sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Conselhos acatados e elogios merecidos de Leodegário A. de Azevedo Filho

Nome de destaque no panorama da crítica literária brasileira da segunda metade do século passado, Leodegário Amarante de Azevedo Filho publicou livros de interesse permanente, a exemplo de suas reflexões sobre a constituição do verso, expostas em A técnica do verso em português (1971), além de títulos mediante os quais contribuiu para a compreensão de novas metodologias analíticas, como em Estruturalismo e crítica de poesia (1970). Em Introdução ao estudo da nova crítica no Brasil, Leodegário A. de Azevedo Filho escreveu a nota abaixo transcrita, aliás publicada em livro que, de pouco tempo (meses), antecede Razão do poema:


“A contribuição de José Guilherme Merquior, no terreno da crítica de poesia, já se faz sentir no meio literário brasileiro, embora o jovem autor não tenha ainda publicado nenhum volume que indique precisamente a sua dimensão. Os seus trabalhos esparsos são publicados em suplementos literários, jornais e revistas, e todos de excelente qualidade. Tivemos a oportunidade de assistir a um curso que o autor ministrou sobre a poesia brasileira. Não deve parar. Pelo contrário. Deve prosseguir, e publicar em volume, pelo menos, uma seleção de seus melhores artigos esparsos. Muito lucrará a literatura brasileira com a contribuição de gente moça como José Guilherme Merquior, que se apresenta com seriedade nos estudos publicados e dotado de excelente método de trabalho. Não há dúvida de que estamos diante do melhor crítico de poesia de nossas letras, no período neo-modernista, em sua mais recente geração.” (p.100)


(Introdução ao estudo da nova crítica no Brasil: ensaio de história e crítica literária. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1965)

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Eduardo Lourenço e José G. Merquior


Entre 3 e 5 de dezembro de 2013, realizou-se, no campus da UFPR, em Curitiba, evento denominado Literatura, identidade e cultura nos noventa anos de Eduardo Lourenço. Recebemos o grato convite para pronunciar uma comunicação. Propusemos a de título “Eduardo Lourenço e José Guilherme Merquior: visões de aquém e além-mar sobre o modernismo”.


Para quem o desconhece, Eduardo Lourenço é um dos maiores nomes do pensamento português do século XX. De formação filosófica, concentrou suas reflexões na literatura pátria, de onde vem, há tanto tempo, visando a apreender a mitologia do povo português. Pois, que outra manifestação cultural de nossa ex-metrópole se ombreia com a importância milenar da literária? A ideia laurencina de mitologia, em breves palavras, se encerra numa compreensão histórica para além do factual, compreensão que se volta, sobretudo, para como a história se realiza no imaginário de um povo, de modo a se configurar como identidade-cultura. Nisso residia o cerne de nossa tentativa de aproximar, comparativamente, o pensador português e o brasileiro, afastados entre si não apenas em termos geográficos, mas também de geração (Lourenço nasceu em 1923; Merquior, em 1941).

            A comunicação analisava dois textos específicos: “Da literatura como interpretação de Portugal” e “Guimarães Rosa e o terceiro sertão”. No primeiro, a hoje célebre conferência proferida em 1975, que integra o volume O labirinto da saudade (1978), Eduardo Lourenço rastreia o percurso de mais de um século da produção literária de seu país, do romântico Almeida Garrett ao modernista Fernando Pessoa, no intuito de defender que a problematização da nação portuguesa é o principal motivador criativo desses autores que se tornaram canônicos. Além disso, segundo o autor de Heterodoxias, estaria na mudança radical de lidar com essa tradição de pensar a pátria em forma literária, o ponto de apoio a partir do qual se teria afirmado a ruptura modernista em Portugal.

            Em “Guimarães Rosa e o terceiro sertão”, texto datado de 1997, coligido em A nau de Ícaro (1999), Lourenço aborda a literatura brasileira. Esse fato revela a amplitude lusófona, e não somente lusitana, do horizonte de seus interesses. Aliás, o autor português chegou a lecionar na Universidade Federal da Bahia, na década de 1950. O que nos instigou no texto em questão refere-se à revisão contestadora relativa ao marco da autognose cultural promovida pela literatura no Brasil. Para Lourenço, mais responsável por esse novo e inovador grito do Ipiranga do que a Semana de Arte Moderna de 1922 e suas consequências, teria sido a obra de Euclides da Cunha, especialmente Os sertões, publicada em 1902, na medida em que ela converte o espaço sertanejo no espaço mítico nacional.

            Objetivamos verificar, em nossa comunicação, a validade das hipóteses de Eduardo Lourenço, com base no postulado merquioriano do casamento entre as ideias e as formas, a nosso ver, consistente em “Da literatura como interpretação de Portugal”, a ponto de esclarecer ou evidenciar um critério estético-ideológico do cânone literário português, mas claudicante em “Guimarães Rosa e o terceiro sertão”, por desconsiderar as inovações da forma/linguagem propostas pelo grupo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade e seus herdeiros.

            Seja como for, deixamos de fora da comunicação uma passagem de “Cultura e lusofonia ou os três anéis”, texto de Eduardo Lourenço, também pertencente ao livro A nau de Ícaro, no qual o autor sublinha a autonomia da cultura brasileira frente a Portugal, assim caracterizando nosso País:

O Brasil real, o Brasil profundo, o Brasil que quase há dois séculos é uma nação independente, com uma cultura poderosa, o Brasil de Machado de Assis, de Guimarães Rosa, de José Guilherme Merquior [...]. (LOURENÇO, Eduardo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.168.)
           

            Tal reconhecimento dispensa nosso comentário.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Razão do poema, um livro de conciliações

Publicado em 1965, reúne ensaios uns inéditos e outros anteriormente publicados em jornais, produção que abarca um período de cerca de quatro anos (1962-65). O jovem autor, antes mesmo dessa estreia em volume, já impressionava e conquistava a admiração da elite literária brasileira. Gente do porte de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro o havia convidado para selecionar poemas do simbolismo ao modernismo, os quais viriam a integrar a antologia Poesia do Brasil, de 1963. Já o poeta itabirano celebrara em versos (conforme muito gratamente consta na edição de Razão do poema da É Realizações) o casamento desse que se tornava, desde cedo, uma das personalidades mais instigantes da história da inteligência de nosso País, com Hilda Vieira de Castro.

A leitura do conjunto dos textos aí coligidos incute a sensação de que temos em mãos um livro problemático. A questão é sinalizada pelo próprio José Guilherme Merquior, em sua “Advertência”, na qual noticia que os ensaios do volume “não representariam minhas ideias atuais, quer sobre crítica, quer sobre estética”, conquanto tivessem sofrido alterações no sentido de “atenuar essa distância”. (p.19) Sendo assim, surge a pergunta elementar: por que publicá-lo, não havendo sequer concordância do próprio autor? Seja qual for a resposta (não sou capaz aqui de apresentar a minha hipótese[i]), o livro registra a intensa inquietação intelectual do autor em um curto espaço de tempo – o que nos parece apontar para uma procura (angustiada, talvez) de configurar pensamento crítico e estético o mais convincente e confiável possível, a seus próprios olhos, sem nenhuma dúvida, exigentíssimos. Essa circunstância inicial, à qual sucedem diversas modulações de ideias e mudanças de ponto de vista, ao longo das décadas de 1960, 70 e 80, contrasta com o discurso merquioriano, caracteristicamente assertivo e polêmico – marca, aliás, de toda sua enorme produção de pensador.

Pensador, sobretudo, foi Merquior; mais do que um crítico literário[ii]. E Razão do poema o atesta. O leque de interesses abanado com segurança e sedução nesse primeiro livro (literatura e artes à frente, mas também filosofia, sociologia, antropologia, psicanálise, em comunhão necessária para o aprofundamento da compreensão do próprio objeto literário e artístico) vai, ao longo dos anos, se ampliando e ganhando maior estofo em títulos como Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), A natureza do processo (1982) e The Western Marxism (1986). De qualquer forma, a publicação de Razão do poema naquela ocasião constitui um marco que ultrapassa o contexto particular merquioriano, para dizer respeito a uma época de renovação da crítica literária brasileira.

De fato, a ampliação e a consolidação do ensino universitário (especialmente dos cursos de ciências humanas e, dentro destas, o de Letras), em processo desde a década de 1930, preparavam uma maneira de lidar com a literatura que mudaria sensivelmente a crítica literária nacional. Se um Álvaro Lins, um dos representantes maiores dessa atividade durante a primeira metade do século XX, se impunha pelo saber autodidata e pela análise desprovida de prévia e consistente fundamentação teórica, metodológica e de coerência terminológica[iii], um Afrânio Coutinho, instruído nos Estados Unidos pelo New Criticism, envidará, a partir de 1948, todos os esforços (travando inclusive longeva polêmica com o próprio Álvaro Lins), para que os críticos literários buscassem formação acadêmica regulamentada, abandonado o tradicional suporte de interlocução (os rodapés dos jornais) e passando a divulgar suas análises em gêneros textuais como o artigo e o tratado.

A década de 1960 consuma, em termos, a vitória de Coutinho. Ou, pelo menos, atende significativa parcela de suas reivindicações, sendo o surgimento da primeira Faculdade de Letras, a da UFRJ, no fim daquele decênio, uma de suas maiores conquistas. Mas acresce o fato de a disciplina Teoria da Literatura entrar na grade curricular dos cursos de Letras (via de regra, adotou-se o manual de René Welleck e Austin Warren na bibliografia fundamental da disciplina). E é quando também a pós-graduação se torna oferta e demanda das novas gerações que se interessam pelo saber literário. Estavam criadas, portanto, as condições necessárias para se renovar o exercício crítico no Brasil.

Razão do poema se situa em tal contexto de transição[iv], no qual se viam convivendo o ensaísmo aparelhado pelos novos saberes teóricos e analíticos e a constituição da linguagem acadêmico-científica. A década de 60 também dá continuidade à canonização do modernismo brasileiro, para o que o primeiro livro de José Guilherme Merquior contribuiu significativamente. Trata-se, com efeito, de preocupação central de Razão do poema. Dos treze ensaios que integram a parte inicial do volume, oito detêm-se sobre poemas específicos (“Uma canção de Cardozo”, “‘A máquina do mundo’ de Drummond”, “Onda mulher, onde a mulher”); poéticas de autores (“Murilo Mendes ou a poética do visionário”, “Perfil de Cassiano”, “Serial”) enquadrados em nosso modernismo, louvado nessa espécie de ensaio-manifesto que são a “A poesia modernista” e o agressivo “Falência da poesia ou uma geração enganada e enganosa: os poetas de 45”. Cumpre assinalar, a respeito desse conjunto, a contribuição com textos que pertenceriam a uma das primeiras safras da fortuna crítica acerca da obra de João Cabral de Melo Neto; este, segundo Merquior, realizador de uma “evolução que é de longe a mais significativa dos dois últimos decênios da poesia nacional”. (p.113)

Não obstante o próprio autor expressar consciência de que suas ideias sobre crítica literária e estética se diferenciem, em 1965, da maioria dos textos coligidos nesse volume, aí o leitor já tem a oportunidade de se deparar com marcas estilísticas e ideológicas que acompanharão Merquior por toda sua obra. Uma dessas marcas é a do discurso que se estrutura, predominantemente, no propósito da polêmica. No caso de Razão do poema, “Falência da poesia...” consiste no texto que melhor representa esse veio discursivo, aprendido, informa a “Nota antipática” de Poesia do Brasil, da “atitude artística e crítica de [19]22”.[v] Isso, aliás, explica de Merquior não só o apego à polêmica (versão em linguagem crítica do espírito iconoclasta da primeira geração modernista), assim como o interesse permanente pelo próprio modernismo brasileiro. Todavia, a disposição ferina para a polêmica de Afrânio Coutinho, em defesa de quem Merquior se manifesta no livro, no intuito de isentá-lo da acusação de formalista puro sangue[vi], pode ter inspirado ou servido de modelo, mais proximamente, ao jovem autor.[vii] Na verdade, a crítica literária brasileira (e não apenas a brasileira) está repleta de episódios polêmicos, tendo como protagonistas um Sílvio Romero, no século XIX, e, no século passado, um Agripino Grieco, a quem João Luiz Lafetá denomina, por antonomásia, o “boca-do-inferno da crítica”. (p.43) Aliás, o eventual recurso ao anedótico e o humor trocadilhesco – que temperou o debate com Ricardo Musse (o texto “Musse ou chocolate”) e no comentário impagável em Saudades do carnaval sobre o gravador Caraglio “(a quem a crítica luso-brasileira atribui tradicionalmente a ereção de um das obras mais penetrantes do século...)” (p.121) – recordam bastante Grieco. Também podemos mencionar a verve de Mário Faustino e mesmo boa parte da geração de 45, da qual João Cabral de Melo Neto, em artigos de 1952, destacou “a capacidade polêmica” e o “gosto pelos bate-bocas da vida literária”. (p.741)[viii]

Outra marca de todo o pensamento merquioriano reside no racionalismo, anunciado e defendido em Razão do poema, com a veemência militante característica do autor, nas linhas finais da “Advertência”. A razão – palavra significativamente presente no título do livro – demarca as concepções críticas do autor em dois âmbitos primários: criativo e analítico. Para Merquior, tanto a produção literária (seja em verso, seja em prosa) quanto a recepção da literatura (especialmente no tocante à análise da obra) deveriam se constituir racionalmente. Em outros termos, na querela entre razão e emoção como motivação precípua para a escrita literária, José Guilherme Merquior compreende que a primeira controla ou disciplina a segunda.[ix] Do contrário, não só a fantasia interditaria a comunicabilidade (elemento fundamental para a poesia, segundo o autor), mas também a emoção recairia na inefabilidade da experiência subjetiva do poeta. Isso implica a necessidade de se estar atento, na leitura crítica, a todos os detalhes formais e temáticos do texto. De fato, as análises desenvolvidas em Razão do poema, à maneira do close-reading do New Criticism, observam o poema verso a verso, salientando o papel expressivo da repetição de fonemas, da escolha de vocábulos, da configuração sintática e imagética (metáforas, símbolos) na sua constituição semântica total.

Sendo assim, José Guilherme Merquior subscreve a validade da metodologia formalista  e, ao mesmo tempo, mantém o cunho judicativo da crítica literária tradicional, cada vez mais abandonado pelas propostas ditas científicas, a exemplo do que vinha a postular, nessa área, o estruturalismo (destaco que o auge do estruturalismo na França se deu exatamente em meados da década de 1960). Para avançarmos mais um pouco na compreensão de Razão do poema, vale dizer que, para Merquior, crítica literária é atualização – atualização no sentido de resgatar os valores poéticos da tradição, ou seja, alertar as novas gerações dos malefícios de se fechar os olhos às conquistas dos autores precedentes; e atualização também no sentido de avaliar a literatura contemporânea, sem mesmo privilegiar a literatura anterior, como era procedimento usual na época entre professores dos cursos de Letras e alguns críticos, resistentes a discutir, de alma isenta de preconceitos, a produção modernista brasileira.

Não é casual, portanto, que Merquior analise textos e autores do passado (Gonçalves Dias, Bocage, Ronsard, Hoffmann) e do presente (do modernismo de 22 a Fernando Mendes Vianna e Mário Chamie), sempre na articulação comparativa entre o que se escreveu outrora e o que então ou mais recentemente se escrevia. Donde, a título de exemplo, o romantismo da “Canção do exílio” de Gonçalves Dias ser cotejada com o sentimento de exílio modernista, em “O poema do lá”; e o significado da morte da amada, em “Uma canção de Cardozo”, ser captado a partir do paralelo com a lírica petrarquiana.

Ao racionalismo e ao caráter judicativo, na defesa da literatura como crítica e da crítica como razão, e no louvor da capacidade de se “instaurar uma poesia do pensamento” (p.180), acrescenta-se, como arcabouço metodológico e teórico, um competente diálogo com a fenomenologia (uma das epígrafes de Razão do poema foi extraída da obra de Husserl), com o marxismo (Lukács é uma das referências constantes do livro), com a sociologia (cuja perspectiva nos estudos literários Merquior adota; nisso acompanhando, de boníssimo grado, Antonio Candido), com a antropologia (o jovem autor já estava informado da obra de Lévi-Strauss, e o último ensaio de Razão do poema, em certa medida, preparam as futuras reflexões publicadas no volume A estética de Lévi-Strauss, em 1974, originalmente escrito em francês), com a estilística de Auerbach e Curtius (outra corrente da crítica moderna, ao lado da sociológica, muito importante para a concepção merquioriana de análise literária), com o New Criticism (cuja índole formalista, ao contrário de autores como Wilson Martins, em Crítica literária no Brasil, e Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, em História da poesia modernista, Merquior quer desvincular, embora fossem contemporâneas, da poética neoparnasiana da geração de 45).

Esse repertório, – como resistir à tentação do clichê? – assombroso para um autor de vinte e poucos anos dominá-lo com tamanha segurança e propriedade, garante a não aplicação subserviente de uma teoria específica, como já acontecia e ainda acontece no universo acadêmico nacional, dislumbrado diante das novidades intelectuais dos grandes centros pensantes. Por causa dessa postura, Flora Süssekind, no texto “Rodapés, tratados e ensaios”, publicado no livro Papéis colados, não classifica José Guilherme Merquior nem como crítico de rodapé (“ora mais próximo do noticiarista, ora do cronista”), nem como “o universitário de modo geral”, mas como “teórico, desdobramento do personagem anterior e tendo como marca distintiva indescartável a autorreflexão”. Todavia, Süssekind observa que esse terceiro tipo de crítico se subdivide, numa vertente da qual se situam aqueles que “jamais abandonaram uma dicção ensaística”. (p.34) E aí parece termos, a princípio, reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie da crítica merquioriana.

A linguagem ensaística de José Guilherme Merquior (já o frisamos acima) caracteriza-se ou estrutura-se, frequentemente, no propósito da polêmica. Esse fato, aliás, no último capítulo de Figuras da inteligência brasileira, Miguel Reale atribui à “intensa e viva angústia de comunicação e participação” por parte de Merquior, aí entendido como “paladino da racionalidade concreta”. (p.165) Deixemos para adiante breve comentário acerca desse qualificativo, “concreta”, e nos detenhamos logo noutro fato, a nosso ver, curioso. O de que, conquanto, no mais das vezes, a polêmica se nutra de extremismos de opinião, Razão do poema nos parece apresentar um autor em busca de conciliações...

Conciliação do nacionalismo com o universalismo, por exemplo, um dilema marcante do cenário cultural brasileiro de antes mesmo do romantismo, mas ainda bem presente no decorrer das décadas novecentistas. Dentro desse contexto, a geração de 45, querendo-se restauradora dos valores universais da poesia, renegava o legado dos modernistas de 22, considerados limitadores do alcance poético ao nível nacional. A crítica combativa de Afrânio Coutinho, na época, também punha lenha na fogueira, ao asseverar, em Conceito de literatura brasileira, ensaio publicado em 1960, que a produção literária realizada no Brasil já apresentava características de nacionalidade na fase colonial. Assim pensando, Coutinho acusava Antonio Candido de se perfilar na historiografia lusa, em Formação da literatura brasileira, porque seu autor ali ensinava que o arcadismo e o romantismo ainda eram fases formadoras da nossa identidade nacional literária. Vale também lembrar que, em 1965, Afrânio Coutinho publica A polêmica Alencar-Nabuco. Na apresentação desse volume, manifestava compreender o embate de 1875 nos seguintes termos: “Ao ocidentalismo de Nabuco opunha-se o nacionalismo de Alencar; ao universalismo do primeiro, a tendência nacionalizante do segundo.” (p.7)

Segundo Merquior, em Razão do poema¸ é um imperativo categórico para os poetas contemporâneos espelhar-se no exemplo dos modernistas de 22,[x] uma vez que estes teriam alcançado o valor universal e humano, a partir de uma preocupação em conhecer e fazer conhecer a sociedade brasileira. Contudo, José Guilherme Merquior não se esquece de salientar que não se trata de recorrer às facilidades de uma imagem exótica do Brasil ou se ater a supostos temas regionalistas. Temas não solucionariam o problema, mas sim a sintonia entre tema (conteúdo) e forma, na verdade enlaçados de maneira indissociável na construção literária competente. Leiamos o trecho abaixo de “‘A máquina do mundo’ de Drummond”, ensaio no qual refuta as reservas relativas às formas classicizantes e ao conteúdo valeryanamente entediado de Claro enigma:

As formas artísticas não são, é verdade, inteiramente congruentes com o conteúdo; não é raro ver-se uma nova mensagem “rachando” uma velha forma. Mas este é um raciocínio histórico. [...] Porém, do ponto de vista estrito do estético, não há hipótese de a forma não corresponder, plenamente, ao conteúdo: porque, do ponto de vista da obra realizada, da obra em ato, da consecução artística [...] simplesmente não há dualismo forma-e-conteúdo: existe apenas a unidade das formas significativas. (p.100)

Segundo José Guilherme Merquior, Carlos Drummond de Andrade soube, como poucos compatriotas, conjugar o nacional e o universal. Em “Crítica, razão e lírica”, o poeta itabirano encontra-se mencionado, ombro a ombro, ao lado de Fernando Pessoa, Pedro Salinas e Eugenio Montale, na condição de autor de língua românica no qual “mais se construiu em forma moderna a grande meditação sobre a vida humana”, sendo essa constatação “um fato de enorme valor para a nossa literatura, cuja participação no alto nível literário do Ocidente data de muito pouco tempo”. (p.211).[xi]

Forma e conteúdo, nacionalismo e universalismo, arte e sociedade, tradição e modernidade...[xii] dimensões frequentemente dicotomizadas no pensamento crítico, elas dão-se as mãos em Razão do poema e mesmo nos seus livros seguintes. Não sabemos até que ponto seria bobagem afirmar que essa compreensão conciliadora se deve, em alguma medida, à índole de uma vocação diplomática. Afinal de contas, conquanto diplomata, José Guilherme Merquior era um polemista irremediável. Seja como for, acreditamos a diplomacia, eleita pelo autor como profissão, responder ou corresponder bem à importância da conciliação entre a dimensão nacional e a universal requerida em sua concepção crítica. Eis a seguir passagem do discurso que proferiu como orador da turma do Instituto Rio Branco, em dezembro de 1963: “Suficientemente convictos de nossa força, destinamo-nos a cumprir uma vocação universalista. Nosso amor à nacionalidade é, no fundo, a melhor forma de sermos humanos.” (p.45) Não residiria nisto – a representação da pátria, com roupagens cosmopolitas – a síntese perfeita (à revelia de nossa escolha talvez infeliz de palavras) do que valorizam os textos de Razão do poema?

Efetivamente, em matéria de arte e literatura, Merquior foi um humanista.[xiii] Sua argumentação em favor da universalidade das artes conduziu-o às discussões desenvolvidas no último ensaio do livro, no qual nega ao marxismo em geral, e ao de Lukács especificamente, validade de fundamentação nesse propósito. A resposta melhor viria da antropologia lévi-straussiana, que chega ao conceito de significante flutuante, partindo do entendimento de signo segundo a linguística de Ferdinand de Saussure (significante/significado) e da distinção psicanalítica entre subconsciente e inconsciente. O inconsciente, alheio às nossas experiências (alimento que atravessa o estômago, sem modificar a natureza desse órgão, na metáfora ilustrativa do antropólogo francês, pai do estruturalismo), seria o que há de universal no homem. E, assim, lança Merquior uma conclusão inicial:

E é precisamente desse significante flutuante (Lévi-Strauss) que a arte, a poesia, a invenção estética e mística constituem seu uso específico da linguagem.
A morada do significante flutuante é o inconsciente, residência das estruturas comuns a todos os homens de todas as épocas. Enfim, deparamos com um fundo comum de humanidade sem um “conteúdo” que, para ser definido, tornasse necessário violentar a História e afirmar uma “natureza humana atemporal” [como o faria o marxismo]. (p.269)

Todavia, a arte, compreendida como linguagem simbólica (noção central do pensamento estético merquioriano não apenas em Razão do poema), não resulta somente do inconsciente, mas do entrosamento deste com o subconsciente, onde o conteúdo histórico se plasma – por assim dizer – na experiência psíquica.

A crítica merquioriana insistirá sempre no casamento da arte com a sociedade ou das formas com as ideias, não obstante as diferenças de perspectiva sobre a questão de alguns textos para outros, notadamente da década de 70 para a de 80. Em Razão do poema, esse matrimônio sócio-artístico implica o nacionalismo-universalismo, a intervenção ou participação da arte na realidade (em “Evtuchenko”, Literatura e revolução, de Trotski, constitui referência endossada com entusiasmo pelo autor; lembrar o ensaio “Responsabilidade social do artista”); implica também capacidade de comunicação com o povo (sem apelo propriamente a uma poética popular, a exemplo da literatura de cordel); implica ainda o predomínio da linguagem discursiva (atentar-se para o trocadilho horacionalismo, em "Crítica, razão e lírica"). Trata-se de uma descrição teórica ou de uma legislação crítica? As duas coisas se confundem, às vezes problematicamente no livro. De qualquer modo, mais importante do que essa ambiguidade é, a nosso ver, um ponto nevrálgico que Razão do poema evita discutir ou não discute diretamente: a questão tão complexa quanto controversa da mímese. A lacuna parece ter incomodado o autor, que publicará sete anos depois outra reunião de ensaios, sob o título de A astúcia da mímese.[xiv]

Em vez de mímese propriamente, Razão do poema se volta para os termos participação e concretude da arte. Com base nessa chave de critérios, José Guilherme Merquior enaltece os modernistas de entre 1922 e 45, a poética amadurecida de João Cabral de Melo Neto, a novidade de Mário Chamie, e torce o nariz para a “vacuidade do nouveau roman e da poesia ‘concreta’” (p.152),  na verdade, segundo o ensaísta, em nada nada concreta. Parece haver aí, portanto, indício do Merquior antivanguardista, plenamente configurado e assumido nas “Duas palavras à guisa de prefácio” de As ideias e as formas (1980). 

No último capítulo de Figuras da inteligência brasileira, Miguel Reale discute, com invejável propriedade, a questão da "racionalidade concreta", sobretudo no tocando à concepção histórica e epistemológica de Merquior. Essa razão aferrada à concretude da história o teria impelido, em A natureza do processo, a ratificar o valor da ideia de progresso (tão atacada pela crítica cultural daqueles e destes tempos), assinalando os concretos avanços tecnológicos – na medicina, quem o negará? – e a progressiva melhoria no padrão de vida de significativa parte dos trabalhadores, em comparação entre meados do século XIX e meados do XX. Em entrevista à revista Veja, por ocasião da divulgação de seu livro As ideias e as formas, recém-lançado, José Guilherme Merquior opinava acerca do que era (e ainda é) hábito nos debates intelectuais no Brasil, pontuando:

Os problemas são sempre apresentados de maneira abstrata, principista e apriorista. Portanto, o coeficiente de análise empírica, de exame concreto de realidades verificáveis, é muito pequeno. O inglês Oscar Wilde dizia que os patrões falam de coisas e os criados de pessoas. No debate político e intelectual brasileiro, há muito pouca gente falando de coisas ou pessoas. Fala-se de noções abstratas.

Nessa orientação, Merquior verificava menor aceitabilidade na estética kantiana do que na hegeliana, na medida em que a primeira anuncia a autonomia da arte com base numa abstração formalista, ao passo que a segunda aponta para uma efetivação do espírito da forma na concretude da história. No entanto, conforme sublinha Miguel Reale, José Guilherme Merquior não compactuava com uma visão historicista totalizadora, nisso afastando-se de hegelianos, marxistas e mesmo de defensores de um progresso concebido como marcha evolucionista e teleológica. Definitivamente atento aos dados concretos, o ensaísta carioca notava certos retrocessos em episódios que se apresentavam como progresso.

Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto constituem o cânone mínimo da poesia modernista brasileira, para José Guilherme Merquior. Se, infelizmente, não realizou o intento de escrever o livro A pluma do cão, estudo sobre as obras dos poetas itabirano e recifense (cf. nota da 3ª ed. de Razão do poema, p.214), dedicou-lhes outros ensaios, assim como a Murilo Mendes, além de defender a tese Verso universo em Drummond convertida em livro. A importância desses três poetas pode nos levar a algumas conclusões e hipóteses: embora exaltasse os desbravadores da Semana de Arte Moderna, Merquior não encontrou entre eles um autor que satisfizesse plenamente suas exigências críticas. Às pirotecnias da geração de 22, portanto, preferia a maior calmaria ou maturidade formal das obras posteriores. Donde, em Razão do poema, a revisão de seus próprios conceitos a respeito do aspecto classicizante de Claro enigma e o encanto com a criação disciplinada de João Cabral de Melo Neto e Joaquim Cardozo. Esse livro de 1965 é o manifesto, em linguagem crítica, de uma poética de conciliação do modernismo com o clássico, na procura de corrigir as tentativas, nesse mesmo sentido, empreendidas pela geração de 45. Acreditamos isso explicar um pouco da antipatia violenta de Merquior para com os poetas desse período, dos quais exclui desesperadamente (mas não sem argumentos pertinentes) João Cabral. Assim pensando, também talvez compreendamos melhor o carinho merquioriano dirigido a Gonçalves Dias, sobre quem ensina Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira: “É que sob o patético da vocação romântica, persistia nele a necessidade da medida, legada pelo neoclassicismo [...].” (p.71)

O ensaísta de Razão do poema assume, de fato, a função tradicional da crítica de formadora do gosto literário, ambicionando instruir os poetas contemporâneos a se espelharem em Petrarca, Camões, Donne, casos iniciais sobre os quais Merquior se debruça, em “Crítica, razão e lírica”. Abramos de novo a Formação..., de Candido, volume 1, e nos recordemos de que a “busca da comunicação”, disposição cobrada pela crítica merquioriana, é um dos traços do neoclassicismo (cf. “Razão e imitação”).

O que acima dissemos, então, endossa a pecha de conservador senão de reacionário dispensada, com contornos de caricatura, a José Guilherme Merquior? Se querer aprender com a tradição e a história, delas absorvendo muito mais do que um prazer antiquário, implica ser conservador ou reacionário, tudo bem – estamos de acordo.

Referências bibliográficas

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BOLLE, Adélia Bezerra de Meneses. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. vol. 1.

COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2000.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.

MARTINS, Wilson. Crítica literária no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. vol.II.

MERQUIOR, José Guilherme. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

______ . “O discurso como orador da turma do Instituto Rio Branco de 1963”. in: José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: IPRI/FUNAG,1993. pp.39-45.

______. Razão do poema: ensaios de crítica e estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

______. Saudades do carnaval: introdução à crise da cultura. Rio de Janeiro; São Paulo: Forense, 1972.

REALE, Miguel. “Merquior, paladino da racionalidade concreta”. In: Figuras da inteligência brasileira. 2ª ed. 1994. pp.165-183.

SÜSSEKIND, Flora. “Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna”. In: Papéis colados. 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. pp.15-36.

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[i] O prof. Wanderson Lima, em texto muito bom que integra a terceira edição de Razão do poema, considera a questão nas páginas 297-298.

[ii] Estaríamos subestimando o alcance da crítica literária, ao afirmarmos isso? Sobretudo porque a época – década de 60 – estimulava o conhecimento interdisciplinar? É muito provável, assumimos. De todo modo, a obra merquioriana não permite denominar seu autor de apenas crítico literário. O fato é que o virtuoso domínio de diversas áreas tanto qualifica Merquior como mais do que um crítico literário quanto lhe permitira exercer a atividade com uma consistência diferenciada.

[iii] Sobre o "imperador da crítica", segundo Carlos Drummond, recomendamos as considerações de Adélia Bezerra de Meneses Bolle, que esclarece introdutoriamente: “Álvaro Lins não pode ser caracterizado em bloco, pois sofreu evoluções ao longo das sete séries do Jornal de Crítica. Contudo, observa-se uma constante na sua obra: a reiterada repulsa por uma crítica objetiva, pela imposição de leis, regras e normas à atividade literária.” (p.61)

[iv] Esse momento de transição se integra ao pensamento crítico merquioriano, parece-nos, na admiração expressa por Augusto Meyer (“leitor ideal de poesia”, segundo a dedicatória do primeiro ensaio de Razão do poema), por Mário de Andrade (“que foi, em suma, o melhor crítico de poesia do modernismo”, p.72), e, especialmente, por Araripe Júnior, de quem – nada mais, nada menos – extrai epígrafe para o ensaio “Crítica, razão e lírica”. Tanto no livro de 1965 quanto em De Anchieta a Euclides, Merquior assinala a superioridade do crítico cearense oitocentista em relação a Sílvio Romero e José Veríssimo. No que pese sua ostensiva autonomia ideológica, muito provavelmente essa admiração por Araripe tenha decorrido de influências de Afrânio Coutinho, notório defensor do crítico parente do romancista de Iracema.

[v] Em “A poesia modernista”, José Guilherme Merquior pronuncia sua “certeza de que o espírito de 22 se conserva absolutamente vivo, porque depois dessa data e da fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou verticalmente a poesia brasileira”. (p.40) Suas convicções guardam pontos de contato com a compreensão de João Cabral de Melo Neto, exposta em artigo sobre a geração de 45. Vale a pena ler o trecho seguinte: “A atitude dos poetas da geração de 45 também não podia ser uma atitude de revolta. Na verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo modernismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 30, juntamente com os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate, estabeleceram dentro desse território, núcleos de exploração importantes. Mas se alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos exploradores mostram-se cansados ou dispostos a abandonar o terreno, nada disso é prova contra a riqueza que ali ainda existe. (p.743)

[vi] No segundo volume de Crítica literária no Brasil (obra, diga-se de passagem, de índole claramente polemista), Wilson Martins classifica Merquior como crítico formalista, a propósito de Razão do poema, A astúcia da mímese e Formalismo e tradição moderna. A leitura desses livros desautoriza, com veemência, o rótulo, que, ao fim e ao cabo, Wilson Martins não define muito bem, tão vagos quanto o de impressionista, gramático, sociológico etc. Não resistimos a destacar o lugar desconfortável de José Guilherme Merquior em Crítica literária no Brasil. À parte a classificação referida, Razão do poema motiva insinuações de que o ensaísta carioca não escrevia bem ou de modo inteligível (cf. pp.712-713). Sem comentários. Pertinentes são os puxões de orelha dados aos supostos equívocos de informações históricas contidos em De Anchieta a Euclides (cf. 804-806). Todavia, não há nenhuma palavra elogiosa (decerto merecida) à análise, por exemplo, da ficção machadiana...  

[vii] Mais uma vez, recomendamos a leitura do ensaio de Wanderson Lima, páginas 301 e 302.

[viii] Gostaríamos de deixar claro que essas referências se propõem mais a contextualizar, e não propriamente a explicar o pendor polemista de Merquior. Esse esboço de contextualização ganha muito com a leitura de um livro notável e utilíssimo do prof. João Cezar de Castro Rocha – Crítica literária: em busca do tempo perdido? –, no qual, diante da recorrência secular da polêmica na história da nossa cultura, se procura reabilitar a polêmica, nela se apontando um remédio para o marasmo do universo acadêmico atual.

[ix] Podemos aproximar tais concepções às do Mário de Andrade heroico, dos tempos da Semana de Arte Moderna. O poeta paulista, na lição de João Luiz Lafetá sobre a plataforma poética de A escrava não que não era Isaura, “[...] combate o irracionalismo e reivindica ‘senão a superioridade e a prioridade’, ao menos ‘o domínio, a orientação e a palavra final’ para a Inteligência”. (p.175)

[x] Posto que Mário de Andrade, levado pelo desencanto que o abateu nos últimos anos de vida, tenha afirmado em balanço de sua geração: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém.” (p.255)

[xi] Em De Anchieta a Euclides (1977), José Guilherme Merquior cita mais um nome responsável por essa inserção: “A grandeza de Machado [de Assis] foi ter posto os instrumentos de expressão forjados no primeiro Oitocentos – a língua literária elaborada por Alencar – a serviço do aprofundamento filosófico da nossa visão poética, em sintonia com a vocação mais íntima de toda a literatura do Ocidente. Foi com Machado de Assis que a literatura brasileira entrou em diálogo com as vozes decisivas da literatura ocidental.” (p.209)

[xii] Outra conciliação diplomática que encontramos em Razão do poema, de que talvez o próprio Merquior não tivesse completa consciência nessa época, é a das perspectivas de Afrânio Coutinho, explicitamente defendida no livro, e a de Antonio Candido. Literatura e sociedade, publicado também em 1965, traz textos com diversos pontos de afinidade com as ideias merquiorianas em germe sobre crítica, posteriormente consolidadas.

[xiii] O leitor de Merquior se depara, em muitos textos posteriores (p. ex., os de As ideias e as formas, volume publicado em 1980), com ataques desferidos ao humanismo. No entanto, cabe reforçar (algo evidente no contexto da discussão) que humanismo aí remete ao pós-estruturalismo e a outras correntes de pensamento batizadas pelo autor de “delírio irracionalista”. Ou seja, não está em questão o humanismo no sentido de alçar o valor humano, em sua universalidade, como meta de compreensão e elevação por parte das ciências e das artes – sentido no qual nós empregamos o vocábulo.

[xiv] Luiz Costa Lima, o teórico brasileiro mais preocupado com questão da mímese (ou mímesis, conforme preferência gráfica do autor maranhense), avalia as reflexões do autor de Razão do poema sobre o assunto em “Um certo Merquior”, ensaio coligido no livro Intervenções