadamente. De todo modo, sucede muito frequentemente e na mesma medida que esses poemas não permitem serem compreendidos como resultados do acaso.” O que revela a atenção de Hugo Friedrich à tensão, tão reclamada por Merquior, no texto poético entre autonomia formal e inserção histórica. 

terça-feira, 11 de março de 2014

O discurso de posse na ABL


Há exatos 32 anos, elegia-se José Guilherme Merquior para ocupar a cadeira 36 da prestigiada Academia Brasileira de Letras. A averiguação pelo candidato das possibilidades para ingresso na casa que Machado de Assis, Joaquim Nabuco e outros nomes ilustres da cultura do Brasil fundaram em 1897, está noticiada em “O fenômeno Merquior”, às páginas 485 e 486. Segundo José Mario Pereira, o autor de A astúcia da mímese concorreu com Arnaldo Niskier e Geir Campos, tendo recebido 22 votos, o segundo 15 e o terceiro apenas um.

O discurso de posse, pronunciado um ano após a eleição (11 de março de 1983), dos mais belos que se ouviram nas dependências da ABL e, indubitavelmente, digno de constar em qualquer antologia merquioriana, será vítima aqui de alguns comentários nossos. Antes de tudo, cumpre observar a índole desse gênero textual, marcadamente laudatório. Sabe-se que o protocolo recomenda ao acadêmico empossar, proferindo palavras em louvor ao patrono e aos antecessores da cadeira na qual passará a se sentar, sendo ainda de bom deter-se no último ocupante. O discurso de Merquior, portanto, precisou considerar a trajetória biográfico-intelectual de Teófilo Dias (o patrono), Afonso Celso, Clementino Fraga e, mais longamente, a de Paulo Carneiro, diplomata a quem o novo imortal da ABL chegou a conhecer com grande proximidade e vinha a suceder na instituição. Cumprindo a risca o ritual, José Guilherme Merquior discorre sobre as contribuições dessas personalidades das letras e das ciências nacionais, mas sem cometer traição, em qualquer nível, referentemente às próprias convicções e concepções. Esse fato, que faz jus à postura de polemista do orador, advém da intransigência da sinceridade a suplantar o cariz, a princípio, forçosamente enaltecedor da ocasião. Em suma, estamos lendo, no discurso em questão, as ideias autênticas de um autor não constrangido, que se sente à vontade para tratar de assuntos centrais de seu pensamento crítico, como a dialética entre nacionalismo e universalismo (ou brasilidade e humanidade); a defesa do comprometimento com a busca do conhecimento objetivo, porém com a precaução de evitar converter a ciência em reduto de dogmas; e a restauração, de sabor neo-iluminista, do sentido de humanismo, indevidamente apropriado pelo que acusava de “delírio irracionalista” (o pós-estruturalismo et caterva).

É interessante sublinhar como as circunstâncias do local parecem ter estimulado a faceta mais poética, mais lírica da linguagem merquioriana nesse discurso, o que justificaria a constatação inicial e final de uma “secreta e harmônica magia” a entrelaçar a vida e a obra dos ocupantes da cadeira 36, sob o signo da brasilidade. Esse termo, a propósito, (destaca Merquior) tinha sido cunhado por Afonso Celso, célebre autor de Por que me ufano de meu país (o título, aliás, consagraria outro termo, ufanismo). Para o grande crítico literário, sempre disposto a encarnar opiniões controversas, o “breviário patriótico” do fundador da sua cadeira, objeto da ridicularização de muitos, fazia-se “empenho de valorização do nosso passado e da nossa raça frente à descrença na viabilidade do Brasil e nas virtualidades de seu povo”, indo mesmo a “aproximar esse ufanismo de 1900 do brasileirismo de 22”. Todavia, o orador tinha o cuidado em frisar que sua compreensão de nacionalismo, e a de Celso, não o confunde com xenofobia, da mesma forma que, pelo lado oposto, o exemplo do diplomata Paulo Carneiro e do poeta Murilo Mendes, ensinava que internacionalismo não deveria ser “um cosmopolitismo oco e vazio”, nem se deveria abraçar uma “internacionalidade sem raízes” – preocupação fundamental de José Guilherme Merquior desde textos do início da década de 60.

O esforço mais curioso no discurso envolve a revisão do positivismo no Brasil, o que é condicionado pelo fato de o imediato antecessor, o acadêmico Paulo Carneiro, ter nutrido estreitas ligações com essa corrente de pensamento tão atacada em sua época e confinada de uns tempos para cá ao nicho do anedotário da história da filosofia. Seja como for, Merquior distingue “Positivismo-clima” de “Positivismo-seita”, esta uma espécie de fundamentalismo, definitivamente prejudicial a todo propósito original de Auguste Comte, filósofo francês animado por um “ethos altruísta e generoso, que unia amor ao saber e amor ao próximo, fundindo assim o melhor do Cristianismo com o melhor da Ilustração”, tendo sido menos o sistema do que a postura positivista “a tentativa mais consistente de alcançar uma síntese entre Iluminismo e Romantismo, razão crítica e sentimento comunitário”. Essa síntese, com efeito, cai como luva na militância merquioriana, cuja plataforma se constituía da crença inabalável na racionalidade neo-iluminista (é recorrente nos depararmos com o nome de Voltaire em sua obra) e da valorização do nacional (em coerência mesmo com sua carreira de diplomata) dentro do circuito vital do sentimento comunitário.

Não vejamos nessa compreensão do positivismo que José Guilherme Merquior incentiva – sem dúvida, ele sabia de seus efeitos polêmicos – como manifestação caricata de um reacionário, que quixotescamente transpõe para a realidade o sonho-loucura da filosofia de Quincas Borba. Não deveríamos antes assumir a superficialidade de nosso entendimento a respeito do positivismo, soterrado por camadas de lugares comuns reproduzidas em aulas de História do antigo segundo grau, do atual ensino médio e inclusive do ensino superior? Não ignoraríamos “a índole antidogmática da ideia comteana de Ciência, com seu acento na relatividade do saber”? A seriedade e a relevância da atitude de Merquior no discurso de posse ecoam Eduardo Lourenço, respeitável filósofo português, que, em “Sebastianismo: imagens e miragens”, texto de outubro do ano anterior, dava um paternalmente rápido puxão de orelhas em “alguns que têm do ‘positivismo’ uma ideia estereotipada”. (p.49)

Decerto menos impactante, porém não menos importante é o resgate do humanismo empreendido por Merquior àquela ocasião. Irritado com o divórcio, na cabeça de muitos pensadores e intelectuais da época, entre o conhecimento de dimensão humana e o de dimensão científica, argumenta:

De Leonardo a Goethe, ele [o Humanismo] foi basicamente “inclusivo”: aberto ao progresso do saber e às revoluções científicas. Isso tanto era certo do Humanismo filosófico da Renascença quanto do Humanismo dos philosophes ao tempo do enciclopedismo, e também, muito significativamente, dos próprios fundadores da Ciência Moderna. Galileu foi um humanista. Só conosco é que se instala no Humanismo estabelecido o rancor contra a Ciência, a denúncia irracional e indiscriminada do progresso, só conosco é que humanistas passaram a repudiar, injustificadamente, a Cultura Moderna.

O autor de O marxismo ocidental identificou-se profundamente com a cadeira 36. Dissemos acima que Merquior, àquele 11 de março de 31 anos atrás, proferiu palavras que ultrapassam o rito textual laudatório, impondo a coincidência entre o que ele mesmo pensava e o que pensavam seus antecessores, principalmente Paulo Carneiro. A passagem transcrita abaixo é perfeitamente aplicável ao próprio orador, que muitos acusaram de se aproveitar do debate de ideias em voga para se celebrizar:

Assim punha ele [Paulo Carneiro] no mais mundano dos gêneros literários – a conferência extracurricular – uma constante substancialidade de pensamento, sem qualquer laivo de oportunismo intelectual e, em particular, sem a mínima veleidade de seguir as modas ideológicas reinantes. Pouco ou nada lhe importavam os decretos da haute couture do espírito, os ucasses dos gurus germanopratinos e, quando se abalava a comentar algum, era única e exclusivamente em função do que houvesse de autenticamente relevante na sua obra, para além de todo modismo. Foi com esse discernimento que se interessou, por exemplo, pela renovação da antropologia devida a meu mestre Lévi-Strauss [...].

Logo nos primeiros parágrafos do discurso, Merquior anunciava sua obediência ao preceito de Pope, segundo o qual não se deveria permitir, no crítico, o desaparecimento do homem. No contexto inicial, o sentido era: não falarei apenas das obras desses críticos (Afonso Celso, Clementino Fraga e Paulo Carneiro), mas também da atuação moral desses homens. Mais adiante, o preceito parece adquirir nova roupagem semântica: o orador não permite desaparecer no crítico que fala de outros autores o próprio crítico, que encontra uma maneira elegante de falar de si mesmo. À citação acima, uma evidente autodefesa, podemos juntar à singela homenagem a Josué Montello, escritor maranhense, que o recebia na Academia Brasileira de Letras. A homenagem se expressou pela declamação de poema de outro maranhense, tio de Teófilo Dias, Gonçalves Dias, por cujos versos, informava Merquior, “iniciei meu convívio com a musa morena – a Poesia do Brasil”. E acrescentava: “Meu pai gostava de recitar ao filho menino os versos de Gonçalves Dias – e ao poeta do I Juca Pirama permaneço obstinadamente fiel, na galeria de minhas máximas admirações.”

Reputamos o último parágrafo desse discurso uma das mais preciosas passagens de José Guilherme Merquior. Nela se exacerba a poeticidade, muito bem disseminada no texto. Nela se dosa, com aguda pertinência, a erudição. Nela se semeia a sabedoria de uma lição cristalizada nos contornos de uma máxima: “[...] o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão que me anima: a paixão de compreender. O prêmio da vida acadêmica não é a discordância sem discórdia?”

Adotando nós mesmos o preceito de Pope, gostaríamos igualmente, nestes comentários, de não permitir que, no crítico das ideias Merquior, não se perca o homem Merquior. No princípio de seu discurso, o autor de A natureza do processo assinala a longevidade dos ocupantes anteriores daquela cadeira – Afonso Celso (1860-1928), Clementino Fraga (1880-1971) e Paulo Carneiro (1901-1982) –, em contraste com a vida curta do Patrono (1854-1889), advertindo, porém, haver “no modelo” daqueles “muito mais a imitar do que a mera longevidade”. Infelizmente, o novo acadêmico, sempre tão ansioso de ser estudante (condição, como muito bem afirma Josué Montello, “de quem não perde a curiosidade pelo saber”) só se esqueceu da lição menos importante... ou antes, acabou imitando nisso a Teófilo Dias.

João de Scantimburgo sucedeu José Guilherme Merquior, ocupando a cadeira na qual, desde o ano passado, se senta Fernando Henrique Cardoso. O primeiro, recebido pelo acadêmico Miguel Reale, grande amigo de Merquior, afirmou sobre este, no discurso de posse pronunciado a 26 de junho de 1992:

Ao lermos e meditarmos as obras de Merquior, impressionados pela riqueza das dissertações, a multiplicidade das questões examinadas, e, portanto, disputadas, como diriam os escolásticos; ao indagarmos sobre o seu fundamento filosófico, convencemo-nos de que estamos diante de uma Suma da Cultura Moderna, em vias de se formar, no melhor estilo de suas congêneres do passado, ainda que pontilhada de finíssima ironia. Se tivesse vivido para completar sua obra, provavelmente nos daria a Suma com as grandezas e misérias da Cultura Moderna, neste século XX que termina em estertores de crise da civilização.

Quanto ao discurso que Fernando Henrique Cardoso proferiu, a 11 de setembro de 2013, com ênfase autobiográfica nas questões políticas brasileiras e mundiais, partidárias ou não, parece-nos acertadamente ensinar:

Puxando a brasa para minha sardinha, ouso dizer que para Merquior o amor às liberdades e o respeito às regras do mercado não inibem (como creem os neoliberais) a ação pública reguladora em busca de maior igualdade. Estava mais próximo da versão contemporânea da social democracia do que do “liberismo”, tão à moda no final dos anos oitenta.

Mas também, para o certo aplauso póstumo de José Guilherme Merquior, o ex-presidente, frente ao imperativo de se referir ao patrono da cadeira, explicita a orientação poética à qual Teófilo Dias procurava obedecer, encerrada na “correspondência exata, a equivalência perfeita, entre a forma e o pensamento”. Palavras, aliás, do próprio poeta maranhense.

Aqui não podemos nos ater àquelas palavras reproduzidas mais acima do excelente e hoje, mais do que nunca, comovente discurso de Josué Montello, incumbido de receber Merquior na ABL. Os pontos atacados por Montello resultam num texto, além de hospitaleiro e informativo, esclarecedor e instigante. Sobretudo no que diz respeito à percepção de que o novo acadêmico se inseria na tradição, que remonta a Sílvio Romero, de críticos com atuação notadamente pedagógica, não apenas no exercício da docência, mas também na atividade ensaística. Esse empenho da obra merquioriana se reforçava, segundo Josué Montello, no “gosto do livro como instrumento de ação pública, porque sois, concomitantemente, um escritor e um político.” Como não poderia deixar de destacar, José Guilherme Merquior é assim caracterizado: “Sois ensaísta, crítico, jornalista, professor, conferencista, mas sois, em essência, um polemista.” Todavia, se, para nós, em comentários dispensados ao livro Razão do poema neste blog, a carreira diplomática e a militância do polemista parecia consistir em contradição espiritual do pensador carioca, Montello enxerga a questão com bem melhores óculos, apontando a afinidade entre ambas:

Bem sabeis que a própria vida diplomática, a despeito de suas cortesias externas, é uma luta vigilante em que o ruído dos entrechoques internacionais se processa o mais das vezes com o tinido dos cristais e dos talheres. A conversa amena, por onde circulam as anedotas, substitui o corpo a corpo e pugilato, assim como a braçada de flores elide a intimidação pelas armas.
Sois diplomata, e dos mais ilustres e experientes, e sois crítico literário e ensaísta político. Poder-se-ia supor que o diplomata neutralizaria o crítico e o ensaísta, mas os três têm igual substância polêmica, cada qual com o seu estilo e o seu modo de ver.

Não escapou ao discurso de quem recebia Merquior a beleza estilística de sua linguagem, beleza que atingia, segundo um comentarista de As ideias e as formas citado por Montello, os limites da poesia.

Por fim, destacamos – pedindo desculpas pela insistência na infeliz precocidade da morte de José Guilherme Merquior – o involuntário sentido metafórico-profético destas palavras de Josué Montello, pronunciadas numa casa assombrada teimosamente pelo tema da idade e da (i)mortalidade: “Relevai-me se vos afirmo que ainda deixais sentir um ar inaugural. Dir-se-ia que andais pela casa dos vinte anos, aguerrido, bem disposto, os cabelos pretos, o jeito afirmativo, o gosto de bem realizar. Correis o risco de que vos tomem por terceiro secretário e já sois ministro, a um passo do fecho de vossa carreira.” Um passo que se alongou por menos de uma década...

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Segue abaixo a lista das demais 39 cadeiras e dos nomes de seus respectivos ocupantes no momento em que José Guilherme Merquior toma posse na Academia Brasileira de Letras:

Cadeira 1: Bernardo Élis;

Cadeira 2: Mário Palmério;

Cadeira 3: Herberto Sales;

Cadeira 4: Vianna Moog;

Cadeira 5: Rachel de Queiroz;

Cadeira 6: Barbosa Lima Sobrinho;

Cadeira 7: vaga no momento, em decorrência do falecimento recente (novembro de 1982) de Dinah Silveira de Queiroz;

Cadeira 8: Austregésilo de Athayde (presidente);

Cadeira 9: Carlos Chagas Filho;

Cadeira 10: Orígenes Lessa;

Cadeira 11: Deolindo Couto;

Cadeira 12: Abgar Renault;

Cadeira 13: Francisco de Assis Barbosa;

Cadeira 14: Miguel Reale;

Cadeira 15: Dom Marcos Barbosa;

Cadeira 16: Pedro Calmon;

Cadeira 17: Antonio Houaiss;

Cadeira 18: Peregrino Júnior;

Cadeira 19: Américo Jacobina Lacombe;

Cadeira 20: Aurélio de Lyra Tavares;

Cadeira 21: Adonias Filho;

Cadeira 22: Luís Viana Filho;

Cadeira 23: Jorge Amado;

Cadeira 24: Cyro dos Anjos;

Cadeira 25: Afonso Arinos de Melo Franco;

Cadeira 26: Mauro Mota;

Cadeira 27: Eduardo Portella;

Cadeira 28: Menotti del Picchia;

Cadeira 29: Josué Montello (acadêmico que recebeu J. G. Merquior);

Cadeira 30: Aurélio Buarque de Holanda;

Cadeira 31: José Candido de Carvalho;

Cadeira 32: Genolino Amado;

Cadeira 33: Afrânio Coutinho;

Cadeira 34: Carlos Castello Branco;

Cadeira 35: José Honório Rodrigues;

Cadeira 37: João Cabral de Melo Neto;

Cadeira 38: José Sarney;

Cadeira 39: Otto Lara Rezende;

Cadeira 40: Alceu Amoros Lima.

Referências bibliográficas

LOURENÇO, Eduardo. “Sebastianismo: imagens e miragens” in: Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp.46-53.

PEREIRA, José Mario. “O fenômeno Merquior” in: COSTA E SILVA, Alberto da (org.). O Itamaraty na cultura brasilera. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. pp. 475-506.


Os discursos que consultamos estão disponíveis no site oficial da Academia Brasileira de Letras: