sábado, 27 de maio de 2017

Riquezas de um pequeno baú: O estruturalismo dos pobres e outras questões (3ª parte)

A crítica fonocêntrica de Derrida contra o pensamento ocidental é apenas uma amostra de macro-Kulturkritik retórica, dificilmente defensável se se deseja um retrato preciso da evolução cultural em geral ou história da filosofia em particular.
Merquior (De Praga a Paris)

Tomemos qualquer aspecto da herança ocidental da qual se orgulhavam os nossos ancestrais e encontraremos cursos universitários dedicados a desconstruí-la. Tomemos qualquer característica positiva de nossa herança cultura e política e encontraremos esforços combinados na mídia e na academia para colocá-la entre aspas e fazê-la parecer uma impostura ou um engodo.
Roger Scruton (Como ser um conservador)

Jacques Derrida (1930-2004) goza da honra de ter sido um dos alvos preferidos da mordacidade crítica de José Guilherme Merquior, quem se divertia em referir-se ao filósofo nascido na Argélia como Derridá-ou-desce. De fato, desde o início de sua trajetória intelectual, o ensaísta brasileiro direcionou severas restrições a certos desmembramentos do estruturalismo, dentre os quais se inclui o pós-estruturalismo a que todos associamos, de imediato, a obra do Pai da desconstrução.

O quinto e penúltimo ensaio do pequenino volume O estruturalismo dos pobres e outras questões (1975) intitula-se “O idealismo do significante (a Grammatologie de Jacques Derrida)”, e foi texto escrito em 1968, em Paris. A data e o local chamam a atenção, quando nos lembramos das manifestações estudantis que conturbaram a França naquele ano memorável e do caráter revolucionário de um livro então recentemente publicado (1967).

Entre “O idealismo do significante” e De Praga a Paris (1986), um dos últimos títulos do autor, o pensamento de Merquior sofreu sensíveis alterações, com destaque para a avaliação em torno da mentalidade vanguardista do modernismo europeu. De todo modo, a base dos questionamentos e das reflexões merquiorianas expressos numa e noutra obra manteve-se.

Pois o motivo principal de Merquior refutar a plataforma e as táticas da desconstrução são os descaminhos do formalismo, seja este aplicado no âmbito da crítica literária e das artes, seja no âmbito da filosofia. Conforme o diagnóstico do autor de A astúcia da mímese, a perspectiva formalista acabaria por provocar, ao alhear-se das dimensões histórico-sociais, “a queda do significado [...] em prol de um primado do significante” – é o que lemos à página 67 do ensaio de 1968 –, e que o argelino seria “um exemplar paladino da visão mântica”, na medida em que “estava firmemente do lado do significante vazio” – é o que lemos à página 230 do livro de 1986.

O leitor pergunta: o que é significado? o que é significante? São dois conceitos básicos da linguística moderna, fornecidos pelos estudos de Ferdinand de Saussure (1857-1913). Para o linguista suíço, o signo – uma unidade semântica, como uma palavra, por exemplo – se constitui do casamento, em uma só carne, do significante, isto é, o corpo gráfico ou fônico (a face legível ou visível da palavra), com o significado, isto é, a imagem mental ativada, ao ouvirmos, lermos, ou pensarmos na tal palavra (sua face inteligível).

A grande obra de Saussure, o Curso de linguística geral (1916), não por ele organizada, mas por alunos seus, nem publicada em sua vida, inovaria em diversos aspectos. Um dos quais, ao compreender que a disciplina ali tratada integrava uma ciência maior, até então inexistente, a ser denominada de semiologia: uma ciência dos signos, que abrangeria não apenas signos verbais.

Décadas mais tarde, o estruturalismo clássico, representado pela antropologia de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), apropriou-se da noção de semiologia de Saussure, na convicção de que as normas sociais humanas se organizavam e funcionavam como uma língua, tendo elas por ponto estruturante o inconsciente freudiano – elemento considerado pelo antropólogo o fundo universal da humanidade.

O estruturalismo lévi-straussiano manteve íntegro o enlace semântico significante/significado do signo e, com o respaldo da linguística saussuriana, pretendeu converter a antropologia numa ciência propriamente dita, já que se constituía, nessa colaboração interdisciplinar, uma rigorosa metodologia.

A repercussão da antropologia de Lévi-Strauss estimulou a advento do estruturalismo em outras áreas. E, assim, a crítica literária e a psicanálise apresentaram outros dois nomes de estrelato mundial: respectivamente, Roland Barthes (1915-1980) e Jacques Lacan (1901-1981). Costuma-se adicionar ao grupo o filósofo-historiador Michel Foucault (1926-1984), conquanto ele jamais se tenha autoidentificado estruturalista.

José Guilherme Merquior se interessou bastante pelo estruturalismo, de cujo “surgimento, mudança e dissolução” foi contemporâneo, testemunha e, em alguma medida talvez, personagem. Atestam-no o último ensaio de Razão do poema, “Estética e antropologia – esquema para uma fundamentação antropológica da universalidade da arte”, o fato de o brasileiro ter se tornado aluno de Lévi-Strauss na École des Hautes Études e ainda a comunicação, que comoveu o mestre belgo-francês, convertida posteriormente no livro L’esthétique de Lévi-Strauss (1975). O empenho estruturalista em merecer estatuto científico conquistou o aplauso de Merquior, quem ainda confessaria, em meados da década de 1980: “Eu, pelo menos, considero que uma das melhores coisas do estruturalismo francês clássico é exatamente a sadia adoção de uma perspectiva universalista.” (1991, p.227)

Todavia, a vontade de ser científica e o viés universalista do estruturalismo parece não terem entusiasmado, na mesma medida, Barthes, Lacan e outros. Merquior comenta o fato nestes termos:

Como um todo, na sua perspectiva geral como nos seus métodos, o estruturalismo não ficou do lado da ciência, mas sim do seu autodesignado adversário, a cultura humanista. Na verdade, terminaria sendo mais um franco humanismo, à medida que se convertia no pós-estruturalismo. (1991, p.238)

Os últimos trabalhos de Barthes, a psicanálise de Lacan e, por fim, a desconstrução de Jacques Derrida não renegam de todo o estruturalismo, mas se encaminham numa direção que os dele decerto distanciam. Para José Guilherme Merquior, o pós-estruturalismo embarca, com passagem só de ida, na perspectiva mântica. Terry Eagleton explica o caso literário:

A passagem do estruturalismo para o pós-estruturalismo em parte é, como o próprio Barthes disse, uma passagem da “obra” para o “texto”. Ela deixa de ver o poema ou o romance como uma entidade fechada, equipada de significações definidas que são tarefa do crítico descobrir, para um jogo irredutivelmente pluralístico, interminável, de significantes que jamais podem ser finalmente apreendidos em torno de um único centro, em uma essência ou significação únicas. (2003, p.190-191)

A desconstrução de Derrida elegeu como seu pior inimigo nada menos do que a ideia de centro e de verdade. Ou seja, a beligerância do autor argelino se voltou, sob assumidos estímulos nietzschianos e heideggerianos, para a problematização de toda uma tradição de pensamento e visão de mundo calcada, a seu ver, na metafísica do logos, que remontaria à Antiguidade Grega. Dessa época o personagem mais visado por Derrida foi Platão, o qual ensinava consistir a realidade ao nosso redor, ou a physis, um enganoso mundo de sombras, ao passo que a verdade residiria num plano transcendental, o das ideias, do qual o plano terreno não passaria de uma cópia.

A convicção da existência da verdade veio a sustentar não apenas a filosofia, mas também as ciências, além da religião cristã. Sendo assim, a história do Ocidente estaria marcada pelo logocentrismo... Mas Derrida acrescenta a essa centralidade, nisso não escondendo seu background estruturalista, a presença linguística da phoné. Ou seja, a questão, para Derrida, era desconstruir, mais especificamente, o fonologocentrismo ocidental. Na lição de Evando Nascimento:

A época do lógos enquanto determinação da phoné consideraria a escrita como simples representação do discurso falado, da palavra viva, presente a si. O modelo perfeito dessa representação seria a escrita fonética, base de nossa civilização ocidental. Essa hierarquização de representações se deixa determinar pela oposição entre significante e significado. (2001, p.123)

Sem dúvida, José Guilherme Merquior era um anti-idealista aborrecido com os fantasmas românticos que teimavam em assombrar a modernidade com seus buuuuuuus metafísicos. Por isso, o ensaísta e diplomata reconhece “o mérito de Derrida no seu esforço [empreendido em De la grammatologie] de destruição da noção de significado transcendental”. (1975, p.60) Contudo não aceita “sua defesa apaixonada do formalismo linguístico”, (1975, p.66) que conduzirá o pós-estruturalista, ao divorciar as duas partes do signo saussuriano, a um idealismo do significante conjunto a uma ostensiva rejeição de todo e qualquer significado.

No quinto ensaio de O estruturalismo dos pobres..., Merquior endossa o combate derridiano contra significados transcendentais, mas não contra todo e qualquer significado, com o entendimento de que “a autonomia do significante não exclui sua referencialidade essencial”. (1975, p.72) Outra crítica merquioriana importante se dá nestas duas frases: “Em Derrida como em Foucault, a superestimação da literatura é paralela à atrofia da noção de valor da cientificidade. O idealismo do significante não elabora nenhum projeto de justificação do saber.” (1975, p.70)

A discussão em torno do livro de Jacques Derrida dá oportunidade ainda para Merquior, que se apoia em textos de Roman Jackobson (1896-1982) e do estruturalismo eslavo tão querido seu, esboçar uma teoria mimética, com a qual se encerra esta postagem:

É necessário se habituar à noção de uma forma pura da referência, onde a ausência de significado transcendental seria o outro nome da abertura para o mundo inscrita na linguagem. Uma teoria da referência pura – e não do idealismo do significante – seria a verdadeira tradução linguística dessa espontaneidade receptiva que é o conhecimento aberto ao ser. (1975, p.75)  

Referências bibliográficas:

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 5ª ed. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris: o surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista. Trad. Ana Maria de Castro Gibson com revisão do autor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

______. O estruturalismo dos pobres e outras questões. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.


NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2ª ed. Niterói: EdUFF, 2001.

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