sexta-feira, 3 de março de 2017

Sobre o livro "Brazil no prego" (2004), de Gilberto Felisberto Vasconcellos

Não são poucos os professores e alunos universitários brasileiros convencidos de que passou da hora de a linguagem acadêmica afrouxar um pouco a gravata e desabotoar o colarinho. E que essa menor pompa e circunstância estilística promovam um ambiente mais aconchegante, atraente e iluminado para o leitor. Disso, há mais de 30 anos, já tinha se dado conta José Guilherme Merquior, o diplomata, o doutor em Letras pela Sorbonne e o PhD em Sociologia pela London School of Economics and Political Science, que nutriu com fartura da forma ensaística a sua obra, quase sempre escrita “além do chavão, aquém do jargão”. Sua linguagem, ao contrário dos receios puristas da Geração de 45, não tinha medo de fazer pipi na cama do pensamento.

Bons exemplos recentes de uma linguagem sem maiores ranços terminológicos e sintaxe posuda são os livros Capitalismo: modo de usar (2015), do economista formado pela UFRJ Fabio Giambiagi (o volume carece, verdade seja dita, de uma 2ª edição bem revisada), e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (2016), do professor titular aposentado de Sociologia da USP José de Souza Martins.

Publicado há mais tempo, Brazil no prego (2004), de Gilberto Felisberto Vasconcellos, professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, se reveste de rasgos irônicos, de neologismos trocadilhescos jocosos, o que decerto torna a leitura do livro, em certo aspecto, um divertimento. Porém, o autor não se preocupa em atender ao famoso preceito horaciano do docere cum delectare, isto é, do ensinar deleitando, pois abre mão, sem parcimônia, da seriedade de um elemento ao qual não se deve permitir brincadeiras nesse gênero textual: a consistência dos argumentos.

A obra objetiva desenvolver uma crítica ampla ao Brasil político-econômico, sócio-cultural e acadêmico entre meados do século passado e os primeiros anos do atual. Para o autor, escancaradamente alinhado à tradição latino-americana do anti-imperialismo marxista, José Guilherme Merquior, “um dos mais importantes ideólogos brasileiros do liberalismo”, (2004, p.15) resplandece envolto na culpa de ter difundido uma visão política compactuada com os interesses do capital “videofinanceiro”.

Embora para o prefaciador do volume, Yago Euzébio Bueno de Paiva Junho, a tese central da obra professe que “o pensamento merquiorano foi um dos principais responsáveis pela convergência dos projetos políticos liberais e social-democratas a partir de 1989”, (2004, p.9-10) o próprio Felisberto Vasconcellos é mais cauteloso, ao prevenir e defender que

“Seria arriscado afirmar que o pensamento liberal de José Guilherme Merquior encontrar-se-ia inteiramente materializado no poder desde 1989. No entanto, é imperioso ir em busca das conexões entre sua trajetória intelectual e o quadro político contemporâneo  da sociedade brasileira.” (2004, p.35)

No entanto, várias afirmações peremptórias ficam sem o devido embasamento. Teria o sociólogo Fernando Henrique Cardoso lido os textos liberais de Merquior, a ponto de considerá-lo uma influência decisiva no exercício da presidência? A própria obra do líder tucano não fornece evidências sólidas disso. Convém ler, a tal propósito, o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, da qual o ex-presidente ocupa a cadeira no 36, a mesma de José Guilherme Merquior. As referências ao autor de Liberalismo: antigo e moderno quase não ultrapassam o nível protocolar da solenidade. Além disso, de que dados Gilberto Felisberto Vasconcellos dispôs, a respeito da recepção dos livros, artigos e ensaios de Merquior no meio político brasileiro, para ter chegado às suas convicções? 

Devemos ter em vista que o enlace entre liberalismo, em sentido mais econômico, e social-democracia, ou qualquer outra orientação mais afeita a intervenções estatais, vem sendo propagandeada por autores de projeção mundial, como Norberto Bobbio e Anthony Giddens. O filósofo político italiano preconizava o chamado social-liberalismo, vertente liberal em que inclusive Merquior se inseriu. Quanto ao britânico Giddens, é dele a famosíssima e ainda corrente expressão Terceira via, título de um livro seu publicado em 1998.

Em Brazil no prego, Felisberto Vasconcellos enaltece, quase página a página, a sociologia de Darcy Ribeiro e ataca, ali e acolá, a de Fernando Henrique Cardoso. Mas por que o primeiro seria sociólogo tão excelente quanto ignorado pela academia e o segundo tão ruim quanto referido por trabalhos científicos? O leitor não deverá encontrar outra resposta senão porque o autor do livro endossa as ideias ribeirinhas e abomina as feagaceanas. Ponto-final. Gilberto Felisberto Vasconcellos também ensina que Getúlio Vargas se matou motivado por questões relativas à Petrobrás, empresa pública sobre a qual incidiam interesses do capital estrangeiro. Porém, o que comprova a inusitada interpretação histórica? Trata-se apenas de uma pessoal convicção dogmática?

A obra de José Guilherme Merquior também nos tem a ensinar que o pensamento, de índole seja científica, seja política, não pode dispensar as conexões com a realidade, aqui compreendidas na forma de documentos, de dados históricos, de estatísticas etc, que o fundamentem. Tal postura exemplar motivou Miguel Reale a atribuir ao autor de Razão do poema o epíteto de “paladino da realidade concreta”. Tinha toda a razão o eminente jurista brasileiro.

Seja como for, Brazil no prego (com “z” mesmo, conforme o velho clichê esquerdista) se apoia numa leitura extensa de Merquior, e aventa uma interessante hipótese de a razão merquioriana dever bastante ao racionalismo marxista. Eis aí um belo filão a ser explorado. Gostaria de destacar ainda o “Capítulo 13”, de título “A viagem sem viagem”, com seu saboroso toque de crônica, muitíssimo bem dosado. E como não pasmar diante do acerto profético, que finaliza a obra, a respeito dos últimos anos de política executiva federal?

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