segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

“Os ciprestes do Aquileion ou pão e petit-pois”

Mas o importante é que, nele [Henrich Heine], o receio do barbarismo nunca virava antiplebeísmo histérico, elitismo perverso.

José Guilherme Merquior

“Heinrich Heine (1797-1856) talvez tenha sido o último grande poeta europeu em cuja obra se casaram crítica da cultura e progressismo político-social.” (1981, p.5) Não deveremos estar longe da verdade, se dissermos que o autor dessa frase talvez tenha sido ele mesmo o último grande crítico literário brasileiro em cuja obra se casaram o mesmíssimo par: crítica da cultura e progressismo político-social.

A citação do parágrafo acima pertence às linhas introdutórias de mais um dos textos que José Guilherme Merquior publicou na prestigiada revista literária portuguesa Colóquio/Letras, no caso o número 59 de janeiro de 1981. Em tempos de uma crítica que, em nome da objetividade e da cientificidade, menosprezou a função de julgar, postura incentivada pelo estruturalismo dos anos de 1960 e 70... em seguida, em tempos de uma crítica que, em nome da crítica à objetividade e à cientificidade, compreendeu que o julgamento não era uma questão de razão, mas de poder, mentalidade que o pós-estruturalismo ajudava a moldar ao longo do último quartel do século passado... Merquior, nesses dois períodos, nunca abriu mão das credenciais de cobrar à literatura um pendor ideológico afinado com tradições liberais.

E crítica da cultura e progressismo político-social seriam, de fato, as mais valiosas contribuições, segundo o autor de As ideias e as formas, que a literatura e as artes em geral teriam a oferecer, com o que, aliás, estas ainda se autojustificariam na contemporaneidade. Pois o ensaísta brasileiro conservou sempre para si um lema repetido em artigo sobre o italiano Elias Canetti, o qual “se deixa compreender melhor à luz da sua concepção do papel do escritor, definida numa homenagem aos cinquenta anos de Hermann Broch: o grande escritor é a um só tempo uma exalação da sua época, e seu adversário crítico”. (1983, p.44-45)

Numa interpretação merquioriana dessa máxima, ser uma “exalação da sua época” e, ao mesmo tempo, “adversário crítico da sua época” significa que o escritor deve atentar-se ao mundo em redor, compreendendo que a literatura, embora autônoma em relação à realidade externa, precisa estar com ela em consistente diálogo, e não se fechar nos caprichos de uma criação autoritária. Em outras palavras, cabe à literatura tanto comunicar o mundo quanto se comunicar com o mundo. Nesse processo criativo, a visão crítica seria ingrediente insubstituível, para que se evite produzir um cômodo e mero reflexo da realidade e para que a obra literária contribua, efetivamente, para o progresso político-social.


O ensaio publicado na Colóquio/Letras, intitulado eruditamente “Os ciprestes do Aquileion ou pão e petit-pois”, objetiva mais do que elucidar a condição cosmopolita e iluminista do poeta de língua alemã de ascendência judaica na cultura europeia do século XIX: o ensaio afirma o exemplo de Henrich Heine e sua “literatura como ‘crítica da vida’, que ainda não odiava o curso da história, [e] ia de par com a luta pelo progresso social”, contra os “nossos dias de permissividade oficial e autoculpabilização burguesa”. (1980, p.11) E esses dias, verdade seja dita sem qualquer tom de novidade, ainda não acabaram.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Caminhos de um exemplar

Eu sabia que estava adquirindo um exemplar autografado de O elixir do apocalipse, livro que José Guilherme Merquior publicou pela editora Nova Fronteira em 1983. Mas não imaginava que o próprio autor, em Londres, em julho de 1986, o enviara a ninguém menos que Nicolau Sevcenko, que, por sua vez, lhe tinha remetido exemplar do estudo hoje clássico Literatura como missão.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Publicação do artigo “Dois liberalismos? Razão e modernidade em Fidelino de Figueiredo e José Guilherme Merquior”

Tenho a alegria de noticiar que o texto comunicado em evento que se realizou em outubro de 2016, em São Paulo, sobre o escritor, professor, pensador e crítico literário português Fidelino de Figueiredo tornou-se artigo constante no livro Fidelino de Figueiredo: travessias: estudos de filosofia e literatura, com organização de Rita Aparecida Santos, Maria Celeste Natário, Renato Epifânio e Luísa Malato. A editora do volume é a Pontes de Campinas-SP.


Nesse pequeno trabalho, discorro sobre as especificidades do pensamento liberal de José Guilherme Merquior e do autor de O medo da história, tomando como referência as reflexões de cada um desses intelectuais a respeito das noções de razão e modernidade. Observo que Fidelino identifica-se com uma corrente do liberalismo mais conservadora e de coloração pessimista, aspecto nitidamente motivado pelo testemunho dos grandes regimes autoritários (fascismo italiano, nazismo alemão, socialismo soviético) e das duas Grandes Guerras. Além disso, ressalto que o liberalismo fideliniano se concentra no campo das reflexões éticas e culturais, ao passo que o merquioriano investe nesse e em outros campos, como o da economia. Também se diferencia o liberal brasileiro do português pela postura mais otimista e reformista, entusiasta notório que foi da razão como instrumento capaz de desvendar as verdades fundamentais e da modernidade como ápice de conquistas sociais, políticas, jurídicas etc.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

“Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas”


Este é o título de outro ensaio de José Guilherme Merquior, publicado na revista acadêmica portuguesa Colóquio/Letras no mesmo ano (1972) do “Para o sesquicentenário de Matthew Arnold”, sobre o qual discorri no post anterior. “Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas” também consta no volume Crítica (1990), antologia de textos situados entre 1964 e 1989 com que o então pensador do liberalismo e doutor em sociologia parecia festejar suas quase três décadas de atividade intelectual iniciada na condição de crítico literário.

Não poderia ser diferente: Machado de Assis instigou valiosas reflexões em Merquior. Registro disso são, além do ensaio acima referido, grande parte do capítulo “Machado de Assis e a prosa impressionista”, encerramento do volume De Anchieta a Euclides (1977), e o breve artigo “Machado de Assis e a filosofia”, publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 1982, e depois republicado em O elixir do apocalipse (1983).

Muito do que Merquior ensina no ensaio da revista Colóquio/Letras se repete nos outros dois, o que parece indicar que realmente o autor se concentrou, no tocante à obra machadiana, na questão do gênero, do estilo e na sua força filosófica, concentrada esta em questões morais e éticas. Na verdade, esses três aspectos se entrelaçam, e evidenciam, em Machado de Assis, “a emergência de uma visão problematizadora inédita na literatura brasileira” (1972, p.12)

Memórias Póstumas de Brás Cubas, marco do amadurecimento literário do escritor carioca, segundo José Guilherme Merquior, “é um caso de novelística filosófica em tom bufo, um manual de moralista em ritmo foliônico”. (1972, p.14) Todavia, adiante, o ensaísta nos garante que
 

O humorismo de Machado de Assis é uma atitude eminentemente filosófica – mas não é uma “filosofia”. Metafisicamente, o humor machadiano não tem conteúdo positivo. Daí, talvez, a sua terrível liberdade [...], a audaciosa liberdade que permite a abordagem cômico-fantástica do real. Neste sentido, a estrutura humorística de um livro como as Memórias póstumas é verdadeiramente consubstancial à visão de mundo machadiana. Machado não emprega o humor para “ilustrar” uma filosofia: ao contrário, o seu humor – fazendo as vezes da inexistente metafísica – é filosofia; e esse fenômeno confere uma notável modernidade à sua obra, porque nada é tão moderno quanto o eclipse das filosofias afirmativas. (p.18-19)

Quanto ao gênero do romance que inaugura uma das vertentes mais sofisticadas da narrativa realista na literatura ocidental, Merquior ensina que se trata de um livro cômico-fantástico, de tradição tão ilustre quanto antiga, caracterizada por apresentar, em linhas gerais:
 

[...] a) a ausência de qualquer distanciamento enobrecedor na figuração dos personagens e de suas ações [...]; b) a mistura do sério e do cômico, de que resulta uma abordagem humorística das questões mais cruciais: o sentido da realidade, o destino do homem, a orientação da existência, etc.; c) a absoluta liberdade do texto em relação aos ditames da verossimilhança [...]; d) a frequência da representação literária de estados psíquicos aberrantes: desdobramentos da personalidade, paixões descontroladas, delírios (como o delírio de Brás Cubas); e) o uso constante de gêneros intercalados – p. ex., de cartas ou novelas – embutidos na obra global (como as historietas de Marcela, de D. Plácida, do Vilaça e do almocreve, nas Memórias póstumas). (1972, p.13-14)

 
Na escala de valores da crítica merquioriana, a qual nunca marginalizou a função de julgamento no trato com a coisa literária e artística, a passagem que negritei consiste num elemento da maior relevância. E ao assim proceder, o ensaísta zelava pela sobrevivência da literatura e da arte na contemporaneidade, já que cobrava dos escritores e dos artistas uma linguagem que, acima de tudo, comunicasse, não cedendo à tentação vaidosa e egoísta de uma elaboração despreocupada com as questões mais cruciais.

Por fim, a respeito do estilo, as Memórias póstumas de Brás Cubas, ao lado de outras obras do autor, convenceram Merquior do impressionismo machadiano, pois nelas se notaria “[j]unto com a sua prosa artística, a sua aguda percepção do tempo e o subjetivismo ‘decadente’ de seus personagens”. (1972, p.19) Porém, “Machado parece até ir além do impressionismo”, uma vez que na narrativa machadiana “o experimentalismo ficcional está animado pelo espírito de zombaria”. (1972, p.19) É precisamente essa lição, que ilumina aspecto pouco explorado pela historiografia e crítica literárias do século passado, que vai se repetir e desenvolver cinco anos depois, em De Anchieta a Euclides.

domingo, 24 de setembro de 2017

Matthew Arnold e o antiformalismo de Merquior

O britânico Matthew Arnold (1822-1888) figura na lista dos críticos literários que José Guilherme Merquior mais admirava, dentre os quais se encontram, em destaque, os estrangeiros Erich Auerbach, Hugo Friedrich, Walter Benjamin, Georg Lukács e os compatriotas Antonio Candido, Augusto Meyer e Araripe Júnior. Em 1972, o autor de Saudades do carnaval não perdeu a oportunidade da efeméride, e publicou, no número 10 da prestigiada revista acadêmica portuguesa Colóquio/Letras, o texto “Para o sesquicentenário de Matthew Arnold”.

A lembrança comemorativa desse que seria “o mais europeu dos ensaístas ingleses” (1972, p.21) justificava-se por se tratar de “um dos grandes patronos da crítica não formalista”, (1972, p.18) e tal condição consiste no mote de todo o ensaio, que José Guilherme Merquior redigiu na Alemanha.

Poucas vezes Merquior deixou de ostentar sua postura antiformalista nos numerosos textos sobre literatura e arte que nos legou. O antiformalismo, afinal, constitui uma das constantes do seu pensamento, uma causa que sua militância intelectual abraçou desde as primeiras publicações, na década de 1960, e assim permaneceu ao longo dos anos 80.

Esse longevo embate crítico merquioriano decorre de um contexto em que o estruturalismo francês, que se inicia com a antropologia de Claude Lévi-Strauss para em seguida abarcar diversas áreas das ciências humanas, como a história, a filosofia, a psicanálise e a própria crítica literária, conquista amplo espaço nas universidades brasileiras, especialmente no decênio de 1970, convertendo-se em metodologia rigorosa de análise e bandeira em favor de uma abordagem imanentista do objeto de estudo.

Em linhas gerais, com abordagem imanentista quer-se dizer a consideração estrita do texto (no caso da literatura), dos seus mecanismos semânticos, sem dispensar-se maior ou mesmo nenhuma atenção a aspectos como o contexto histórico, biográfico, sociológico, cultural no qual teria surgido a obra em questão. Essa perspectiva opunha-se à velha tradição, ainda sobrevivente, do século XIX, quando os críticos literários costumavam recorrer e/ou focalizar a vida do escritor, pretendiam desvendar o que se teria passado na cabeça (ou no coração) dos poetas, as influências do momento e do local em que escreveram, enquanto o significado textual propriamente se perdia no horizonte interpretativo. Ao comentar o célebre soneto “Alma minha gentil que te partiste” de Camões, por exemplo, Joaquim Nabuco se limita, em síntese, a referir-se à beleza rara desses versos, que só poderiam brotar de um amor intenso, e a especular em torno da identidade da musa inspiradora.

À semelhança de outras correntes do século XX, como o Formalismo russo, o New Criticism anglo-americano e a estilística europeia, a crítica estruturalista se desvencilha daquelas preocupações e se volta, sobretudo, para como se organiza – ou se estrutura – a obra literária, desta reconhecendo a autonomia frente a aspectos tidos por extratextuais. Nisso, resiste inclusive à tentação de exprimir juízos de valor, atitude secularmente característica da crítica.

Aluno de Lévi-Strauss na École Pratique des Hautes Études em Paris entre os últimos anos da década de 60, José Guilherme Merquior discerniria, nas suas palavras, o “estruturalismo autêntico” do, também nas suas palavras, “estruturalismo dos pobres”. A primeira expressão aparece na “Nota prévia” ao livro A estética de Lévi-Strauss (1975); a segunda, no título de ensaio que se repete no do pequeno volume O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975). No que um se difere do outro? Em De Praga a Paris, Merquior destaca: “Eu, pelo menos, considero que uma das melhores coisas do estruturalismo francês clássico [o exposto em teoria e posto em prática por Lévi-Strauss] é exatamente a sadia adoção de uma perspectiva universalista.” (1991, p. 227) Quanto à versão, digamos, fajuta – o problema se encontra tanto na “fúria [...] contra a mímese e o conteúdo” (1991, p.227) e no pedantismo terminológico, responsável por obscurecer as análises numa linguagem só para iniciados, quanto na consequente “grossa arbitrariedade das interpretações” intermediada pelo fetichismo do método. (cf. 1975, pp.9-10)

Merquior subscreve a importância e a necessidade de se reconhecer a autonomia da forma literária, já colocada em relevo por Aristóteles na Poética e por Kant na Crítica do juízo, conforme assinala o ensaísta brasileiro em A astúcia da mímese (1972) e “Sobre a doxa literária”, texto coligido no volume Crítica (1990). Todavia, o estruturalismo acabará por encetar, muitas vezes, uma “análise formal degenerada, ou seja, formalista, sustentando a ilusão da insularidade do texto literário”. (1972, p.17)

Comemorar os 150 anos de nascimento de Matthew Arnold dá a Merquior a ocasião especial de reforçar sua insistente denúncia de que “a dimensão sociocultural da análise estrutural do texto vem sendo obscurecida, quando não negada, e a função judicativa do discurso crítico vem sendo tratada com negligência ou desdém”. (1972, p.16) A postura crítica merquioriana, que de fato se irmana com a de um Antonio Candido, no Brasil, e a de um Erich Auerbach, no exterior, preconiza que a forma, conquanto autônoma, ainda assim se vale, na efetivação de seu significado, do contexto social, cultural, em suma, histórico. E, desse modo:

O recurso ao código da história visa tão-somente a conferir objetividade à exegese crítica, prevenindo a arbitrariedade ou a irrelevância das leituras “ventríloquas’ (Lévi-Strauss), isto é, daquelas análises em que o crítico, embora paramentado com numerosos conceitos da moda, continua na verdade a projetar sentidos no texto em vez de lê-lo em profundidade, contemplando, no signo de si que este é, o signo do social que também nunca deixa de ser. (1972, p.16-17)

Matthew Arnold não daria bons exemplos de um crítico consciente da autonomia da forma, sendo “em regra indiferente aos valores propriamente estilísticos”, (1972, p.19) razão para várias restrições que receberia ao longo do século XX. Em compensação, porém, o britânico teria praticado “uma atitude igualmente imprescindível à crítica moderna: a problematização das relações entre literatura e sociedade”. (1972, p.20) Problematização que, ademais, se revela, no caso arnoldiano, como “arma de uma crítica da civilização”. (1972, p.20) Adiante Merquior esclarece o alvo em questão: o ideário de Matthew Arnold era o do “liberalismo conservador, extremamente sensível à baixa dos valores humanos na sociedade industrial”. (1972, p.20)

É, sobretudo, por ter alvejado esses resíduos tóxicos da modernidade (razões éticas, portanto) que o ilustre crítico inglês merecerá a admiração do melhor escritor liberal brasileiro. A Arnold somente teria faltado “surpreender o impulso de problematização da cultura na estrutura mesmo do texto literário”, (1972, p.22) a exemplo do que se daria na fase pré-marxista, segundo Merquior, do húngaro Georg Lukács.


Referências bibliográficas

MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris: o surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Trad. de Ana Maria de Castro Gibson. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

______. “Para o sesquicentenário de Matthew Arnold” in Colóquio Letras, Lisboa, no 10, Novembro de 1972. pp.16-24.


sábado, 9 de setembro de 2017

Uma conferência de Merquior no IL

É com esse problema que nós nos defrontamos e é esse problema que precisamos resolver, ou seja, como conviver dentro da democracia considerando o fato de que há pressões necessariamente oligárquicas, mesmo que utilizem a retórica mais democrática ou mais populista desse mundo. Tal problema tem sido essencial ao drama da democracia em nossa época.

Merquior (“Algumas reflexões sobre os liberalismos contemporâneos”)



Em novembro de 1986, as sedes fluminense e gaúcha do Instituto Liberal realizaram o ciclo de palestras Os fundamentos do liberalismo. Já reconhecido pelas contribuições a respeito do assunto, já publicados seus livros As ideias e as formas (1981), O argumento liberal (1983), A natureza do processo (1983), José Guilherme Merquior foi convidado a participar do evento, no qual pronunciou “Algumas reflexões sobre os liberalismos contemporâneos”.

Felizmente, o IL – sociedade civil fundada a 16 de janeiro de 1983, ainda hoje atuante [conferir o endereço: https://www.institutoliberal.org.br/] – publicou, em dezembro de 1991, o texto proferido na ocasião por Merquior. Pois trata-se de um valioso esclarecimento acerca de alguns pontos da história ampla do liberalismo e, além disso, do contexto do pensamento liberal do próprio ensaísta.

Considerando, a propósito, nosso post anterior, as dezessete páginas de “Algumas reflexões sobre os liberalismos contemporâneos” elucidam questões terminológicas do número 109 da revista Tempo Brasileiro dedicada a José Guilherme Merquior. Por exemplo: ele teria sido ou não um neoliberal? A conferência responde que sim; poderíamos denominá-lo neoliberal, uma vez que o termo pôde designar também, àquela época, toda uma tradição liberal mais recente. Nas palavras do conferencista:

É comum, como todos sabemos, o emprego da expressão neoliberal, ou neoliberalismo, ou neoliberalismos. Tal expressão ora designa obras cuja gestação precede de muito a última década ou década e meia, como no caso de [Friedrich] Hayek, por exemplo, e ora designa – talvez ainda com mais visibilidade – essa floração de propostas filosóficas liberais contemporâneas, algo que se poderia datar do volume hoje clássico, apesar de não ter vinte anos de publicado, de [John] Rawls: A teoria da justiça. Uma floração que abrange também obras como as de [Robert] Nozick, nos Estados Unidos, ou de todo um grupo de autores franceses, composto de pensadores que começaram a publicar em fins da década de 70, todos já com status de clássicos modernos, e pensadores bem mais recentes, correspondendo ao dernier cri na renovação do pensamento liberal, como é o caso do francês Guy Sorman. Na verdade, a todos esses pensadores e autores aplica-se, um tanto indiferentemente, o prefixo neo, indicando-os como neoliberais. (p.6)

Ou seja: na acepção de novo(s) liberalismo(s), o social-liberalismo que Merquior abraçou integraria, sim, o quadro do neoliberalismo. Entretanto, na acepção estrita de liberismo, para cuja conceituação o autor de Razão do poema recorre ao italiano Benedetto Croce – “O importante é que liberismo, para Croce, significava liberdade econômica” (p.7) –, não, o pensador brasileiro não foi um neoliberal.

De todo modo, cumpre atentarmos para uma confusão terminológica fomentada pela retórica política de índole marxista, que acusa – ou xinga – o social-liberalismo teórico de um Merquior (como Gilberto Felisberto Vasconcellos, em Brazil no prego) ou o social-liberalismo prático de um Fernando Henrique Cardoso (como Ricardo Nunes, em A desertificação neoliberal no Brasil, e Rodrigo Castelo, em O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal), de serem neoliberais no sentido mesmo de liberistas. Está claro que a distinção mencionada mais acima quer manter distância desse âmbito de combate ideológico.

É convicto sempre de que uma “visão liberal” mais genuína e válida “é, ao mesmo tempo, política e econômica” (p.21) que Merquior, em sua conferência, se detém em pontos fundamentais do ideário e do debate liberais na segunda metade do século passado, quando teria ocorrido, sobretudo a partir dos anos de 1970, um “revival do pensamento liberal”. (p.5)

Naturalmente, àquela altura, ao falar a convite do IL, José Guilherme Merquior tinha em mente a repercussão mundial dos governos neoliberais (no sentido de Estado mínimo e máxima liberdade concedida à economia de mercado) da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do presidente norte-americano Ronald Reagan, assim como do livro bestseller Liberdade de escolher: o novo liberalismo econômico (1979), de Milton & Rose Friedman, obra que se alinhava às orientações de Friedrich Hayek – o “paladino do liberismo” (p.11) ou do neoliberalismo naquele sentido posto em parênteses acima.

Aliás, a respeito do economista austríaco, contemplado pelo Prêmio Nobel em 1974, o autor brasileiro disse:

Não me considero um hayekiano no desenho global das posições que me ajudam a definir-me como um liberal contemporâneo. Não consigo segui-lo em todos os planos de seu pensamento. Mas julgo constituir-se num caso de justiça essa homenagem que apresenta Hayek como principal fator intelectual na renascença no liberismo e no reconhecimento da necessidade de liberdade econômica. (p.11)

Para delinear os contornos gerais dos liberalismos contemporâneos, Merquior parte de uma conhecida polêmica pós-guerra entre dois célebres políticos italianos: Luigi Einaudi, então presidente da Itália, a defender que a essência liberal residiria na esfera econômica, ao passo que Benedetto Croce, senador da república, apontava a esfera política como o verdadeiro e único habitat do liberalismo, sendo tudo o mais acessório. A conjuntura da época, na qual pesavam as consequências catastróficas da Segunda Guerra Mundial, levou a visão crociana à vitória. Porém Merquior adverte: “[...] o fato é que o vencedor, no sentido prático e, friso bem, não estou afirmando no sentido lógico, mas prático, relativo aos efeitos imediatos do debate –, foi, sem dúvida alguma, Benedetto Croce.” (p.9)

Perante a condenação perene e corriqueira do liberalismo econômico à caricatura, o conferencista que falava para um instituto solidamente instruído nas lições de Adam Smith, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, saca o exemplo curioso senão inusitado de um eminente intelectual socialista – Michel Rocard – quem

[...] sustenta, dentro do que ele ainda considera uma posição socialista, que o Estado é um mau produtor [...]. E o dirigismo econômico revelou-se historicamente falho, acumulando fracassos sobre fracassos e, por conseguinte, o liberalismo ou liberalismo econômico permanece profundamente em pauta. Mas, além de permanecer em pauta do ponto de vista da eficiência, – o que já não é pouco –, permanece também em pauta por aquilo que chamei de condição necessária, embora não suficiente, das próprias liberdades civis e políticas. (p.10)

A passagem acima constitui um dentre numerosos atestados da mobilidade do pensamento merquioriano, que se comprazia em alardear a sua própria característica em outros autores. Como no caso de Rocard, socialista desapegado a dogmas ideológicos, capaz de acatar a veracidade das constatações econômicas do liberalismo. Como no caso, ainda, do próprio Merquior, liberal para quem “o pensamento conservador [...] também tem as suas zonas de verdade, seus insights valiosos” (p.16)

De qualquer forma, o autor de Saudades do carnaval não era mesmo um hayekiano. E uma das razões disso seria a sua objeção à crença do economista austríaco, ao fim ao cabo, num evolucionismo à Herbert Spencer, conforme o qual a liberdade econômica bastaria para conduzir a humanidade pelos caminhos da perfectibilidade (cf. pp. 14-15)

A penúltima reflexão sobre os liberalismos contemporâneos se volta para questões éticas. Aqui se enlaçam vários ismos: Merquior discute o utilitarismo, uma das linhas de força da tradição liberal, à qual ele mesmo se associou, conforme podemos constatar em ensaios de O argumento liberal. Sobre o tema, o autor brasileiro esclarece que “o utilitarismo não é uma asneira nem uma visão grosseira do ser humano”, (p.15) limitada a promover a felicidade do maior número populacional possível. E destaca: “[Stuart] Mill não propõe apenas a liberdade individual e a procura da felicidade; propõe isso conjugado com a procura de níveis de excelência: a busca de níveis de autoformação pessoal, a busca de aprimoramento pessoal do indivíduo.” (p.15)

A busca de aprimoramento pessoal do indivíduo, aplaudida por José Guilherme Merquior, é o que justifica uma postura sua nada merecedora de patrulhamento politicamente correto. De fato, o pensamento crítico merquioriano prima pelo aristocratismo, pelo elitismo, mas dentro dessa proposta – humanista, neoiluminista – da, mais uma vez, busca de aprimoramento pessoal do indivíduo, ou também, da procura da excelência. Quanto a isso, o convidado do IL cita G. K. Chesterton:

Ele dizia que a humanidade não deve ser encarada como uma espécie a que todos pertencemos por direito de nascença, mas como um clube ao qual cada um de nós deve a sua quota. Isto quer dizer a humanidade como ideal e não como um ponto de partida dado a priori, que nos dispense de um esforço de autocontrole e auto-aprimoramento. (p.16)

Por fim, o tema do Estado – com efeito, um dos maiores interesses de Merquior como pensador liberal do liberalismo. A passagem abaixo replica diversas de As ideias e as formas e de O argumento liberal:

[...] entre os diversos liberalismos contemporâneos, não há, por definição, nenhuma posição estatista. Liberalismo e estatismo são absolutamente inconjugáveis. No entanto, para alguém não ser estatista não é necessário ser estadófobo. Ora, se o liberalismo, das três grandes famílias do pensamento político – a conservadora, a liberal, a socialista –, é a única que parece pôr muita ênfase nos valores da individualidade, só na visão liberal do mundo e do homem é que o tema do indivíduo ocupa um lugar tão central. (p.17)
   
Mas o que efetivamente respaldaria tal conjugação entre indivíduo e Estado? José Guilherme Merquior responde nos seguintes termos. Sendo que “o indivíduo não [parece ser] uma coisa dada ab ovo na história da civilização”, a acreditarmos na competência histórica de Hegel, teria sido “o nascimento e a afirmação do Estado, na aurora dos tempos modernos, que criou um espaço sociológico necessário ao crescimento da individualidade”. (p.17) E se é a ordem jurídica a condição imprescindível para as mais plenas manifestações da individualidade, acrescenta Merquior, ao diferenciar Estados autoritários de Estados democráticos: “No mundo de hoje, não se pode conceber uma ordem jurídica que não seja estatal.” (p.18)

Encaminho o encerramento deste post, citando uma passagem inicial da conferência:

[...] o aspecto fundamental, no revival do pensamento liberal, está exatamente na diversidade de posições, a qual em última análise, caracteriza o liberalismo ou os liberalismos. E, evidentemente, um dos denominadores comuns possíveis e até óbvios que apresenta o conjunto dos liberalismos, tanto contemporâneos quando clássicos, é, de fato, uma visão pluralista do político e do social. (p.5)


O liberalismo merquioriano talvez seja um espécime do gênero Kulturoptimismus, como o denomina com ironia João Ricardo Moderno (cf. post anterior). Mas não se trata de um otimismo ingênuo, porque consciente de que a visão pluralista, não apenas dos liberais, mas das sociedades modernas, poderia ela mesma ameaçar o funcionamento democrático, diagnóstico assinalado na epígrafe que encima meu texto. Não sendo utópica, a visão liberal reconhece as pedras no meio de seu caminho.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Revista Tempo Brasileiro Número 109

Para o bimestre abril-junho de 1992, a antiga revista Tempo Brasileiro dedicou seu número 109 para exclusivamente homenagear José Guilherme Merquior, havia pouco falecido. Organizado por João Ricardo Moderno, o volume apresenta, em 149 páginas, nove textos que, no conjunto, abordam e discutem o pensamento merquioriano, com destaque para o tema do liberalismo, além de depoimentos de ordem biográfica registrados por quem conviveu com o pensador e diplomata fluminense. Reúnem-se ainda nessa publicação, como abertura, “O renascimento da teoria política francesa”, ensaio do próprio Merquior, e um apêndice de autoria de sua esposa, Hilda Merquior.

Dadas essas breves informações, qualquer um se convencerá de que se trata de uma valiosa referência bibliográfica da hoje não mais pequena fortuna crítica a respeito do vasto legado intelectual merquioriano. E o leitor não vai encontrar, nessa revista, apenas salvas de palmas, merecidas – está claro –, ao homenageado. A ele – ou melhor, à sua obra  também se dirigem ressalvas contundentes, algumas das quais, permitam-me dizê-lo, julgo pertinentes e outras injustas.

Em “Merquior, Lévi-Strauss e a modernidade”, de Maria Heloísa Fénelon-Costa, por exemplo, o autor de Razão do poema será criticado por seu conservadorismo estético, que o teria impedido de avaliar mais sabiamente (e, por vezes, mesmo conhecer bem) a arte contemporânea. Disso convencida, Fénelon-Costa escreve:

Denuncia-se em Merquior o horror à instabilidade e à dinâmica do tempo destruidor de valores já agora contestados, representativos de um passado que deseja precursor de uma duração perfeita, continuando vivo e imutável como planta que se detivesse em seu crescimento sem mostrar o envelhecer decadente. (p.109)

O organizador do número da Tempo Brasileiro, contudo, desfecha os mais fortes golpes. João Ricardo Moderno concentra-se no segundo livro do homenageado, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), que, a propósito, adquiriu há poucas semanas sua segunda edição pela editora É Realizações. Portanto, a resenha de Moderno, intitulada “Adorno e o Kulturoptimismus de Merquior”, encontra hoje ocasião mais do que oportuna para reivindicar leitura.

O termo “Kulturoptimismus” (otimismo cultural, em alemão) faz referência a seu antônimo (Kulturpessimismus), ao qual José Guilherme Merquior frequentemente recorre para (des)qualificar a Escola de Frankfurt e outras linhas de pensamento novecentistas. Nesse caso, adivinha-se no título um tom irônico que se converterá, no avançar dos parágrafos, em contestações abertas ao livro e à ensaística merquioriana.

De fato, João Ricardo Moderno acredita que, do ponto de vista da consistência analítica, a produção de Merquior decai na década de 1980. Isso devido ao viés político-governamental por onde o membro da Academia Brasileira de Letras, mais do que nunca, se embrenhava, no intuito de propagandear os valores liberais, inclusive no campo artístico e literário. De qualquer forma, Moderno vem a apontar falhas já em Arte e sociedade..., segundo o comentarista, repetidas em outros livros, pois “[...] desde sempre sua pesquisa [de Merquior] encontrou-se diante de um impasse: a ausência de objeto.” (p.87)

Essa acusação parece-me ferir um aspecto chamativo da obra merquioriana, constituída em larga medida por coletâneas de ensaio e predominantemente escrita em forma ensaística. Talvez caiba fazer a mesma acusação a outro título notório, o Verso universo em Drummond, a famosa tese que o diplomata defendeu em 1972, pela Sorbonne. Afinal, que tese teria defendido nesse trabalho não nos fica propriamente claro, o que, aliás, tem despertado em alguns o entendimento de que não se trata aí uma contribuição original.

O espírito racionalista de Merquior também não satisfaz a João Ricardo Moderno, então professor de filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que define:

O Kulturoptimismus merquioriano é a base da sua estrutura política, econômica, psicológica e cultural. O Kulturoptimismus merquioriano não foi atingido pela dúvida cartesiana. Tendo a racionalidade merquioriana como base o otimismo-acima-de-quaisquer-suspeitas, ela se deixou conduzir no sentido da irracionalidade. O otimismo por si só não é apodicticamente verificável como o puro guardião da razão. O irracionalismo do otimismo é pretender para si uma identidade imediata com a razão, quando que a razão é pura mediatidade. (p.95)

Não sou formado em filosofia como Moderno e Merquior, mas entrevejo nas linhas acima a caricatura de um pensamento que foi otimista perante as realizações e promessas da modernidade e da sociedade burguesa, especialmente nos anos 80, mas não como se vivesse no paraíso edênico de Cândido, o célebre personagem de Voltaire. Na verdade, o Kulturoptimismus em questão partia, não de uma ingenuidade besta, e sim de uma vigorosa criticidade. E essa virtude implicava recepcionar todo e qualquer produto intelectual, por maior que fosse deste o prestígio, com independência espiritual. Não me parece ser o que exatamente acontece: tanto com João Ricardo Moderno, quem contesta o ensaísta de Arte e sociedade... em nome da validade “irrestrita” da filosofia de um “Adorno, meu amigo”, (p.97) quanto com Maria Heloísa Fénelon-Costa, que abraça com mais ingênuo otimismo os paradigmas estéticos da pós-modernidade e do culturalismo.

Antonio Gomes Penna, professor de Merquior no Instituto La-Fayette, considerado pelo ex-aluno seu pai intelectual, mescla notícias biográficas e comentários sobre a abordagem merquioriana da psicanálise e da sociologia, em “Minha convivência e meu aprendizado com Merquior”. Com isso, o psicólogo traça uma síntese do percurso da vida e obra do homenageado, o que também fazem com brevidade Francisco Rezek, em “Depoimento sobre José Guilherme Merquior”, e Joaquim Ponce Leal, em “José Guilherme Merquior”.

Sergio Paulo Rouanet assina “Merquior: obra política, filosófica e literária”. O texto é aquele que encontraremos, modificado, em As razões do iluminismo (1987), em homenagem realizada na ABL em 2001 e, mais recentemente, na edição de O liberalismo: antigo e moderno (2015) pela É Realizações, onde, aliás, também constam o texto de Joaquim Ponce Leal, “O liberalismo militante de José Guilherme Merquior”, de Celso Lafer, e “Merquior e o liberalismo”, de Hélio Jaguaribe.
   
O liberalismo, sobre cujas tradições e postulados Merquior tanto refletiu, com o engajamento de um genuíno e destemido liberal na sua última década de vida, é a tônica desses quatro textos mencionados, assim como o de Antonio Paim, “Merquior e a questão do liberalismo social”. Considerando conjuntamente os cinco, às vezes o emprego de neoliberalismo como sinônimo do novo ramo liberal – o social-liberalismo – a que o autor de O véu e a máscara se filiou pode confundir e desinformar o leitor. Pois, definitivamente, José Guilherme Merquior era um crítico firme da doutrina econômica de Friedrich Hayek.

Também deve incomodar o leitor o motivo da ausência. Em torno de O liberalismo: antigo e moderno: “É de lamentar-se, [...] que [...] não tenha contemplado o liberalismo brasileiro [...] nem o pensamento e a atuação chilenos”; (p.74) em torno da obra como todo de Merquior: “É de notar-se [...] a ausência de menções a artistas ou teóricos de arte latino-americanos (até mesmo brasileiros) [...]”; (p.110) Nada mais fácil do que apontar ausências em trabalhos alheios.

Com “O renascimento da teoria política francesa”, ensaio-resenha de abertura da revista, o próprio José Guilherme Merquior saúda o surgimento das primeiras intervenções de Luc Ferry e de Alain Renaut, pensadores que se desviaram dos caminhos percorridos pelos estruturalistas e pós-estruturalistas, para resgatar a legitimidade da razão como instrumento cognitivo fundamental e do liberalismo como orientação das sociedades rumo à consumação dos valores de progresso e liberdade. Trata-se de um dos últimos textos que Merquior escreveu.


O apêndice de Hilda Merquior é uma singela participação no fórum batizado com o nome de seu marido e promovido pelo Instituto Tancredo Neves. O evento ocorreu em novembro de 1991, menos de um ano após o falecimento do grande crítico de literatura, de arte e de ideias.   

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

João Cabral de Melo Neto, a Geração de 45 e uma polêmica merquioriana

Consta em Razão do poema (1965) um dos textos mais virulentos de José Guilherme Merquior. Trata-se do “Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45”, datado de 1962.

Como se vê, o título não adia nem disfarça a reprovação agressiva ao grupo, cujo programa e realizações o então jovem crítico contrasta com os feitos do modernismo de 1922, o de 1930 e com a obra de João Cabral de Melo Neto. O propósito dessa crítica-manifesto não era apenas de descer a lenha na poesia que, no seu conjunto, parecia a Merquior afirmar-se como alternativa e esgotamento do modernismo, mas também de proclamar a perenidade do legado modernista e, por fim, de salientar as diferenças poéticas e qualitativas de João Cabral, segundo alguns, integrante daquela mesma geração de 45.

As convicções expostas em “Falência da poesia...” replicam as primeiras linhas do ensaio imediatamente anterior de Razão do poema, no qual se brada “a certeza de que o espírito de 22 se conserva absolutamente vivo, e ainda mais vivo, porque depois dessa data [1922] e da fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou verticalmente a poesia brasileira”. (2013, p.40)

Nesse princípio da década de 1960, Merquior enxergava na “saudável penetração brasileira”, na “proximidade da terra e vizinhança do povo” uma das mais importantes conquistas do modernismo de Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Oswald de Andrade & Cia. (2013, p.40) Em parte essa perspectiva de critério acompanharia José Guilherme Merquior por toda a vida: afinal, para ele, o melhor caminho da poesia sempre será o “da intimidade com o social”, “na direção dos grandes temas objetivos, sociais e filosóficos que a preparação da linguagem dos mestres do modernismo tornou possível e imperiosa”. (2013, p.50) Por outro lado, arrefecerá a associação desse caminho e dessa direção prescritos com uma “urgente precisão de nacionalidade”. (2013, p.53)

Em “O Brasil no limiar do século 21”, conferência que proferiu em Paris pouco antes de sua morte, Merquior ponderava que, durante a primeira metade do século passado,

[a] problemática da identidade nacional [...] era inteiramente normal e legítima [...] e que era mesmo necessária para nos proporcionar a consciência de nossa realidade étnica, cultural, religiosa, filosófica... [...] E agora, digamos um meio século mais tarde, [...] estamos em via de deixar essa problemática, de deslocá-la simplesmente para uma nova problemática, que já não é mais a problemática da identidade, mas a da integração [tanto das camadas mais pobres a um melhor padrão de vida quanto do Brasil à América Latina e à “economia internacional”]. (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1507200107.htm)

Pois bem. Na visão de muitos críticos de meados do século XX, o fato de João Cabral ter começado a publicar sua obra amadurecida, cujo marco inicial foi O engenheiro, precisamente em 1945, evidenciando nela especial preocupação formal, justificou, conforme critérios cronológico e estético, sua inserção na geração de 45, que em linhas gerais se opunha ao acusado provincianismo nacionalista e ao suposto desleixo formal dos modernistas dos anos 20. Na Antologia da nova poesia brasileira, organizada por Fernando Ferreira de Loanda, na qual se coligem versos dos poetas de 45, vistos estes com iguais ou semelhantes concepções e propósitos, encontramos poemas de João Cabral de Melo Neto. E o quarto capítulo, dedicado à “poesia modernista na década de 40”, da História da poesia modernista (1991), de Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, ensina que o autor de A educação pela pedra integra a geração de 45, ao lado de André Carneiro, Ledo Ivo, Bueno de Rivera e Domingos Carvalho da Silva. A autora fundamenta essa inclusão, entendendo que “45 foi uma geração que nasceu oprimida pelo estado novo [sic], pelas ameaças de prisão, exílio e tortura, desesperançada com a falta de perspectiva do presente”. (1991, 76) Sendo assim:

Só um contexto histórico tão tenso e opressor e um grupo de poetas tão preocupados com a forma poderia ter gerado um poeta como João Cabral, sério, preocupado, obsessivo, torturado que radicaliza a plataforma estética de sua geração. Sua poesia se endureceu tanto que se transformou em arma para lutar contra a opressão e a ditadura. (1991, p.76)

Todavia, esse enquadramento geracional da poética cabralina parece ter sido, desde cedo, controverso. Anazildo Vasconcelos da Silva, em tese defendida a 1977 logo convertida em livro (1978), manifestando ressalvas relativas à geração de 45, informa, pelo contrário, que “de imediato identificado com a poética de 22, João Cabral de Melo Neto tem sido invariavelmente excluído do grupo de 45”. (1978, p.55)

Conquanto, em comentário de 1982 coligido em O elixir do apocalipse (1983), tenha procurado se retratar de certas generalizações e juízos apresentados vinte anos antes naquele ensaio de Razão do poema, José Guilherme Merquior angariou para toda a vida e depois desta uma “fama – justificada – de detrator da geração de 45”. (1983, p.172) Até porque o “Falência da poesia...” converteu-se, logo, num daqueles textos incontornáveis da fortuna crítica acumulada em torno dos poetas dessa geração.

Diante desse ensaio de juventude, cabe a pergunta: por que tamanha virulência? Na ensaística merquioriana, é patente o disseminado caráter assertivo a ponto, por muitas vezes, da agressividade, postura decorrente da criticidade e da autonomia de pensamento do autor e de seu habitat discursivo, que foi a polêmica. Mas de fato esse ensaio republicado em Razão do poema figura, ao lado, por exemplo, de “O estruturalismo dos pobres”, como uma das mais crispadas passagens merquiorianas. Por que tamanha birra da geração de 45, expressa de novo, em dose menos concentrada, em texto que integrará O fantasma romântico e outros ensaios, de 1980?

Uma primeira motivação para tal reação do autor poderia residir na quase contemporaneidade da poesia dessa “dege(ne)ração”, quando José Guilherme Merquior escreve sua – acho que posso chamá-la assim – crítica-manifesto. Naturalmente, um incômodo próximo a nós incomoda-nos mais do que um incômodo distante no tempo. Acresceria que parcela da geração de 45 decretara a necessidade da retomada de uma concepção criativa classicizante – neoparnasiana, segundo Merquior e outros autores –, tendo vozes importantes do grupo refutado o legado modernista especialmente da década de 1920.

Ao longo de sua vida intelectual, José Guilherme Merquior cada vez mais se orgulharia em se identificar como um herdeiro de Voltaire, na condição de liberal neoiluminista, e, sobretudo quando jovem, de ter se instruído, em matéria de linguagem, pela iconoclastia de Mário de Andrade e outras proeminências das primeiras gerações de nosso modernismo. Convicto da importância e da validade do legado desses poetas, Merquior devia decodificar nas rejeições de 45 uma espécie de ataque à sua linhagem de crítico de literatura e de ideias.

Outra justificativa da bronca deve referir-se à qualidade poética da geração de 45, significativa e sinteticamente descrita na citação do verso famoso de Manuel Bandeira, que lemos nos últimos parágrafos do ensaio de Merquior: “a poesia que poderia ter sido e não foi”. (2013, p.58) Adonias Filho, no prefácio à Antologia da nova poesia brasileira, destaca que os versos da geração de 45 ansiaram por classicizar o modernismo, donde, em muitos casos, o retorno sistemático à regularidade métrica, à rima, ao léxico e à sintaxe solenes, em contraste com o suposto desleixo dos modernistas de 1920. Também Fernando Ferreira Loanda situou-se entre os que enxergavam uma “vizinhança” entre os poetas de 45, marcados pelo “rigor formal em proveito de uma temática que se interioriza, [...] em busca dos extremos valores humanos”, (1970, p.15) e “o clássico modernista” de um Cassiano Ricardo e de um Carlos Drummond de Andrade, os quais “não cedem o mínimo à estrutura e à expressão na tessitura de um verso incensurável”. (1970, p.15)

Ora, José Guilherme Merquior saudou, no próprio Razão do poema e em textos posteriores, o modernismo classicizado de Claro enigma e de muitos versos de Murilo Mendes. Contudo, a sintonia de propostas daria frutos de sabores distintos: para Merquior, a classicização do modernismo de Drummond, de Murilo e de Cabral “foi”; o de 45 “poderia ter sido, mas não foi”. Ou, palavras do próprio Merquior, “o lirismo bem Kitsch da maior parte da geração de 45” teria, na verdade, efetivado uma “desmodernização da poesia”. (1983, p.146)

Há quem, mais recentemente, conteste julgamentos e compreensões como a de Merquior em torno da geração de 45, alegando a heterogeneidade de um grupo que, por isso mesmo, sequer deveria ser denominado de “geração”. No caso específico de “A falência da poesia...”, não se pode acusar seu autor de ignorar as distinções poéticas, mesmo qualitativas, entre um e outro poeta aí comentado. Concordando-se ou não com a aplicabilidade conceitual ou a validade ontológica do termo geração para agrupar Ledo Ivo, Domingos Carvalho da Silva, Bruno Rivera & Cia., o fato principal é que José Guilherme Merquior alveja determinada postura que ele verificou no comportamento literário de alguns desses nomes que estrearam na década de 1940.

Inicialmente, a referência de avaliação adotada não apenas por Merquior, mas por quase todos os críticos que emitiram opinião, favorável ou desfavorável, acerca da geração era o modernismo. Dentre os primeiros a recepcionarem os então novos poetas, Alceu Amoroso Lima classificava-os em 1947 como neomodernistas, dada a continuidade, segundo o crítico, que pareciam estabelecer em relação à literatura de entre 1920 e 1930. No mesmo ano, Sérgio Milliet assinalava em contrapartida o antimodernismo de 45, diagnóstico endossado por José Guilherme Merquior.

Antonio Candido dará depoimento muito interessante a respeito do tema. Confessando ter acompanhado aqueles leitores e críticos que, nos anos 30 e 40, se animavam “mais com o modernismo como crítica do que com o modernismo como invenção”, Candido aponta na geração de 45 mudança do acento político dessa recepção do legado dos primeiros modernistas, os quais teriam sido atacados pelos então novos poetas, sobretudo, “por motivos estéticos”. (2004, p.74)

Fosse como fosse, também João Cabral de Melo Neto interveio ele mesmo no debate, no qual se tocava, tantas vezes, no seu nome. Em quatro artigos veiculados pelo Diário carioca, em 1952, conjunto intitulado “A geração de 45”, o poeta avaliou o grupo, de modo a não se identificar, pelo menos explicitamente, como um de seus integrantes, cujo “denominador comum”, aliás, ainda não havia sido “estabelecido com a desejada precisão”. (1999, p.741)

No primeiro dessa série de textos, Cabral destaca a “capacidade polêmica de muitos desses poetas novos”, “gosto pelos bate-bocas da vida literária” (1999, p.741) que provavelmente poderá ter incentivado as reações merquiorianas no mesmo diapasão discursivo. Contudo, o foco da avaliação se volta para a acusada “importância limitada” da geração de 45, “pelo fato de não se haver voltado violentamente contra a poesia que a precedeu”, desse modo, “[deixando de criar] uma nova direção estética para a Literatura Brasileira”. (1999, p.742) Defensor de outra cobrança crítica, e mantendo a referência do modernismo da década de 1920, João Cabral aproxima os poetas de 45 aos de 30, dos quais “não me consta que alguém, em nome da necessidade de renovação pela revolta, houvesse exigido [...] o retorno ao que existia antes de 1922”. (1999, p.742) Sendo assim:

A atitude dos poetas da geração de 1945 também não podia ser uma atitude de revolta. Na verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo modernismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 30, juntamente com os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate, estabeleceram dentro desse território, núcleos de exploração importantes. Mas se alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos exploradores mostram-se cansados ou dispostos a abandonar o terreno, nada disso é prova contra a riqueza que ali ainda existe. (1999, p.743)

João Cabral identifica os poetas de 45 mais como “uma geração de extensão de conquistas” do que “uma geração de invenção de caminhos”, (1999, p.744) não se tratando aí, necessariamente, de uma atribuição de importância menor em relação a 22. Para Cabral, aliás, o pós-guerra parece ter instaurado uma novidade na história da literatura: já não poderia haver “uma definição geral de poesia, válida para nossa época”, mas apenas “definições particulares, individualistas”, (1999, p.746) de modo a acentuar-se a relatividade de qualquer decreto poético com pretensão a aquiescência coletiva, a partir de então. Donde ainda, segundo o poeta nordestino, mostrar-se impraticável, nessa matéria, qualquer “atitude radical de revolta”. (1999, p.747) Em tais circunstâncias, à crítica não caberia cobrar “desses poetas de 1945, desde o primeiro momento da luta, uma completa vitória”. (1999, p.747)

Ao que parece, se o poeta-engenheiro se sentia identificado com a chamada poesia de 45, com esta ele não se identificava plenamente. E José Guilherme Merquior prepara a conclusão de “Falência da poesia”, protestando nestes termos:

Não sabemos se é por ingenuidade ou malícia que se situa João Cabral de Melo Neto entre os autores dessa geração. Deve ser por uma tola mistura de ambas as coisas. Mas a sua subtração do grupo é obrigatória. Sua atitude de rigor, de concentração é toda consequente e penetrante: nada tem que ver com as camisas de força parnasianas desses senhores. Seu verso curto é também único. Seu realismo está a quilômetros de distância das pobres fantasias dessa versalhada; e a coragem singular, grandiosa e áspera na sua virilidade, com que enfrentou e venceu a tarefa da poesia social brasileira faz dele um cavaleiro solitário entre esses ilustres conformistas. Há, portanto, entre um e outros, apenas uma incômoda convergência cronológica. (2013, p.58)


Referências bibliográficas:

CANDIDO, Antonio. Recortes. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.

LOANDA, Fernando Ferreira de (org.). Antologia da nova poesia brasilera. 2ª ed. Rio de Janeiro: Orfeu, 1970.

MELO NETO, João Cabral. “A geração de 45” in Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. pp.741-752.

MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Coleção Logos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. História da poesia modernista. São Paulo: João Scortecci, 1991.


SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Lírica modernista e percurso literário brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

O social-liberalismo de José Guilherme Merquior

A voga do neoliberalismo nos anos 80, sendo seu mentor teórico maior o economista austríaco Friedrich Hayek e seus mais ilustres praticantes o presidente norte-americano Ronald Reagan e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, parece ter sido um dos grandes estímulos para que a confusão entre uma parte, o ideário neoliberal, e o todo, a tradição longeva e multifacetada do liberalismo, prosperasse e permanecesse durante tão longo tempo, até hoje.

Talvez por isso, além do fato de ter contribuído na campanha eleitoral à presidência e se envolvido com o governo de Fernando Collor de Mello, vira e mexe se considere José Guilherme Merquior um entusiasta garoto-propaganda do neoliberalismo. Com a palavra, o próprio autor de O argumento liberal:

O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário para a criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue a seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito. (1983, p.94-95)

Uma das primeiras páginas de As ideias e as formas também distingue a espécie de liberalismo em nome da qual o diplomata e membro da ABL militou na última década de sua vida:

Qualquer que seja o sentido da voga neoliberal em outros quadrantes, entre nós [brasileiros] não pode haver liberalismo autêntico que não seja, essencialmente, um social-liberalismo. E isso já impõe a serena ultrapassagem da antiga querela contra o estado. Num país com as nossas carências de capitalização e de serviços sociais, o antiestatismo sistemático não tem como ser um combate liberal, pelo simples motivo de que sua aplicação atrofiaria ou imobilizaria no Estado um dos princípios, senão o principal instrumento de criação efetiva de liberdades – de oportunidades de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população. A crítica “liberal” que não tem olhos de ver isso não é crítica – é preconceito; não visa a promover a liberdade – visa a preservar o privilégio. (1981, p.28-29)

Não terá passado despercebido ao leitor que as duas passagens acima revelam um posicionamento que chega a surpreender tamanha sua atualidade na conjuntura nacional. De fato, se esse social-liberalismo, na verdade, não se viu em quase nada correspondido na gestão collorida, pode-se ao menos verificá-lo como orientação geral dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Afinal, pontuo, sem grandes pretensões, que: a) o enxugamento da máquina pública e o equilíbrio fiscal do presidente tucano consistiriam na tentativa de reduzir a dimensão do Estado, conjugada com um assistencialismo que se efetivou, p. ex., no projeto Bolsa Escola e no assentamento de número razoável de trabalhadores rurais; b) o presidente petista, por sua vez, ampliou e consolidou a política assistencialista, conquanto voltasse a hipertrofiar a máquina estatal; c) fosse como fosse, ambos os administradores federais mantiveram e até mesmo fomentaram a economia brasileira no eixo do mercado capitalista globalizado.

Essa mesma articulação, que procura resultar no equilíbrio entre um Estado de bem-estar social, de matriz keynesiana, e condições as mais favoráveis possível à iniciativa privada, agravou a confusão conceitual. Para Ricardo Antunes, autor de A desertificação neoliberal no Brasil (2005; a 1ª edição desse livro é de 2004), o social-liberalismo não passaria de um “eufemismo designado aos socialistas e social-democratas que praticam o neoliberalismo”. (2005, p.165) Opinião idêntica à que lemos em O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal (2013), de Rodrigo Castelo, segundo o qual o social-liberalismo consistiria numa “variante ideológica” do neoliberalismo. (2013, p.376)

Saliente-se que ambos os autores citados acima declaram-se marxistas. Nesse mesmo posicionamento político-intelectual, Gilberto Felisberto Vasconcellos rotulou, com ironia, o pensamento merquioriano de “neoliberalismo iluminista”, (2004, p.29) no livro O Brazil no prego (2004).

Talvez devamos reconhecer que muitos empreendimentos social-liberais, seja no Brasil, seja no mundo, avancem, de fato, para dentro das fronteiras do neoliberalismo. Isso não implica, todavia, que se trate necessariamente do disfarce de um lobo (o neoliberalismo) sob pele de cordeiro (o socialismo). É que a própria teoria do social-liberalismo prevê uma margem de manobra que permite ao poder público, em vista das conjunturas diversas, pender seja mais para este lado, seja mais para aquele, seja mais para um outro.

O filósofo político italiano Norberto Bobbio, notório defensor do social-liberalismo, tinha consciência dessa mobilidade e o que dela decorria: “Deve-se saber quanto de liberalismo e quanto de socialismo, na prática, pode-se pactuar em uma determinada situação. A dificuldade está, justamente, em determinar a dosagem.” (em entrevista concedida em 1994 a Luiz Carlos Bresser-Pereira; link nas referências bibliográficas)

A veemência, muito mais retórica e sloganesca do que propriamente crítica, com que os marxistas atacam o social-liberalismo parece advir do que José Guilherme Merquior os acusava, por sua vez, de índole dogmática e autoritária. Nesse caso, a teoria política transmutou-se em fôrma, na qual a realidade, à revelia de toda e qualquer contingência, deve ser encaixada, ainda que a golpes de foice e martelo.

O pensamento merquioriano, de índole iluminista (mas será mesmo que também neoliberal?), se valeu do que muito bem definiu o célebre jurista Miguel Reale – de uma racionalidade concreta. Quer dizer, Merquior não se aferrou ou procurou não se aferrar a uma ideologia, engessada por princípios de ordem idealista. O intelectual, que se lançou ao público como teórico e crítico literário ligado a certa tradição marxista nos anos 60, não se permitiu fingir desconhecer os insucessos econômicos, os cabrestos culturais e as atrocidades sociais que todos os exemplos socialistas-comunistas reais (União Soviética, China, Camboja, Cuba, Romênia etc, etc, etc) apresentaram ao longo do século XX. Contudo, a cartilha do neoliberalismo não lhe parecia ser a via de solução para países como o Brasil, povoado de discrepâncias sócio-econômicas.

Um socialista-comunista pensa, no limite, que o mundo deve tornar-se inteiro socialista-comunista. Um neoliberal, que o mundo deve tornar-se inteiro neoliberal. O social-liberalismo pressupõe um leque maior de opções e adaptações por que cada contexto nacional ou mesmo regional clama. Tanto a ambição de remodelar a natureza humana, como o quer o socialismo-comunismo, quanto a permissividade concedida à natureza humana pelo neoliberalismo, seriam caminhos de contornos antidemocráticos.

O social-liberal José Guilherme Merquior sabia que não há nem pode haver soluções simplistas e apriorísticas neste mundo tão complexo e contraditório.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula). 2ª ed. Campinas: Autores Associados, 2005.

CASTELO, Rodrigo. O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. O argumento liberal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.


VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Brazil no prego. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

Link da entrevista de Norberto Bobbio: http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/NorbertoBobbio.htm