A crítica
fonocêntrica de Derrida contra o pensamento ocidental é apenas uma amostra de
macro-Kulturkritik retórica,
dificilmente defensável se se deseja um retrato preciso da evolução cultural em
geral ou história da filosofia em particular.
Merquior
(De Praga a Paris)
Tomemos qualquer
aspecto da herança ocidental da qual se orgulhavam os nossos ancestrais e
encontraremos cursos universitários dedicados a desconstruí-la. Tomemos
qualquer característica positiva de nossa herança cultura e política e
encontraremos esforços combinados na mídia e na academia para colocá-la entre
aspas e fazê-la parecer uma impostura ou um engodo.
Roger
Scruton (Como ser um conservador)
Jacques Derrida
(1930-2004) goza da honra de ter sido um dos alvos preferidos da mordacidade
crítica de José Guilherme Merquior, quem se divertia em referir-se ao filósofo
nascido na Argélia como Derridá-ou-desce.
De fato, desde o início de sua trajetória intelectual, o ensaísta brasileiro
direcionou severas restrições a certos desmembramentos do estruturalismo, dentre
os quais se inclui o pós-estruturalismo a que todos associamos, de imediato, a
obra do Pai da desconstrução.
O
quinto e penúltimo ensaio do pequenino volume O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975) intitula-se “O
idealismo do significante (a Grammatologie
de Jacques Derrida)”, e foi texto escrito em 1968, em Paris. A data e o
local chamam a atenção, quando nos lembramos das manifestações estudantis que
conturbaram a França naquele ano memorável e do caráter revolucionário de um livro então recentemente publicado (1967).
Entre
“O idealismo do significante” e De Praga
a Paris (1986), um dos últimos títulos do autor, o pensamento de Merquior sofreu
sensíveis alterações, com destaque para a avaliação em torno da mentalidade
vanguardista do modernismo europeu. De todo modo, a base dos questionamentos e
das reflexões merquiorianas expressos numa e noutra obra manteve-se.
Pois
o motivo principal de Merquior refutar a plataforma e as táticas da
desconstrução são os descaminhos do formalismo, seja este aplicado no âmbito da
crítica literária e das artes, seja no âmbito da filosofia. Conforme o
diagnóstico do autor de A astúcia da
mímese, a perspectiva formalista acabaria por provocar, ao alhear-se das
dimensões histórico-sociais, “a queda do significado [...] em prol de um
primado do significante” – é o que lemos à página 67 do ensaio de 1968 –, e que
o argelino seria “um exemplar paladino da visão mântica”, na medida em que
“estava firmemente do lado do significante vazio” – é o que lemos à página 230
do livro de 1986.
O
leitor pergunta: o que é significado? o que é significante? São dois conceitos
básicos da linguística moderna, fornecidos pelos estudos de Ferdinand de
Saussure (1857-1913). Para o linguista suíço, o signo – uma unidade semântica, como
uma palavra, por exemplo – se constitui do casamento, em uma só carne, do
significante, isto é, o corpo gráfico ou fônico (a face legível ou visível da
palavra), com o significado, isto é, a imagem mental ativada, ao ouvirmos,
lermos, ou pensarmos na tal palavra (sua face inteligível).
A
grande obra de Saussure, o Curso de
linguística geral (1916), não por ele organizada, mas por alunos seus, nem
publicada em sua vida, inovaria em diversos aspectos. Um dos quais, ao
compreender que a disciplina ali tratada integrava uma ciência maior, até então
inexistente, a ser denominada de semiologia:
uma ciência dos signos, que abrangeria não apenas signos verbais.
Décadas
mais tarde, o estruturalismo clássico, representado pela antropologia de Claude
Lévi-Strauss (1908-2009), apropriou-se da noção de semiologia de Saussure, na
convicção de que as normas sociais humanas se organizavam e funcionavam como
uma língua, tendo elas por ponto estruturante o inconsciente freudiano –
elemento considerado pelo antropólogo o fundo universal da humanidade.
O
estruturalismo lévi-straussiano manteve íntegro o enlace semântico significante/significado
do signo e, com o respaldo da linguística saussuriana, pretendeu converter a
antropologia numa ciência propriamente dita, já que se constituía, nessa
colaboração interdisciplinar, uma rigorosa metodologia.
A
repercussão da antropologia de Lévi-Strauss estimulou a advento do
estruturalismo em outras áreas. E, assim, a crítica literária e a psicanálise apresentaram
outros dois nomes de estrelato mundial: respectivamente, Roland Barthes (1915-1980)
e Jacques Lacan (1901-1981). Costuma-se adicionar ao grupo o filósofo-historiador Michel Foucault (1926-1984), conquanto ele jamais se tenha autoidentificado estruturalista.
José
Guilherme Merquior se interessou bastante pelo estruturalismo, de cujo “surgimento,
mudança e dissolução” foi contemporâneo, testemunha e, em alguma medida talvez,
personagem. Atestam-no o último ensaio de Razão
do poema, “Estética e antropologia – esquema para uma fundamentação antropológica
da universalidade da arte”, o fato de o brasileiro ter se tornado aluno de
Lévi-Strauss na École des Hautes Études e ainda a comunicação, que comoveu o
mestre belgo-francês, convertida posteriormente no livro L’esthétique de Lévi-Strauss (1975). O empenho estruturalista em
merecer estatuto científico conquistou o aplauso de Merquior, quem ainda confessaria, em meados da década de 1980:
“Eu, pelo menos, considero que uma das melhores coisas do estruturalismo
francês clássico é exatamente a sadia adoção de uma perspectiva universalista.” (1991, p.227)
Todavia,
a vontade de ser científica e o viés universalista do estruturalismo parece não
terem entusiasmado, na mesma medida, Barthes, Lacan e outros. Merquior comenta
o fato nestes termos:
Como
um todo, na sua perspectiva geral como nos seus métodos, o estruturalismo não
ficou do lado da ciência, mas sim do seu autodesignado adversário, a cultura
humanista. Na verdade, terminaria sendo mais um franco humanismo, à medida que
se convertia no pós-estruturalismo. (1991, p.238)
Os
últimos trabalhos de Barthes, a psicanálise de Lacan e, por fim, a
desconstrução de Jacques Derrida não renegam de todo o estruturalismo, mas se
encaminham numa direção que os dele decerto distanciam. Para José Guilherme
Merquior, o pós-estruturalismo embarca, com passagem só de ida, na perspectiva mântica. Terry Eagleton explica o caso
literário:
A
passagem do estruturalismo para o pós-estruturalismo em parte é, como o próprio
Barthes disse, uma passagem da “obra” para o “texto”. Ela deixa de ver o poema
ou o romance como uma entidade fechada, equipada de significações definidas que
são tarefa do crítico descobrir, para um jogo
irredutivelmente pluralístico, interminável, de significantes que jamais podem
ser finalmente apreendidos em torno de um único centro, em uma essência ou
significação únicas. (2003, p.190-191)
A
desconstrução de Derrida elegeu como seu pior inimigo nada menos do que a ideia
de centro e de verdade. Ou seja, a beligerância do autor argelino se voltou, sob
assumidos estímulos nietzschianos e heideggerianos, para a problematização de toda uma tradição
de pensamento e visão de mundo calcada, a seu ver, na metafísica do logos, que remontaria à Antiguidade
Grega. Dessa época o personagem mais visado por Derrida foi Platão, o qual
ensinava consistir a realidade ao nosso redor, ou a physis, um enganoso mundo de sombras, ao passo que a verdade
residiria num plano transcendental, o das ideias, do qual o plano terreno não
passaria de uma cópia.
A
convicção da existência da verdade veio a sustentar não apenas a filosofia, mas
também as ciências, além da religião cristã. Sendo assim, a história do
Ocidente estaria marcada pelo logocentrismo...
Mas Derrida acrescenta a essa centralidade, nisso não escondendo seu background estruturalista, a presença linguística
da phoné. Ou seja, a questão, para Derrida, era desconstruir, mais especificamente, o fonologocentrismo ocidental. Na lição de Evando Nascimento:
A
época do lógos enquanto determinação
da phoné consideraria a escrita como
simples representação do discurso falado, da palavra viva, presente a si. O
modelo perfeito dessa representação seria a escrita fonética, base de nossa
civilização ocidental. Essa hierarquização de representações se deixa determinar
pela oposição entre significante e significado. (2001, p.123)
Sem
dúvida, José Guilherme Merquior era um anti-idealista aborrecido com os fantasmas românticos que teimavam em
assombrar a modernidade com seus
buuuuuuus metafísicos. Por isso, o ensaísta e diplomata reconhece “o mérito de
Derrida no seu esforço [empreendido em De
la grammatologie] de destruição
da noção de significado transcendental”. (1975, p.60) Contudo não aceita “sua
defesa apaixonada do formalismo linguístico”, (1975, p.66) que conduzirá o
pós-estruturalista, ao divorciar as duas partes do signo saussuriano, a um idealismo do significante conjunto a
uma ostensiva rejeição de todo e qualquer significado.
No
quinto ensaio de O estruturalismo dos
pobres..., Merquior endossa o combate derridiano contra significados transcendentais, mas não contra
todo e qualquer significado, com o entendimento de que “a autonomia do
significante não exclui sua referencialidade essencial”. (1975, p.72) Outra crítica merquioriana importante
se dá nestas duas frases: “Em Derrida como em Foucault, a superestimação da
literatura é paralela à atrofia da noção de valor da cientificidade. O idealismo do significante não elabora
nenhum projeto de justificação do saber.” (1975, p.70)
A
discussão em torno do livro de Jacques Derrida dá oportunidade ainda para
Merquior, que se apoia em textos de Roman Jackobson (1896-1982) e do estruturalismo
eslavo tão querido seu, esboçar uma teoria mimética, com a qual se encerra esta
postagem:
É
necessário se habituar à noção de uma forma pura da referência, onde a
ausência de significado transcendental seria o outro nome da abertura para o
mundo inscrita na linguagem. Uma teoria
da referência pura – e não do idealismo do significante – seria a
verdadeira tradução linguística dessa espontaneidade
receptiva que é o conhecimento aberto ao ser. (1975, p.75)
Referências bibliográficas:
EAGLETON, Terry.
Teoria da literatura: uma introdução.
5ª ed. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MERQUIOR, José
Guilherme. De Praga a Paris: o
surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Trad. Ana Maria
de Castro Gibson com revisão do autor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
______. O estruturalismo dos pobres e outras
questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
NASCIMENTO,
Evando. Derrida e a literatura:
“notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2ª ed. Niterói:
EdUFF, 2001.