domingo, 2 de abril de 2017

Surrealismo e Merquior

O modernismo foi assunto de enorme interesse de José Guilherme Merquior. Páginas numerosas de Razão do poema (1965), A astúcia da mímese (1972), Formalismo & tradição moderna (1974), O fantasma romântico e outros ensaios (1980) dedicam-se ao movimento como um todo, no Brasil e lá fora, a autores e obras específicas. O autor chegou a planejar escrever um livro inteiro sobre o modernismo, projeto que infelizmente não se concretizou.

Na compreensão merquioriana da literatura modernista, podemos destacar, pelo menos, três conceitos: o de grotesco, sob a referência central de Wolfgang Kayser; o de alegoria, no sentido específico que dele recortou Walter Benjamin; e finalmente o de surrealismo, para o qual as fontes de discussão na obra do ensaísta brasileiro são mais diversificadas.

Neste post, vamos nos deter (sem nos estender) sobre o significado do surrealismo dentro do pensamento crítico de Merquior.

Como se sabe, o surrealismo foi uma das mais importantes correntes da vanguarda modernista europeia das primeiras décadas do século XX. Expressou-se em praticamente todas as linguagens artísticas, especialmente nas artes visuais. Na pintura, é fácil nos lembrarmos dos nomes de Salvador Dalí e de René Magritte, dos quais várias telas tornaram-se icônicas e reconhecidas de um público muito amplo. O cinema, a nova arte cujas técnicas se aprimoraram muito graças às experiências vanguardistas do modernismo, a exemplo do expressionismo alemão, também teve no surrealismo um nome de projeção: Luis Buñuel, diretor dos clássicos O cão andaluz e a A idade do ouro.

Todavia, a responsabilidade inicial e maior pela consolidação desse ismo coube, sem dúvida, ao campo literário, com os manifestos e outros textos de André Breton, um dos seus fundadores. A certidão de nascimento dessa vanguarda é “Le manifeste du surréalisme”, publicada por Breton em 1924. A data revela que se trata de um dos mais tardios produtos do modernismo europeu, uma vez que o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo já haviam aparecido ou antes ou durante a Primeira Grande Guerra (1914-1918). Fosse como fosse, o surrealismo tornou-se uma força criativa poderosa, que se disseminou amplamente pelas literaturas ocidentais. Isso a tal ponto que Carlos Drummond de Andrade, em entrevista concedida em setembro de 1946, se dispôs a profetizar: “[...] acho que a literatura de amanhã deverá muito à influência desse nosso prezado cadáver do surrealismo. Digo ‘cadáver’, porque o atestado de óbito é antigo, mas a verdade é que o surrealismo está tão vivo como há dez anos ou quinze anos atrás.” (1978, p.34)

Não obstante a complexidade e a diversidade do surrealismo, este caracteriza-se pela hegemonia concedida ao inconsciente do artista como plataforma de criação. Donde a recorrência das imagens oníricas, o frequente apelo desabridamente erótico, a linguagem desconexa e ilógica. Está claro, pois, que uma influência decisiva aí em questão foi a psicanálise freudiana, assim como, posteriormente, houve de ser o marxismo.

É, de fato, com entusiasmo marxista que o alemão Walter Benjamin assim apreciará essa mudança de rumos do surrealismo, que “de uma atitude extremamente contemplativa” passaria a assumir “uma oposição revolucionária”. (1996, p.28)

Enfocando aspecto similar, o mexicano Octavio Paz, no ensaio “O verbo desencarnado”, aponta semelhanças entre o surrealismo e o romantismo alemão porque ambos teriam encampado o programa de “transformar a vida em poesia e operar assim uma revolução decisiva nos espíritos, nos costumes e na vida social”, (2009, p.86) e também porque “constituem tentativas de transcender razão e religião e fundar assim um novo sagrado”. (2009, p.87) Por outro lado, os românticos alemães e os surrealistas se contrastariam, na medida em que entre os últimos “é menos aguda e ampla a visada metafísica”, (2009, p.87) mas sua “consciência histórica [...] é mais clara e profunda e sua relação com o mundo mais direta e arrojada”. (2009, p.87) Ainda Paz salienta a intenção surrealista de “submeter a palavra às necessidades da ação”, (2009, p.87) e por consequência: “Não é tanto a criação de poemas que o surrealismo se propõe, mas a transformação dos homens em poemas viventes.” (2009, p.88)

Essa convergência entre palavra e ação foi o que mais conquistou a admiração de José Guilherme Merquior pelo surrealismo. O autor jamais abandonou sua convicção na capacidade e no dever da literatura em intervir no mundo, pela perspectiva crítica. Acresce que, na contracorrente da fácil associação entre surrealismo e evasionismo, o ensaísta brasileiro igualmente realça essa vanguarda como “poesia da ação”, que “se destina a uma luta social, concretizando e materializando a esperança do acesso ao Ser.” (2013, p.73) Por fim, destaca, em “Notas para uma Muriloscopia”, com base na lição de David Sylvester: “[...] o projeto surreal não era, em substância, estético, mas sim de cunho, antes de tudo, existencial. Por isso, seu espírito se deixa entender melhor quando cotejado com as manifestações simbólicas das grandes religiões, não com estilos artísticos no sentido formal”. (1994, p.12)

Todavia, cumpre assinalar o endosso seletivo do julgamento merquioriano a respeito do surrealismo. A técnica da escrita automática, por exemplo, conforme a qual o escritor ambiciona registrar no papel a pura voz do inconsciente, pretensiosamente sem permitir interferências de normas gramaticais, estéticas e mesmo éticas, não empolgou o crítico brasileiro. Desde seus primeiros trabalhos, que culminarão com a publicação de Razão do poema, José Guilherme Merquior prescreveria, com efeito, que a razão deveria prevalecer sobre qualquer outra dimensão criativa, como sentimentos e sensações.

O caráter visionário do surrealismo, sim, contou para Merquior como uma das suas melhores contribuições para a literatura, na medida em que se trataria de um anseio não de fugir, e sim de enfrentar o mundo concreto, com o expediente das “aproximações insólitas” e do “choque do super-real”. (1980, p.151) Em outras palavras, talvez se possa afirmar que ao autor de O véu e a máscara interessava menos o aspecto do surrealismo como escola e doutrina poética do que a construção de imagens que permitissem ou fomentassem uma visão crítica e transformadora da realidade.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Carlos Drummond de. in: BRAYNER, Sônia Brayner (sel.). Carlos Drummond de Andrade. Coleção Fortuna Crítica 1. Direção de Afrânio Coutinho. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia”. in: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. 7ª ed. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. pp.21-35.

PAZ, Octavio. “O verbo desencarnado”. in: Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org. e rev. Celso Lafer e Haroldo de Campos. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. pp.75-91.


MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antiuniverso debruçado, ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes”. in: O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. pp.151-160.

______. “Notas para uma Muriloscopia”. in: MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.11-21.

______. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.

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