sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

José Arthur Giannotti: uma polêmica com Merquior

A GloboNews exibiu ontem, ao vivo, no programa Diálogos com Mário Sérgio Conti, entrevista com o filósofo e professor da USP José Arthur Giannotti. O assunto em foco foi a política brasileira, nestes tempos conturbados, em que tramita processo de impeachment contra a presidente da República Dilma Rousseff, sucedem as investigações e julgamentos das chamadas operação Lava-Jato e Zelotes, e a economia nacional padece uma de suas piores crises no século atual.

Giannotti, em setembro de 1987, publicou na revista Novos estudos CEBRAP artigo intitulado “O tema da ilustração em três registros”, no qual comenta os livros Ensaios de filosofia ilustrada, de Rubens Rodrigues Torres, As razões do iluminismo, de Sérgio Paulo Rouanet, e O marxismo ocidental, de José Guilherme Merquior, todos então recém-publicados.
No texto, o docente universitário se aplica a distinguir as obras em questão em dois gêneros específicos: o propriamente acadêmico-científico, rótulo adequado ao livro de Rubens Rodrigues Torres, e o ensaístico-retórico, classificação atribuída aos de Rouanet e Merquior. Quanto a este último autor, considerando sua fama de polemista altamente numeroso em matéria de publicações, Giannotti asseverava:
 

É ser tolo e contraproducente torcer o nariz diante deste fenômeno muito novo que atravessa a cultura de massa contemporânea. Milhares de intelectuais gostariam de ocupar a posição de José Guilherme Merquior no panorama de nossas letras, mas, infelizmente, existe só um Merquior. Antes de combatê-lo como inimigo da cultura [?], cabe elogiar o trabalho de dissolução que ele faz com mestria, afirmando um liberalismo e uma liberdade de espírito de que a cultura brasileira carece, e muito. Para que haja o filósofo é necessário o sofista, para que haja o estadista é necessário o militante, um é complemento do outro. Aqueles que pretendem ser filósofos precisam compreender essa dualidade e ressaltar em Merquior o que ele tem de produtivo: ele é um mestre indiscutível da retórica. Não cabe comparar seus livros com teses de doutoramento, pois esta não é sua intenção nem sua função. Também na cultura vale o ditado: cada macaco no seu galho. (Giannotti, 1987, p.11-12)
 
É evidente que José Arthur Giannotti aí desqualificava a validade de O marxismo ocidental e mesmo do conjunto da obra merquioriana como contribuição efetiva ao avanço do conhecimento, – avanço exclusivamente, segundo o filósofo paulista, de competência de professores de universidades, da espécie do próprio Giannotti e do conhecido tradutor de Nietzsche, Rubens Rodrigues Torres. Portanto, o único galho concedido aos autores simiescos de Verso universo em Drummond e de Mal-estar na modernidade era o da difusão-dissolução do conhecimento conquistado pela academia.

A fundamentação dessa crítica enfática perfumada de um reconhecimento pouco lisonjeiro se respalda, no caso de Merquior, na acusação de que “O marxismo ocidental estropia um filósofo atrás do outro”, (Giannotti, 1987, p.12) e de que “a oposição clássica razão-irrazão”, à qual os pensamentos merquioriano e rouanetiano se aferram, na defesa desabrida do primeiro termo, só poderia, em pleno século XX, “ser meramente retórica” porque “deixa de ter sentido”. (1987, p.13) Desse modo: “[...] tanto a polêmica de Merquior quanto o programa racionalizador de Rouanet necessitam duma rede categorial mais fina.” (1987, p.14)
Polemista vocacional, José Guilherme Merquior não deixaria o xará sem interlocução. Três meses depois, a mesma revista publica “Retórica ex cathedra”. Nesse pequeno artigo, explicita os prejuízos semânticos da tradução brasileira de O marxismo ocidental – “longe de ser perfeita” –, (1987, p.9) e rebate, com a veemência típica de sua verve, “a mimosa qualificação de sofista e retórico”, (1987, p.10) acusando o filósofo paulista de ter apresentado “apenas mais uma peça de auto-advocacia universitária”, munida de um
 

[...] argumento, enfim, ostensivamente retórico, baseado no sofisma segundo o qual a origem dos textos filosofantes – ou, o que é pior, a intenção que o crítico arbitrariamente lhes atribui – é o elemento determinante do seu grau de rigor e seriedade. (Merquior, 1987, p.10)

Apesar de assim ter reagido em defesa da própria obra, desqualificada nos seus propósitos intelectuais diante de uma linguagem acadêmica tida como cientificamente mais válida e confiável, em confronto que me parece uma variante da campanha-polêmica travada por Afrânio Coutinho contra a crítica literária impressionista entre os anos 40 e 60, José Guilherme Merquior, curiosamente, não contesta José Arthur Giannotti no tocante à questão do racionalismo/irracionalismo. Por que esse silêncio?, impõe-se ao leitor a pergunta.
Quase três décadas mais tarde, contudo, Giannotti posicionou-se, no programa da GloboNews de ontem, de modo a chegar ao consenso, não no campo filosófico, mas no político-econômico, com Merquior. É que o fundador do Partido dos Trabalhadores se autoidentificou como voz de certa esquerda que não comunga do populismo latino-americano em fase de franco esgotamento nesses últimos anos. Para o professor da USP, as políticas sociais são necessárias em países como o Brasil, mas só são possíveis  graças à criação de riqueza, e são apenas sustentáveis, hoje, com o bom funcionamento do capitalismo. É justamente esta a consciência que caracteriza o social-liberalismo defendido nos anos 80 por José Guilherme Merquior.