sábado, 29 de março de 2014

Um leitor ideal de poesia

São esses os termos com que José Guilherme Merquior se refere, no primeiro ensaio de seu primeiro livro, Razão do poema, a Augusto Meyer, em dedicatória, sinalizando assim o que considerava a abordagem, a metodologia as mais adequadas para o exercício da crítica literária. Além disso, identifica Merquior em nota ao mesmo texto, “Uma canção de Cardozo”: “Augusto Meyer é, como pesquisador e degustador de poesia, a síntese perfeita de informação com sensibilidade, da ‘escavação’ mais segura com a leitura mais sutil, reveladora e penetrante.” (p.28-29)

Não foi sozinho que o autor de O véu e a máscara incensou Meyer. Este, nas palavras algo semelhantes de Antonio Candido, “é e ficará, em nossa história literária, um dos mais altos críticos, um dos espíritos mais penetrantes e fecundos”. Rachel de Queiroz reconhecia, no mesmo diapasão: “Na minha opinião, o mais completo homem de letras do Brasil é Augusto Meyer”.[i] Tendo iniciado suas publicações no gênero ensaístico na década de 1920, e falecido em 1970, os elogios o colocavam em pé de igualdade ou superioridade em relação a contemporâneos da estirpe de um Álvaro Lins (1912-1970), um Alceu Amoroso Lima (1893-1983), um Afrânio Coutinho (1911-2000), um Mário Faustino (1930-1962).

Por uma daquelas coincidências curiosas nas quais o absurdo da vida, às vezes, se deixa cair, o último livro de Meyer, A forma secreta, foi publicado no mesmo ano de Razão do poema (1965). Talvez, frente a tal fato, nos acometesse a tentação da pressa e da simplificação de apontar o pensador carioca como herdeiro do crítico gaúcho. Todavia, conquanto haja efetivamente afinidades em termos de concepção poética entre os dois nomes, cada um deles perseguiu trajetória intelectual bem distinta. Para nos limitarmos ao mais elementar, nem Merquior arriscou a publicação de versos, como o tinha feito Meyer com certo reconhecimento, nem Meyer expandiu, em sua obra, a área de interesse para além da literatura como o faria Merquior com admirável domínio.


Seja como for, o ensaísmo merquioriano, em índole avessa à especialização acadêmica sobre todas as coisas, que começava a direcionar a maneira de se criticar a literatura na época, parece resgatar ou dar continuidade ao que havia de literariamente mais livre na prosa crítica de Augusto Meyer. Esse aspecto, assinalado por quem se ocupou da obra do poeta e crítico gaúcho, foi mais recentemente observado em artigo da revista O eixo e a roda (2010), onde Nelson Ricardo Guedes dos Reis comenta especialmente a respeito de A forma secreta: “Na maioria dos textos que compõem o livro, há uma quase eliminação dos limites institucionalmente instaurados entre literatura e crítica”, textos esses que transitariam, segundo o articulista, entre a “crítica-ensaio” e a “crítica-conto”. (p.141)

Não se verifica tal ruptura de gêneros em Camões o bruxo e outros estudos, volume publicado em 1958, consultado e propagandeado elogiosamente em Razão do poema e Formalismo e tradição moderna. Assumimos não sermos profundo conhecedor da obra crítica do autor gaúcho. É que, com base naquele único livro seu, iremos aqui levantar alguns aspectos que nos parece poderem esclarecer o entusiasmo de Merquior com a metodologia analítica de Meyer. Também não dispomos de tempo suficiente, em meio às tarefas da docência, para sanarmos essa lacuna de nosso repertório. Contudo, acreditamos que os ensaios contidos no pequeno volume podem propiciar, a contento, o alcance do modesto objetivo aqui traçado.
Augusto Meyer integra uma geração de críticos, nascida entre fins do século XIX e princípio do XX, que teve de lidar, por um lado, com os resquícios da crítica da segunda metade do oitocentos, legado de Sílvio Romero e de José Veríssimo, resquícios esses traduzidos na perspectiva biográfico-psicológica e na historiografia literária de base positivista e nacionalista. Por outro lado, com o modernismo que a Semana de 1922 irradiaria, demarcando, no âmbito literário, o efetivo começo do novecentos na literatura brasileira. Nessa geração podemos enquadrar, além do próprio Meyer, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Tasso da Silveira, Mário de Andrade (não apenas poeta modernista, mas também crítico do modernismo) e outros.

Na condição dupla de Mário de Andrade (assim como Milliet), o Augusto Meyer poeta modernista certamente colaborou para o acolhimento e a compreensão que o Augusto Meyer crítico dispensou ao movimento de renovação das letras nacionais. Entretanto, o crítico operou independentemente do poeta e, mais do que o poeta, contribuiu, ao reforçar o coro dos que procuravam se pautar na objetividade do primado textual. Por aquela altura dos anos 40 e 50, pensava-se em estrutura (antes do estruturalismo, propriamente; sem, portanto, ter o mesmo sentido que virá a ter e se disseminar na década de 1960), a exemplo do livro fundamental de Hugo Friedrich, publicado dois anos antes de Camões o bruxo e outros estudos. Mencionar Friedrich, autor sempre enaltecido por Merquior, vem mesmo a propósito. Pois a estilística germânica, que o autor de A estrutura da lírica moderna, juntamente com Erich Auerbach, Leo Spitzer e Ernst Robert Curtius, entre outros, constituíram, abriu um veio de análise pelo qual Augusto Meyer enveredou para ler a poesia camoniana, atento aos efeitos expressivos da sintaxe, do léxico, do ritmo, da rima, dos topoi quinhentistas, assim como, talvez sua contribuição maior, redirecionar o foco da recepção machadiana brasileira para além ou fora da tradicionalmente alardeada linguagem castiça.

O contexto nacional de publicação de Camões o bruxo e outros estudos está traçado, sumariamente, na passagem abaixo de Wilson Martins, em A crítica literária no Brasil:

Mas, em 1956, a Estilística, sob as formas mais variadas, estava sendo intensamente praticada [...]; lembrem-se, por exemplo, publicados nesse ano, Crítica de estilos, por Aires da Mata Machado Filho; A análise matemática do estilo, [...] por Tulo Hostílio Montenegro; Preto & branco, de Augusto Meyer [etc.]. (p.642)

Fosse como fosse, questões centrais para a estilística – a revalidação do interesse pela mímesis e o reconhecimento da mescla de estilos na condição de marco da modernização literária, como em Auerbach; o enfoque estrutural, como em H. Friedrich[ii] – não ocupam lugar menos importante no pensamento crítico de José Guilherme Merquior. No tocante à mescla estilística, nada menos é do que um aspecto central que o pensador carioca ilumina na poesia do mais famoso itabirano, em Verso universo em Drummond, tese de doutoramento defendida em junho de 1972. Em título de livro também de 72, consagrara a expressão de sabor hegeliano “astúcia da mímese”, com a qual queria destacar a presença da realidade social no texto literário, de forma autônoma em relação à mesma realidade social, bem como, em Formalismo e tradição moderna, de 1974 (livro, aliás, dedicado a Meyer), distinguia: “[...] o objeto da nossa firme condenação não é, de modo nenhum, a análise estrutural, e sim a sua perversão formalista. Conforme assinala Cl. Lévi-Strauss, o iniciador da extensão extralinguística do método estrutural, estruturalismo não é formalismo.” (p.235. grifos do autor)

Consciência correspondente e similar, no seu próprio contexto, apresenta Meyer, nestes termos:

Melhor ainda é a observação de Goethe: “A essência traz consigo a forma e não existe forma sem essência.” Por isso mesmo, parece arbitrária qualquer tentativa de redução da obra poética a uma dessas vertentes e seus declives: ou a pura “mensagem”, o ideário, o tema, as intenções emotivas, a experiência do autor e suas confissões veladas; ou o simples documento literário e análise estilística do mesmo, desligado de suas raízes. (p.42)

Haveria defesa mais merquioriana? A plataforma crítica da análise que se obriga a não desfazer o enlace entre as formas e as essências, ou as ideias, como preferiria dizer o autor de A natureza do processo, está toda naquelas linhas transcritas acima do primeiro ensaio do livro de Meyer, que ainda aí ensina uma das melhores lições de estilística:

[...] a sugestão rítmica depende do significado e não pode ser desvinculada arbitrariamente da sugestão poética, assim como os fonemas em si, aproveitados na teia de assonâncias e aliterações, não possuem nenhuma virtude melódica própria, servindo apenas de reforço à intenção do poeta. (p.17)

Em outras palavras, a faceta formal do poema, no caso especialmente em sua dimensão de significante, não se divorcia da realidade que, poeticamente, se autonomiza na dimensão do significado. Compreende-se melhor, desse modo, porque, no ensaio panfletário “O estruturalismo dos pobres”, publicado no Jornal do Brasil, em 1974, Merquior desqualifica a moda estruturalista nos cursos de Letras do País, insatisfeito sempre com a generalizada “indigência de análises genuinamente imanentes” realizadas pelos universitários, para recobrar, em certo parágrafo, que “‘Tia’ Estilística, essa excelente senhora tão caluniada, era bem mais sensível, bem mais escrupulosa, em face do discurso poético”. (p.9-10)

Falando tanto em ideias quanto em formas, é incrível como a linguagem do crítico gaúcho (num mundo às avessas), por vezes, lembra a linguagem do crítico carioca. Nesta passagem, por exemplo, referente às rimas em “ando” de certa estrofe camoniana, lemos: “Só aos pobres olhos de um Parnasiano pareceriam pobres estas rimas tão simples: elas estão impregnadas de sentido e ressonância emotiva, e da sua pobreza quase nua consegue o Poeta extrair o máximo de intensidade encantatória”. (p.19) Decerto José Guilherme Merquior assinaria, sem pestanejar, essas duas frases, elegantemente construídas com adjetivação, sintaxe e ironia muito suas.

Um dos estudos do livro de Meyer se dedica a um dos topoi analisados por Curtius em Literatura europeia e Idade Média latina, a propósito obra traduzida no Brasil em 1957. Referimo-nos a “o mundo às avessas”, antevisão poética de ocorrências que transtornariam a ordem natural ou comum das coisas. Conforme instrui o próprio pesquisador alemão e repassa Meyer, esse topos, de larga tradição clássica, frequentemente se associava a temas de frustração amorosa ou do que se denomina de florebat olim, isto é, a disposição em enaltecer o passado, em vista dos desconcertos do presente. Assim, poderíamos pensar num eu-lírico que, desgostoso da morte de sua amada ou de sua infidelidade, assevere que, a partir de então, o sol nunca mais vai ressurgir, sempre será inverno, as estrelas cairão dos ceús etc. Augusto Meyer adota a abordagem tópica como chave de leitura de poemas da literatura gaúcha, em Camões o bruxo e outros estudos. José Guilherme Merquior verifica, no ensaio de abertura de Razão poema, aquele mesmo topos no poema de Joaquim Cardozo analisado,  sublinhando em nota que Meyer teria corrigido Curtius, ao enxergar mais insistente plasmação, na tradição literária, do “mundo às avessas” na temática amorosa do que na de florebat olim, o que valeria o comentário do jovem autor: “[...] é uma verdadeira demonstração de força em matéria do que pode produzir a erudição literária no Brasil, no terreno da tópica ou em qualquer outro.” (p.28) Mas também em outro ensaio, de Formalismo e tradição moderna, Merquior tanto instrumentaliza o mesmo topos para interpretar um soneto de Camões quanto insinua, mais uma vez em nota, que “a agudeza pioneira de Camões o bruxo [e outros estudos] no terreno da estilística do estrato fônico em Camões” (p.106) o estimulara na interpretação que ali desenvolvia.

Cumpre assinalar igualmente a universalidade que norteou a estilística germânica, orientação manifesta, sobretudo, na atração pela literatura românica. Os alemães Wilhelm Storck e Carolina Michäelis, os maiores estudiosos no século XIX da poesia camoniana e quinhentista portuguesa, certamente são os antepassados intelectuais de Erich Auerbach, especialista em Dante Alighieri e Charles Baudelaire; de Hugo Friedrich, leitor perspicaz de versos franceses e espanhóis; de Leo Spitzer, autor de análise exemplar de um poema de São João da Cruz; de Ernst Curtius, erudito de toda uma literatura europeia. Augusto Meyer não se difere, embora inverta os papéis. Falante do alemão, pôde ler esses críticos no original, sentindo-se à vontade para interpretar poemas escritos nesse idioma, em francês, com a mesma desenvoltura e minúcia que tratava de textos da literatura gaúcha. Prescinde repetir menção ao empenho de José Guilherme Merquior nesse mesmo sentido. Seu livro de estreia basta para atestá-lo (Bocage, Daniel Arnaut, E.T.A. Hoffmann, Petrarca...). Todavia, acrescentemos a comparação que, em De Praga a Paris (1986), realiza entre Roland Barthes e Walter Benjamim, no propósito de salientar a superioridade deste sobre aquele:

Em primeiro lugar, apenas Benjamin foi um legítimo crítico ocidental, quero dizer, uma mente capaz de lidar com a literatura moderna de um ponto de vista cosmopolita. Enquanto a esfera de ação de Benjamin incluía ampla gama de autores franceses e russos, além da, é claro, literatura alemã, a de Barthes era claramente menos abrangente. Seu corpus crítico – Racine, Voltaire e Sade; Chateaubriand, Balzac, Stendhal, Michelet; Baudelaire e Flaubert; Proust e Gide; Sartre e Camus; Robbe-Grillet e Sollers – revela dois hiatos fundamentais. Um, a poesia (escreveu sobre Baudelaire, mas não sobre seus poemas; sobre Racine, mas não sobre seus versos). [...] O outro hiato é a literatura estrangeira, com a exceção única de Brecht. [...] Barthes era profundamente provinciano no que diz respeito ao seu alcance intelectual. (p.214)

Augusto Meyer, apenas em seu livro publicado três anos após sua análise Le bateau ivre: análise e interpretação, contempla a poesia italiana, espanhola, francesa, alemã, na autoridade de quem domina, com erudição de filólogo, tais idiomas. Como crítico, Meyer participava, mais à frente, do que ele mesmo, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, pronunciado 19 de abril de 1961, constatava:

Começou a afirmar-se aos poucos o verdadeiro espírito universalista, que é a essência do humanismo. Por enquanto, parece manifestar-se apenas com a ingenuidade das contradições, como proliferação de nacionalismos destemperados. Não importa; é a conquista para melhor.

Esperamos que o exposto acima, não obstante as deficiências evidentes de nosso texto, tenha contribuído no esclarecimento do título que Merquior conferiu a Augusto Meyer, este “leitor ideal de poesia”.


Referências bibliográficas:

FRIEDRICH, Hugo. Die Struktur der modernen Lyrik: von der Mitte des neunzehnten bis zur Mitte des zwanzigsten Jahrhunderts. Hamburg: Rowholt, 2006.

MARTINS, Wilson. Crítica literária no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. vol.II.

MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris: o surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

______. Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura. São Paulo: Forense, 1974.

______. “O estruturalismo dos pobres” in: O estruturalismo dos pobres e outros ensaios. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.7-14.

______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.
MEYER, Augusto. Camões o Bruxo e outros estudos. Rio de Janeiro, São Jose: 1958.

______. “Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras”. Disponível em: <<HTTP://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=12269&sid=175>>

REIS, Nelson Ricardo Guedes dos. “Augusto Meyer: o discurso poético na crítica literária” in: O eixo e a roda. vol.10, no. 19, Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2010. pp.135-152.




[i] Excertos citados da orelha de Camões o bruxo e outros estudos, na edição da Livraria São José (1958).
[ii] Assim define Friedrich define estrutura, para os fins analíticos de seu livro mais conhecido: “[...] die Gesamtgestalt einer Gruppe zahlreicher lyrischer Dichtungen, die einander keineswegs beeinflusst zu haben brauchen und deren einzelne Eigentümlichkeiten dennoch zusammenstimmen und auseinander erklärt werden könnnen, jedenfalls so häufig und in gleicher Lagerung vorkommen, dass sie sich nicht als Zufälle ansehen lassenn.“ (p.12) Em minha tradução meia boca: “A forma global de um conjunto de poemas líricos numerosos que, em caso nenhum, precisam ter influenciado uns aos outros e dos quais determinadas particularidades, todavia, conjugam-se e podem ser esclarecidas separadamente. De todo modo, sucede muito frequentemente e na mesma medida que esses poemas não permitem serem compreendidos como resultados do acaso.” O que revela a atenção de Hugo Friedrich à tensão, tão reclamada por Merquior, no texto poético entre autonomia formal e inserção histórica. 

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